Os Planos de Recuperação e Resiliência da União Europeia e dos Estados Unidos no contexto das Democracias em perigo – 1ª parte – Enquadramento da crise sistémica na Europa: 1.2 O EURO, uma catástrofe moderna e uma tragédia antiga. Por Matthieu Flandin

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Publicado por  em 19 de Julho de 2021 (ver aqui)

 

© Aymeric Chouquet pour LVSL

 

Embora seja difícil criticar a moeda única no Velho Continente, existe uma grande quantidade de livros sobre o assunto no mundo anglo-americano, muitas vezes escritos por economistas do mainstream ou ortodoxos [1]. É o caso de Ashoka Mody, Professor de Economia na Universidade de Princeton e antigo representante-chefe do FMI no contexto do “resgate” irlandês de 2009 pela Troika, que publica EuroTragedy: A Drama in Nine Acts [2]. Longe de ser uma reedição de obras publicadas anteriormente, o autor mergulha-nos na história da moeda única, conseguindo combinar os detalhes de cada evento com um espírito sintético e global para desdobrar a sua tragédia de cortar a respiração. Tragédia: a palavra é tudo menos trivial. Trata-se, sem dúvida, de um aceno malicioso aos gregos – simultaneamente inventores do género teatral sob a pena de Ésquilo e Sófocles e vítimas do diktat europeu da austeridade – mas também uma subtil leitura da história do euro. É uma oportunidade para constatar que as análises do Ashoka Mody estão em conformidade com algumas das observações feitas por economistas franceses heterodoxos a favor de uma saída do euro.

 

Ashoka Mody, como bom economista ortodoxo que deseja encarnar a razão económica acima da lógica partidária e geopolítica, narra a história do euro à maneira de uma tragédia. Associado ao sacrifício na sua versão grega, este género literário caracteriza-se pelo facto de a catástrofe final ser conhecida antecipadamente pelo espectador, que testemunha impotente os mecanismos que a puseram em marcha [3]. Compreendemos rapidamente que para o autor, o euro constitui um sacrifício de cerca de 340 milhões de europeus em benefício de uma agenda pessoal: a de François Mitterrand e Helmut Kohl, ambos governados pelas suas “paixões” – paixões partilhadas pelos altos funcionários públicos franceses por uma moeda forte, e a arrogância pessoal do chanceler alemão.

O autor mostra uma particular obsessão pelo protagonista alemão deste par, provavelmente porque encarna, melhor do que ninguém, a arrogância deste projeto desafiando a ortodoxia económica. Ao contrário do mito de que este par tinha aceite o compromisso da reunificação alemã contra o euro [4], Mody mostra na realidade a impotência de Mitterrand face à reunificação [5], estando o destino do euro reservado nas mãos do Chanceler. Em oposição a uma união monetária até Dezembro de 1989, Helmut Kohl fez uma viragem inexplicável após a cimeira de Estrasburgo. Embora o autor explore algumas pistas sobre as razões para isto – memórias da guerra, a conceção na sua mente deste compromisso – o silêncio permanece.

Estas palavras não ditas, que são também características das tragédias, repetem-se inevitavelmente, com impacto decisivo. Por exemplo, o que teria acontecido se Kohl não tivesse ficado calado quando, durante o debate entre François Mitterrand e Philippe Séguin [6], o presidente francês declarou que o Banco Central Europeu (BCE) estaria sujeito ao poder político, embora o chanceler tivesse exigido a independência desta instituição, símbolo, se por acaso existe um, da vitória dos princípios do ordoliberalismo alemão [7]?

Para um resumo do ordoliberalismo alemão, leia o artigo de Jean-Baptiste Bonnet sobre LVSL: “Ordolibéralisme: comprendre l’idéologie allemande“

 

Do mesmo modo, as acções do Chanceler alemão foram também marcadas por uma dimensão trágica. Mody conta como, sozinho contra todos na Alemanha e especialmente contra o poderoso Bundesbank, insistiu em admitir uma Itália atormentada pela corrupção sistémica na zona euro [8].  Esta hamartia – os erros de julgamento [fatais] na tragédia grega – deve levar o personagem fatalmente ao infortúnio. Assim, o Chanceler curvou-se ao voto alemão em 1998, e um ano mais tarde rebentou um escândalo por causa do financiamento opaco do seu partido [a CDU] [9]. No entanto, tal como a maldição dos Atreides [descendentes de Atreus] que atinge cada geração sucessiva, a tragédia do euro não termina com a saída do duo Kohl-Mitterand.

