CARTA DE BRAGA – “de artigos e astronautas” por António Oliveira

A minha reserva de artigos para as eventuais férias nestas Cartas, está no fim! Sempre foi assim quando tive de escrever para algum lado, em Angola, nos Açores e agora aqui! Mas em todo o lado tive a companhia de amigos, de companheiros de tertúlias diversas onde, entre cafés, alguma cerveja ou mesmo outra bebida mais pesada, havia temas a debater para, na hora, resolvermos os problemas do mundo e ouvir umas ‘bocas’ que até iriam servir de tema num qualquer artigo, meu ou de outro companheiro, todos experimentados em tapas e na maneira de apanhar moscas mesmo sem mosquiteiro. 

Éramos amigos, companheiros, camaradas, praticantes de uma religião chamada pertença e solidariedade, celebrada no prazer de estar, compartir tristezas e contentezas, molhando-as quando devia ser, jornais à espera de melhor hora para uma leitura cuidada (que saudades dos tempos dos jornais!), mas a acolher também os amigos mais desafortunados, sempre à procura de ‘bons ventos’ para partir numa nova aventura e algumas foram e também deram bons apontamentos!

Hoje falamos, quando nos encontramos, só um ou dois, mascarados e tolhidos, para discutir o volume e a importância do consumo, esquecendo os tempos das discussões, de falar dos projectos sociais e humanos, para reformular uma sociedade anquilosada por décadas de práticas censórias, negando liberdades e leituras.

Mas falamos do individualismo competitivo, a começar cedo tanto em casa como na escola, tendo em vista a experiência, larga e apoteoticamente documentada da ‘grandeza’ do consumo, que até permite a existência dos Bezos, Branson’s e Musk’s, os bilionários globais e reais de um mercado de vaidades que o UBS, o banco suíço de investimento, avaliou em 244 mil milhões de euros, podendo crescer até aos 800 mil milhões lá para 2030, se lá chegarmos e a variação climática deixar. 

Entretanto eles colecionam filmes, fotos, fundos e aplausos, que deveriam ser divididos pelos 150 milhões de pessoas em risco de pobreza extrema e pelos 31 milhões que foram obrigadas a fugir de casa, só este ano, devido a desastres naturais como a seca, inundações, terramotos e tufões. A maioria nem abandonou os seus países, mas foi obrigada a deixar casas, famílias e terras de um momento para o outro. 

E convém não esquecer que qualquer um daqueles é bem conhecido pelo modo como conseguem ‘não ter tempo para pagar impostos’, sem serem afectados por um qualquer incómodo social nem moral. E este modo, que parece não acarretar grandes críticas à sociedade actual, parece também demonstrar que estamos e viver hoje ‘um fascismo da impotência, da ignorância, do sofrimento. No século passado, o fascismo era um fascismo da potência masculina, juvenil. Hoje é o da impotência senil, de uma humanidade branca senil’ afirmou o filósofo Franco Berardi no ‘Outras Palavras’ no passado dia 1 de Julho. 

Mas o também filósofo Santiago Alba Rico, que já por aqui passou algumas vezes, vai mais longe como se vê nesta entrevista de alguns dias, à Cadena Ser, ‘Estamos a viver um retorno hipertecnológico à sociedade primitiva, pré-socrática, em que os sacrifícios humanos e a lei da selva dominavam sobre a justiça e o direito. E neste contexto civilizacional, os dois inimigos da inocência e da ingenuidade, como aconteceu em todas as crises anteriores, são a hipocrisia e o cinismo. E quando em nome da democracia se corrompem instituições e em nome da paz e dos Direitos Humanos se bombardeiam cidades, cometem-se acções muito graves – matar seres humanos e matar palavras, princípios e valores’.

Na realidade, já são do domínio comum e estão devidamente ‘decorados’ pela sociedade, alguns ‘valores’ que quase ninguém contesta por também quase intocáveis, como o poder patriarcal nas mais diversas maneiras e os privilégios que lhe estão ligados, bom como os privilégios do poder económico que favorecem bajuladores e serventuários, obrigando a quem nasce sem poder comer nem beber dessa gamela, ou saber de informação privilegiada para fugir aos impostos, a ter de contar com os recursos sociais ou com os restos das mesas do poder, para ter alguma ajuda. 

Aliás um pobre, que injustiças sociais poderia criar? Creio que nenhuma porque, mesmo que quisesse, nada teria a que se segurar ou onde se apoiar!

Lembro-me, ainda a propósito daqueles coleccionadores de dinheiro armados em astronautas, de uma pergunta de André Malraux feita já nos anos sessenta, ‘Para quê conquistar a Lua se não é para se suicidar ali?

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

 

 

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