Cuba – Entre os protestos sociais e o embargo dos EUA: vontade de mudança radical ou explosão momentânea de dieta escassa em comida e farta em pandemia ? Deve Cuba ser defendida? Por Francisco Tavares

 Por Francisco Tavares

                    Em 20 de Julho de 2021

 

Nestes dias de forte agitação nas redes sociais a propósito dos protestos em Cuba no passado 11 de Julho, publicamos uma pequena série de textos, começando pelo comentário que me suscitaram as observações de Francisco Seixas da Costa sobre este assunto:

“(…) Negar a brutalidade da repressão da ditadura cubana sobre os manifestantes (que levou à demissão, em protesto, de um vice-ministro) é confundir afetos com factos. Falar de outros países (ainda por cima democráticos) neste contexto é “whataboutism”. Não vou por aí”. (resposta de Francisco Seixas da Costa a um comentário meu sobre o seu artigo Brasil em duas ou três coisas, ver aqui)

 

Cuba: Facto: a demissão do vice-ministro não está confirmada. Fonte da notícia da suposta demissão: ABC e LaRazón, jornais espanhóis de direita. Para já a demissão foi desmentida pelo governo de Cuba.

Whataboutism: eu estaria a tentar desacreditar a posição de FSC sem refutar diretamente a sua argumentação. Dito depressa: estaria a desviar a discussão sobre Cuba. As notícias não confirmam “a brutalidade da repressão da ditadura cubana” (governo confirmou existência de um morto; a youtuber Dina Stars afirmou, após ser libertada, não ter sido maltratada nem sequestrada). Estas posições fazem-me recordar uma das ideias que foi invocada na invasão e destruição do Iraque e da Líbia, só para citar dois casos: a exportação da “democracia”. Falar da repressão na Colômbia, no Brasil, em França, nos Estados Unidos é estar a desviar a discussão sobre Cuba. Mas é possível e entendível debater Cuba como se fosse um mero problema interno?

Porquê é desviar a conversa relembrar, por exemplo, o destacamento de forças armadas (ao abrigo da lei da Insurreição), a Guarda Nacional, em 1992 para Los Angeles, com a cidade a arder após duas noites de violência devido à absolvição de agentes da polícia que tinham espancado brutalmente Rodney King, um homem negro desarmado, evento este recordado por C.J. Chivers (à época fuzileiro e que participou nesse destacamento) a propósito da mobilização por Trump de forças armadas para reprimirem os protestos em múltiplas cidades pelo assassinato de George Floyd em Maio 2020. Aqui não se fala de repressão brutal e falta de democracia? Porquê é desviar a conversa recordar que em Cuba os EUA mantêm uma prisão de alta segurança, Guantánamo, utilizada pelos Estados Unidos para detidos acusados de terrorismo: 780 detidos, 9 morreram na prisão e 40 continuam presos sem acusação nem julgamento. E já passaram cerca de 20 anos! É esta a democracia que se quer para Cuba?

Porquê é desviar a conversa afirmar que Brasil e Índia, tidas como democracias, são exemplos gritantes de miséria, pobreza, exclusão e opressão.

Mas e porque não se fala sobre o modo como se processam as eleições para o parlamento cubano, que se realizam cada 5 anos? E o modo de formação do Conselho de Estado e do Governo? E as medidas de reforma, ainda que possam ser consideradas tímidas, tomadas pelo governo cubano? Mas como resistir e gerir uma situação de completo bloqueio à economia. Bloqueio comandado pelos Estados Unidos desde há 60 anos? Onde tudo, desde o mais básico à sobrevivência, falta?

Cuba: é uma ilha com poucos recursos, tem que importar mais de 60% dos produtos essenciais. Com o bloqueio (desde 1962), reforçado por Trump, mantido por Biden, e com a pandemia Covid, que parou uma das fontes principais de recursos (turismo), a situação interna agravou-se (imagine-se o Algarve sem os euros emitidos gratuitamente pelo Banco Central Europeu, no atual contexto de crise). “Por erros próprios e embargos alheios, a situação em Cuba desesperou-se”, diz A. Rodrigues em artigo no Público. “Já não é a desesperança melancólica do quotidiano difícil, burocrático, mal servido e depauperado, é a hora aguda das barrigas vazias. E não há nada como a falta de comida para agitar o protesto. Faltam alimentos, carecem os medicamentos”. Mas “a dimensão que se dá a estes protestos no exterior reflecte uma verdadeira vontade de mudança ou apenas a explosão momentânea de dieta escassa em comida e farta em pandemia” ? E a África do Sul está a dar a resposta.