 

UMA LONGA HISTÓRIA DE NEGAÇÃO

Segundo o economista indiano, a irracionalidade do euro tem as suas raízes na década de 1970, com a publicação do relatório Werner, acto de nascimento da ideologia europeia da estabilidade. Ele aponta as razões pelas quais uma união monetária é impossível… ao mesmo tempo que se apela à sua realização, no espírito da “fuga em frente” de Jean Monnet, e em nome de uma conceção construtivista da moeda: o euro traria a união orçamental, um trampolim para a união política. Mas Mody mostra brilhantemente que, pelo contrário, esta união monetária, pelas suas muitas deficiências, desde a ausência de união orçamental à imobilidade dos trabalhadores passando pela falta de união política democrática, corria o risco de travar a construção europeia.

Ainda mais irracional, o autor cita Nicholas Kaldor, um grande economista do século XX, que, tal como Cassandra, retomou profeticamente estas críticas num artigo publicado em 1971: uma união monetária incompleta “impediria o desenvolvimento de uma união política e não o contrário”, tornando-se a zona euro uma casa que, “dividida contra si mesma, não se poderia aguentar.” Esta crítica de um economista pós-keynesiano elucida a história do euro que Mody nos conta: a de uma moeda a ser construída longe do escrutínio democrático e dos economistas. É verdade que a França ratificou a grande custo o Tratado de Maastricht por referendo. Mas Mody mostra muito bem que este voto reflete a divisão educativa emergente na sociedade francesa (anteriormente analisada por investigadores como Thomas Piketty e Emmanuel Todd), sendo os mais instruídos os mais favoráveis ao tratado e vice-versa. Em 2005, o autor observa que a desconfiança foi acentuada com o não ao Tratado Constitucional Europeu, marcado em particular por um crescente ceticismo entre os jovens. Também aqui, a metáfora da tragédia toma forma: os criadores do euro troçam dos muitos avisos que foram claramente emitidos.

Mody desmonta igualmente os supostos benefícios do euro. Aumento do comércio dentro da zona graças à redução da incerteza cambial e custos de transação mais baixos? Rigoroso, o autor mostra que, na realidade, a quota das exportações de Itália, Alemanha e França para a zona euro diminuiu. Com a compressão da procura interna, a Alemanha – tendo paradoxalmente apoiado estas políticas de austeridade – procurou exportar para fora da Zona Euro, e em breve a República Checa, Hungria e Polónia poderiam estar a comprar mais produtos alemães do que a França e Itália juntas [10].

Ainda mais irreal foi o apoio do FMI ao euro, utilizando o mesmo argumento, quando a investigação económica – nomeadamente por Barry Eichengreen – tinha mostrado que o tipo de regime cambial não afetava o volume do comércio internacional. Numa espantosa negação da realidade, Mody mostra que alguns investigadores, embora reconhecendo este facto em primeiro lugar, utilizaram o argumento do “excecionalismo europeu” – um termo curioso com ares de etnocentrismo – para apoiar o projeto.

Inevitavelmente, como em qualquer outra tragédia, a realidade iria alcançar a zona euro. Talvez encorajado pela cegueira dos protagonistas do euro – o tema da segunda parte – o castigo abateu-se de facto e traduz o estado de crise quase constante nesta zona. Durante o único período de calma, entre 2004 e 2007, o autor explica num capítulo inteiro que esta foi, de facto, uma fase de “exuberância irracional”, com os reguladores europeus a permitirem que os bancos assumissem cada vez mais riscos.

Contudo, as críticas de Mody à zona euro podem confundir o leitor habituado à literatura eurocética francesa. Enquanto a crítica heterodoxa se concentra nas devastações do comércio livre, institucionalizado por diretivas europeias e aumentado pela abolição das taxas de câmbio após a passagem para o euro, a crítica ortodoxa critica a zona euro por ter permitido que a inflação fugisse nos países do Sul através de taxas de juro demasiado baixas.

