CARTA DE BRAGA – “de grisalhos e cultura” por António Oliveira

Tenho perfeita noção da minha condição de ocidental, já em idade de risco (pertenço à peste grisalha), vivendo a esticar os trocos pela parca reforma que me foi recortada há uns governos atrás, por ser um peso para o Estado, acomodado e indolente, mas a recusar a preguiça mental que me transformaria completamente num burguês a viver de um Estado/Banco (a ordem dos factores é arbitrária), só não completamente endividado, por também contribuir para isso, bem contra minha vontade.

De qualquer maneira assumo totalmente a minha condição de pertença aos burgueses europeus, a que os habitantes do terceiro e de outros e mais mundos, definem através de um acrónimo, WEIRD, a juntar algumas das características das culturas europeia e norte-americana, WesternEducatedIndustrialisedRichDemocratic, profundamente individualistas e sempre mergulhados em processos de mudança e mobilidade social.

E reconheço essa condição, principalmente a  pouco escrupulosa prosperidade material (ocidental!), embora muito longe do europeu médio, sabendo também que por causa ou através dela, está muita da miséria que aflige tais mundos, onde se permite que muitos vivam em condições que nem a história mais sinistra poderia imaginar – 150 milhões de pessoas em pobreza extrema, de acordo com o Banco Mundial.

E embora as motivações pessoais possam ser e tenham sido múltiplas, a Europa e a sociedade do bem estar, excelentemente caracterizada naquele acrónimo, são um objectivo e um sonho para aqueles largos milhões de pessoas, mormente a sul, por terem perdido toda a esperança de um futuro digno nos seus países de origem.

Junte-se a toda esta situação, já por si deprimente, o drama da pandemia e das vacinas que só lá chegarão quando o capital autorizar e, percebe-se com toda a certeza, o êxodo mais os dramas que ele arrasta a nível familiar (as medidas do trumpa foram um enorme e terrível exemplo!), os problemas de xenofobia e medo que eles nos podem trazer (postos de trabalho e outros), bem como olhar de frente para o enorme problema do envelhecimento europeu, o da ‘peste grisalha’ contaminadora de pátrias, como alguém menos dotado, escreveu por cá, não há muitos anos.

Aliás e de acordo com o filósofo Joan Carles Mélich, ‘A tradição ocidental, na sua versão metafísica, nunca suportou o estranho, o estrangeiro. Procurou sempre capturá-lo, dominá-lo, integrá-lo nos seus sistemas, no Todo, no Ser’. Daí que também não tenha suportado a leitura, porque ler obriga a ‘sair de si’ e, ao fazê-lo, coloca o leitor frente ao estranho, apesar de, como diria Franz Schubert, ‘Nascemos estranhos e vamo-nos estranhos’.

Mas vivemos na União Europeia, onde a sobrevivência das finanças e dos capitais é, desde a sua fundação, o objectivo principal (pergunte-se às grandes empresas nacionais onde estão sediadas, para se perceber bem esta situação) e também entenderemos o professor Soromenho Marques, no ‘DN de 15 de Maio passado, ‘A legislação europeia continua a deixar a vertente social na esfera exclusiva dos Estados membros, reservando para a UE a emissão e o controlo monetários, o policiamento dos orçamentos nacionais e da concorrência, e a proteção dos privilégios do sistema financeiro’.

Quando algo ocupa o centro de gravidade das ideias que defende ou diz defender, também se transforma na base do senso comum, o das ideias partilhadas, pelo que se torna fácil ‘criar’ um adversário, um inimigo alheio, para vir ‘perturbar’ o bom andamento de todas as coisas.

E a cultura onde tudo devia estar fundamentado, também pode ser ‘traída’ pela percepção da vida quotidiana pois, no dizer dos filósofos Adorno e Horkheimer, ‘A cultura é uma mercadoria paradoxal, está tão completamente submetida à lei da troca que não é mais trocada. Confunde-se tão cegamente com o uso, que não se pode mais usá-la. É por isso que ela se funde com a publicidade’.

Li algures que Walter Scott costumava dizer que, as pessoas mais abomináveis do seu tempo, eram os médicos, os advogados e os confessores, por todos eles viverem à custa das desgraças alheias. Se vivesse hoje, o autor do ‘Ivanhoe’ saberia e chegaria à triste conclusão que uma de cada duas pessoas, sente e actua motivada pelos preconceitos e estereótipos contra as pessoas mais velhas, como divulgado num estudo recente das nações Unidas.

E Eduardo Galeano, para mim sempre presente, dizia também, ‘Culto não é quem lê mais livros; culto é aquele que sabe escutar os outros’, que aparentemente, também não é prática quotidiana para muita gente, mormente de quem assume os lugares onde o devia fazer.

Mas a propósito disto tudo, do idadismo e dos preconceitos que arrasta, do autor da expressão ‘peste grisalha’ e de todos os que pensam como ele, aqui deixo uma outra ideia de Abraham Lincoln, o antigo e assassinado presidente dos EUA, ‘E no final das contas, não são os anos em sua vida que contam. É a vida nos seus anos!’.

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

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