A direita e uma suposta esquerda gostam muito de falar de Cuba como “exportadora” de revoluções (será que se referem à ajuda militar ao governo legítimo de Angola contra a agressão norte-americana por interposta África do Sul nos idos de 1975-76?). Mas passam ao largo do longo historial dos EUA de orquestração, manipulação e intervenção noutros países, um verdadeiro ADN do país norte-americano. No século XX era a luta anticomunista, hoje é a luta contra o terrorismo, violações direitos humanos ou as ditas “crises humanitárias”. E no século XIX?. Houve quem lhe chamasse a “pax americana” e um suposto papel tradicional de não intervenção (vd. aqui O Trumpismo sobreviverá, de Gérard Araud). É um longo rol desde que os EUA existem:

Intervenção no Colorado em 1806 quando era território do império espanhol. Na Líbia e na Tunísia em 1815. Na Argentina, 1833 e em 1852-53. No Perú em 1835. Em Sumatra, 1838. Anexação do Texas em 1845. Guerra com o México em 1846-48 e anexação do Novo México. No Japão em 1853-54, em 1864, 1945-52. Na China em 1854 e 1856, em 1866, em 1894-95, em 1900, em 1911, 1927, 1933, 1945-47. No Uruguai em 1855. Nicarágua em 1867, 1926-33. No Haiti em 1888. No Chile 1891, 1973 (derrube do governo legítimo de Salvador Allende e ditadura até 1990, mais de 3 mil mortos ou desaparecidos, tortura de milhares de prisioneiros, exílio forçado de 200 mil chilenos; só agora em 2021 foi eleita uma assembleia constituinte para redação de nova constituição). Na Nicarágua 1899, 1910, 1912-1925. Na República Dominicana 1903, 1965. No Panamá 1903-1914. Em Cuba 1912, 1933; Crise Cuba 1962; bloqueio económico total 1962-2021. Na URSS 1918-1920. Na Dalmácia 1919. No Suriname 1941. Guerra da Coreia 1950-53. Em Taiwan 1950-55. Na Crise do Líbano 1958. No Vietname 1959-75 (morte ou desaparecimento de mais de 3 milhões de vietnamitas civis ou militares, mais de 250.000 cambojanos e mais de 50.000 laocianos. Os EUA sofreram quase 60.000 soldados mortos e mais de 300.000 feridos). Na Tailândia 1962. No Laos e Camboja 1962-1975. No Brasil golpe 1964. Em Israel 1973. No Irão 1980, 1987, 2018 (sanções e bloqueio económico). Em El Salvador 1981. Na Líbia 1981, 1986,2011 (em 2011 intervenção por interposta NATO; nessa altura a Líbia tinha a esperança de vida mais elevada de África em 77,6 anos, o PIB per capita mais alto de África, o segundo em paridade de poder de compra e um dos registos mais altos de África no índice de desenvolvimento humano, ver aqui. A democracia exportada pelos EUA e seus aliados traduz-se hoje num país disputado entre grupos rivais e exportador de refugiados). Em Granada 1983. Nas Honduras 1983-89. No Golfo Pérsico 1984, 1987-88. No Iraque 1991,1992-2003, 2010-11, 2014. Na Serra Leoa 1992. Na Somália 1992-95. Na ex-Jugoslávia 1992-99. Na Albânia 1997. No Iémen 2000, No Afeganistão 1998-até presente. Na Geórgia 2003. Na Síria 2014.

E poderíamos falar do lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima e Nagasaki em Agosto de 1945, numa altura em que o exército do Japão estava destroçado, precisamente quando a URSS lançou a Operação Tempestade de Agosto (ou Batalha da Manchúria), em 8 de agosto de 1945, contra o Estado fantoche de Manchukuo. Esta operação tinha por objetivo derrotar o Exército Imperial Japonês, que ocupava a Coreia e vastas áreas da China, e preparar o início da invasão do Japão, programada para novembro de 1945. Conhecem-se as consequências do lançamento das duas bombas: mais de 240.000 mortos (maioria civis) e consequências desastrosas para os que sobreviveram (ver aqui). Já depois, quando presidente dos EUA, Eisenhower disse: “Não era necessário atacá-los com essa coisa horrível”. Outros dirigentes militares norte-americanos (vg. General Curtis LeMay da Força Aérea, almirante Chester Nimitz, comandante da frota do Pacífico) afirmaram que a bomba atómica nada teve a ver, de um ponto de vista puramente militar, com a derrota do Japão (ibidem).