A análise do Mody, apoiando-se no trabalho de Alan Walters, tenta estabelecer que a estrutura do euro facilitou esta situação: sob uma política monetária unificada, as taxas de juro nominais pagas nos países membros convergem. Apenas, com os diferenciais de inflação, as taxas de juro reais, que determinam as decisões económicas, divergem. Na maioria dos países periféricos, onde a inflação era alta, as taxas de juro revelaram-se demasiado baixas e encorajaram um boom de crédito – num contexto de grande desigualdade na distribuição de rendimentos e pobreza persistente, pode-se acrescentar – precipitando a crise financeira. Até 2008, para estes países periféricos, a inflação estava a corroer o valor da dívida mais rapidamente do que os pagamentos de juros a estavam a aumentar. Para os mutuantes alemães e franceses, o aumento dos preços e dos salários na periferia garantiu que os mutuários naquela região teriam muitos euros para pagar as suas dívidas. O capital estrangeiro fluiu então para países com elevadas taxas de inflação, o que aumentou ainda mais as taxas de inflação, o que, por sua vez, fez com que mais capital fluísse num processo de auto-reforço. Ao mesmo tempo, a inflação alemã e mesmo francesa permaneceu relativamente baixa, porque os seus bancos estavam a empurrar fundos para a periferia e devido ao efeito da política orçamental e salarial restritiva alemã iniciada por Gerhard Schröder.

Para travar o frenesim de crédito da periferia, o BCE teria tido de aumentar as taxas de juro a tal ponto que os alemães e os franceses se teriam oposto – por medo de uma recessão em casa: a política monetária da zona euro, mal adaptada a todos os países membros, estava a revelar as suas falhas fatais. A divergência da inflação persistiu devido à baixa mobilidade laboral, sendo praticamente inexistentes as transferências orçamentais e, sobretudo, os decisores políticos da zona euro pareciam desconhecer o ciclo em curso de expansão do crédito e de inflação. Para piorar a situação, os devedores demasiadamente endividados  eram cada vez mais incapazes de pagar as suas dívidas. O aumento da inflação tinha levado a custos de produção mais elevados e os sinais de declínio da competitividade internacional – agravado pela incapacidade dos países periféricos em poder desvalorizar – eram já evidentes.

Os exportadores dos países da periferia estavam a ser espremidos para fora dos seus mercados estrangeiros por concorrentes da China e da Europa de Leste. As taxas de crescimento das exportações dos países periféricos estavam em declínio. As suas importações estavam a aumentar rapidamente e, como resultado, os seus défices de balança corrente estavam a aumentar, levando mecanicamente, segundo Alan Walters, a um défice público para evitar falências em massa. O declínio da competitividade internacional devido à persistente inflação elevada acabou por reduzir os lucros das empresas nacionais e aumentar o seu risco de incumprimento. O risco era particularmente agudo porque o crescimento da produtividade tinha chegado a uma quase estagnação nas economias periféricas da zona euro. Especialmente no boom entre 2003 e 2008, quando o capital fluiu para a periferia, o crescimento da produtividade nestes países foi próximo de zero. De facto, durante curtos períodos, a produtividade tinha mesmo diminuído.

Os países periféricos viram o boom de crédito espalhar-se mais facilmente porque as taxas de juro nominais – semelhantes para todos os membros da zona – eram demasiado baixas para estes países. A política de medida única, que não serve a ninguém, inerente ao euro, criou assim a dívida dos países do Sul e facilitou, devido à perceção ilusória de que o euro tinha eliminado todos os riscos, o desenvolvimento de bolhas financeiras na periferia, especialmente em Espanha e na Irlanda.

 

O PENSAMENTO DE GRUPO NO CENTRO DO DRAMA

Para além do aspeto puramente económico, a contribuição do livro de Ashoka Mody é manifesta na análise psicológica dos protagonistas do euro. Regularmente faz referência à expressão “groupthink”, um termo cunhado pelo investigador Irving Janis que descreve “o empenho inquestionável de um grupo numa ideologia ou numa linha de conduta”. Em francês, falaríamos de “pensamento de grupo” ou “bolha cognitiva”, caracterizada por uma recusa em se confrontar com opiniões opostas e uma potencial negação da realidade quando esta contradiz a ideologia.

Para o autor, Helmut Kohl – novamente – estaria na origem deste fenómeno, desenvolvendo uma narrativa clássica que equipara o euro à paz, como se a partilha de uma moeda pudesse evitar uma guerra civil, assinala Ashoka Mody com um toque de humor. Mas um só homem não é suficiente para converter uma elite a esta narrativa.

De facto, a estrutura das instituições europeias facilita o fenómeno do pensamento de grupo. O autor insiste na hiper-independência do banco central e mostra como isto resulta tanto da impossibilidade de combinar os diferentes interesses nacionais como da desconfiança dos alemães em relação a uma potencial influência francesa na política monetária. Aqui vemos o paradoxo mortal da construção europeia: num objetivo proclamado ad nauseam de unidade e uniformização, ele é alcançado e assume uma forma antidemocrática devido aos interesses divergentes e à desconfiança entre os estados-membros. O objetivo primordial da independência das instituições europeias, no caso do banco central, mantém-se, escreve Mody, “para assegurar que um Estado membro não o possa controlar”.

Na ausência de responsabilidade democrática perante o Parlamento Europeu, que Mody pouco menciona – prova do seu papel menor – a Comissão Executiva do BCE encerrou-se numa ideologia de estabilidade [11] com graves consequências, tais como um atraso na redução das suas taxas no momento da crise do subprime, tornando a zona euro uma zona quase deflacionária – Mody fala de lowflation, uma baixa inflação.

Para além do BCE, os outros protagonistas mostram uma negação impressionante. Ainda na altura da crise financeira de 2008, assiste-se em Janeiro a Jean-Claude Juncker, então chefe do conselho de ministros europeus das finanças – Ecofin – declarar: “Devemos estar preocupados, mas muito menos do que os americanos, sobre os quais se estão a vingar amargamente as deficiências contra as quais temos repetidamente alertado”. Contudo, os americanos estavam muito melhor do que a Europa ao recusarem a austeridade e graças a um Fed com o duplo objetivo de pleno emprego e estabilidade de preços. Em contraste, o BCE tinha-se fixado – e continua a fixar-se – num único objetivo, o da estabilidade dos preços, de acordo com a lógica da ideologia ordoliberal. Para o autor, foi o BCE que “infligiu uma ferida grave” na zona euro ao aumentar as taxas de juro diretoras a 7 de Julho de 2011 e ao anunciar novos aumentos, agravando assim a crise financeira. A esta negação junta-se um irónico desdém destes protagonistas: por exemplo, Mody diz-nos que, em plena violação dos tratados, o Presidente do BCE Jean-Claude Trichet envia cartas aos chefes de governo espanhóis e italianos – eleitos – exigindo reduções nos défices públicos dos seus países, ou seja, ultrapassando o mandato de política monetária do BCE.

Evidentemente, é lamentável que o autor favoreça por vezes a ideia de negação ou incompetência dos governadores do BCE em vez de mostrar os interesses particulares por eles defendidos, como evidenciado pela crescente dependência dos bancos centrais em relação aos mercados financeiros [12]. No entanto, Mody tem o mérito de fazer esta observação para interesses nacionais particulares, em especial a Alemanha. A Alemanha, que tinha exigido a independência do BCE, não hesitou em instar este último a baixar as suas taxas de juro diretoras durante a chancelaria de Gerhard Schröder.

O autor conclui com a seguinte ironia:

 “A independência do BCE destinava-se a proteger as suas decisões técnicas da influência política e a dar-lhes credibilidade. Em vez disso, a chamada independência do BCE escondeu interesses nacionais não regulados, mantendo as ações do BCE fora das necessidades económicas da zona euro e minando a sua credibilidade”.

Estas linhas sublinham o paradoxo da construção europeia: supostamente ao serviço dos europeus, a construção europeia parece de facto ter escondido os interesses próprios da Alemanha, mesmo que isso signifique produzir efeitos nocivos sobre os seus “parceiros”, ao mesmo tempo que lança incessantes apelos à unidade do Velho Continente.

 

UMA TRAGÉDIA AINDA INACABADA

A maior frustração após a leitura deste livro é a resistência do euro, que, curiosamente inabalável, sobrevive. Na tragédia grega, o erro fatal da personagem não provoca a sua ruína? Não deveria a catarse tomar toda a força no final da tragédia e agir como uma lição para o futuro? Com o euro, é uma forma de irracionalidade permanente que se abate sobre a Europa.