E os EUA contam sempre com aliados internos ou próximos. No caso atual de Cuba o uruguaio Luis Almagro, secretário-geral da OEA, (derrubou um Presidente na Bolívia proclamando “fraude” nas eleições que veio a provar-se nunca ter existido), segundo diz o jornal mexicano La Jornada, ele e os seus amigos de direita de Miami lançaram em Fevereiro de 2020 uma campanha nas redes sociais – Crise em Cuba: repressão, fome e coronavírus. Quando não havia casos de infecção Covid em Cuba. O investigador Julián Macias Tovar analisou 2 milhões de tuits de #SOSCuba e concluiu que foram alimentados por “milhares de contas recém-criadas e bots”, cibertropas organizadas no Twitter que amplificaram milhões de mensagens e deram instruções para o acosso coordenado a influencers para dar volume à #SOSCuba”.

A toda esta agitação em torno de Cuba também não parece ser alheia a situação interna nos Estados Unidos, que se preparam para eleições intercalares. Será que o presidente Biden teme perder votos se distender, conforme prometeu na sua campanha para presidente, as relações com Cuba? E se assim for, isso fá-lo-á perder ou ganhar votos?

O bloqueio não é para Cuba uma palavra vazia de sentido. Chega a representar perda de 10% do PIB ou mais durante anos e tem consequências demolidoras no bem-estar da população, faltam bens essenciais e medicamentos. Não obstante a condenação do bloqueio pela ONU (em Junho 2021, mais as 28 aprovadas anualmente desde 1992), O BLOQUEIO mantém-se. O bloqueio ajuda à melhoria dos direitos humanos, económicos e sociais em Cuba? Como seria a Madeira, governada pelo PSD há mais de 43 anos, se sofresse um bloqueio desta dimensão e duração?

Não me alongarei sobre o texto de Francisco Seixas da Costa, “A tristeza de Cuba”, nele resumiu plenamente o seu olhar sobre o assunto. Curioso como, desta vez, deixa um toque na realidade de outros países (no caso o Vietname).

Eu admiro o orgulho e a resistência do povo cubano. Contra-ventos e marés, com a mão dos EUA (e seus compagnons de route) a apertar-lhes o pescoço, eles mantêm-se. Evoluirão certamente, o mundo não é estático. Não creio que seja no sentido que os EUA e seus aliados lhe querem impor. O gesto de descripação de Obama (de curta duração), com reação mútua de Cuba, foi o reconhecimento de que apesar do bloqueio, Cuba aí está, é o reconhecimento de que falharam o seu objetivo. Dias tristes? Sabem o que é passar 60 anos com uma mão que permanentemente nos aperta o pescoço? Sabem o que é viver com um bloqueio total? Tristeza não está no ADN dos cubanos.

Os textos que iremos publicar são:

  1. Cuba sem rede, uma morte e uma guerra de informação, de Roberto Livi
  2. “Fome e protestos” em Cuba, os dirigentes culpam Washington e a manipulação das redes sociais, de Roberto Livi
  3. Protestos em Cuba, compreender porquê e dizer basta ao embargo, de Aldo Garzia
  4. A crise existe, mas há que defender Cuba, entrevista a Frei Betto
  5. Se Biden é uma fotocópia de Trump, de Guido Moltedo

 

 

2 Comments

  1. Julgo que a situação vigente em Cuba está aqui muito bem abordada. Mas há um aspecto que seria importante ter em consideração. Os países vizinhos das Antilhas, como o Haiti (que conquistou a independência a partir de uma sublevação de escravos – terá sido o primeiro caso na história) ou a Republica Dominicana, têm tido uma vida atribulada. Embora formalmente independentes e considerados como democracias por quem chama ditadura ao regime que vigora em Cuba, não têm tido uma vida fácil. Sobre Porto Rico, que é oficialmente um “Estado Livre Associado” do gigante norte-americano, há quem ache que se trata pura e simplesmente de uma colónia. O passado colonial está muito presente nas Antilhas, tal como nos outros países americanos, incluindo os próprios Estados Unidos. E as ocorrências históricas mais recentes não demonstram que tenham havido grandes alterações.

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