O autor tem o mérito de fornecer uma explicação psicológica, baseada na obra de Thomas Schelling, e escreve na introdução: “É da natureza do ser humano esquecer que esquecemos sem cessar. Na zona euro, esforços repetidos, libertos do peso da memória dos fracassos passados, voltam aos mesmos temas; de cada vez, com as mesmas palavras e os mesmos argumentos, a esperança é que o último esforço seja finalmente recompensado. Mas em vez de progresso, a involução continua”. Enquanto desde o início da construção europeia Mody mostra que nenhum país tencionava envolver-se numa “federação” europeia, esta ideia sobreviveu entre alguns líderes europeus que negam a realidade. Da mesma forma, Mody desconstrói a teoria de Jean Monnet sobre a “fuga para a frente ” do projeto europeu: utilizando o exemplo do New Deal nos Estados Unidos, ele mostra que este representou uma verdadeira fuga para a frente para o país, com o grande aumento do orçamento federal a revelar-se decisivo para permitir a recuperação económica. Em contraste, o escasso e insuficiente orçamento da UE para a zona euro exacerba as diferenças entre os países membros – e nunca teve um aumento substancial durante as várias crises.

Observamos também que os heróis da tragédia – que, segundo Aristóteles, “sem serem eminentemente virtuosos e justos, [caem] na desgraça não por causa da [sua] maldade e perversidade, mas como resultado de um ou outro erro [que] cometeram” [13] – do euro têm pouco arrependimento. Quem pode imaginar Jean-Claude Juncker a arrancar os olhos, como um Édipo a lamentar-se quando descobre a verdade? Esta ignorância da fatalidade põe fim à metáfora fiada da tragédia, mesmo que os não heróis – a tomar aqui no sentido dado por Aristóteles – do euro, ou seja, os povos que partilham a moeda única, não o ignorem e se revoltem espontaneamente [14].

É igualmente lamentável que a notável lucidez do autor no seu relato do euro desapareça quando menciona os seus dois cenários para o futuro da Europa. No primeiro cenário, a zona do euro continua a funcionar sem ajustamentos, mantendo-se a normalidade. Mody mostra-se desfavorável a uma saída da Itália do euro porque, como resultado da conversão da dívida em lira, esta explodiria ao ponto de se tornar insustentável. Esta redução simplista, que surge de forma surpreendente após mais de 400 páginas de erudição foi rejeitada nomeadamente por Jacques Sapir [15]. Mody concorda, contudo, que uma saída da Alemanha seria altamente benéfica, ajudando a apreciar o Marco e a reduzir o monstruoso excedente comercial da principal potência europeia.

Na segunda hipótese, surge uma grande contradição: no meio de uma onda de ficção política, Mody oferece-nos um discurso fantasioso de Angela Merkel, pouco conhecida durante os seus quinze anos na chancelaria pela sua heterodoxia: ela proporia cancelar parte da dívida grega, emitir uma dívida de cinco anos para tornar claros os riscos para os credores privados, e abandonar as restritivas regras orçamentais de Maastricht. O leitor atento ficará surpreendido por não ver o desmantelamento da zona euro nas suas propostas. Mas não é tudo: o discurso de Merkel prossegue então longamente sobre a sua ambição de construir uma “República de Letras” baseada na cooperação dos europeus no domínio da educação. Finalmente, a simpática chanceler termina o seu discurso insistindo em valores europeus tais como “democracia, proteção social, liberdade de viajar e diversidade cultural”; “Nesta Europa, todos os europeus encontram-se em espaços comuns para reafirmar os seus valores universais”.

Na realidade, esta fantasia é uma quimera digna de discursos reformistas pró-europeus, enquanto Mody nos lembra algumas linhas antes que “mais Europa” não será a solução. Se, num breve regresso à lucidez, ele rejeita a ideia de uma união política e orçamental, este discurso imaginário de Merkel não tem sentido. O próprio Mody explica um pouco antes no livro que a proteção social e a democracia foram postas à prova pelas instituições europeias. A seguir, restituir a prerrogativa orçamental aos Estados sem lhes devolver o instrumento monetário equivale a uma nova forma de compromisso incompleto e nefasto, à imagem e semelhança do euro concebido sem união orçamental e política. É também ignorar o ponto fundamental de que uma política orçamental deve ser concebida com o instrumento monetário para assegurar a sua eficácia [16]. Contudo, ao longo do livro, o Mody demonstra de forma excelente o absurdo do slogan “unidos na diversidade”, um slogan que é muito agradável para os intelectuais que articulam conceitos, mas que tem consequências concretas nocivas. Tal como afirma que “os Estados-nação exigem mais soberania” [17] e mostra que o euro nunca será uma zona monetária óptima [18], Mody recusa-se a exigir a devolução do direito de cunhar moeda às nações, um direito que é fundamental para a afirmação da soberania do Estado. Não será esta uma curiosa ilustração da cegueira no raciocínio, semelhante à arrogância dos líderes europeus paradoxalmente demonstrada neste mesmo livro?

Embora reconheça que o nível das universidades europeias está a baixar em relação às da Ásia e da América, os seus convites à cooperação europeia em matéria de educação ignoram as políticas já empreendidas pela União Europeia neste domínio, nomeadamente através do processo de Bolonha, que foi denunciado pela sua conceção neoliberal da educação e pelo seu princípio de concorrência entre as universidades [19].

Para além da questão da educação vista como central por Mody – que analisa em particular o abrandamento dos ganhos de produtividade como consequência da estagnação da despesa pública em I&D desde 1997 – a alusão ao Mercado Único é rara neste ensaio, embora não possa ser separada da questão do euro. O Ato Único de 1986, com as suas “quatro liberdades”, ratificou a abolição dos direitos aduaneiros e a livre circulação de capitais. Com a moeda única alguns anos mais tarde, os Estados-membros perdem todas as possibilidades de proteger as suas economias nacionais numa área onde a concorrência livre e não falseada  é brutalmente aplicada. A abolição do filtro monetário expôs assim a França a um risco ainda maior.

Daí o recurso à flexibilização do mercado de trabalho – o mito das reformas Hartz está, no entanto, bem desconstruído por Mody [20] no livro – para operar uma desvalorização interna em vez de uma desvalorização monetária: baixar os salários e os impostos para que as empresas comprimam os seus custos e preservem a sua competitividade.

Finalmente, o erro mais marcante no discurso imaginário de Merkel é a afirmação de valores europeus universais. Embora Mody sublinhe muito bem a diversidade de perfis e necessidades económicas dos membros da zona euro, revela, porém, um desconhecimento surpreendente quanto à diversidade antropológica do Velho Continente. Além disso, existem dinâmicas demográficas específicas a cada nação que refletem diferentes culturas. Ante uma Alemanha [21] apegada à estabilidade monetária por razões históricas óbvias, o euro só poderia assumir uma forma ou outra, e tornou-se o marco alemão disfarçado em benefício da Alemanha, que se livra das desvantagens do verdadeiro marco alemão – não se aprecia -, graças em particular à submissão da classe dirigente francesa aos princípios ordoliberais alemães [22]. Ainda que Mody tente uma análise psicológica dos protagonistas do euro, é possível lamentar o seu raciocínio economicista que deixa de fora as variáveis antropológicas.

Na mesma linha, o autor tende por vezes a ser simplista na sua classificação dos países, entre os virtuosos do norte da zona e os do sul, gangrenados por instituições e sistemas educativos fracassados. Enquanto mostra bem que o euro agravou esta divergência, com a França a cair na linha dos países do Sul, ele parece particularmente redutor em relação à Itália, atribuindo a corrupção generalizada no país aos seus líderes políticos e à sua cultura, quando na realidade é o resultado de uma ausência de alternância com o Partido Comunista Italiano no período do pós-guerra, uma ausência que foi em parte permitida pelos Estados Unidos e outros países europeus.

Apesar das suas contradições finais, que parecem ser a gota que transborda o copo depois de ter demonstrado com talento a irracionalidade do euro, a EuroTragedy continua a ser uma obra de referência relativamente acessível para a descoberta do euro, da sua história, da sua conceção e das suas sérias limitações. O perfil do autor, um académico americano e antigo membro do FMI, também ajudará a desmistificar alguns eurófilos da noção de que uma saída do euro é uma proposta de extrema-esquerda. Além do mais, Ashoka Modi está longe de ser o único economista ortodoxo no mundo anglo-saxão a mostrar o seu cepticismo em relação à moeda única [25].

Mas esta história só se tornará mais clara quando a tragédia estiver concluída.

 

Notas:

[1] Joseph Stiglitz The Euro. How a Common Currency Threatens the Future of Europe; Marvyn King, The End of Alchemy: Money, Banking and the Future of the Global Economy, ambos publicados em 2016.

[2] A obra, até agora, não foi traduzida para francês.

[3] Trágos («bode») et ᾠδή, ôidế («canto, poema»). Daí o sentido «canto do bode», designando o canto ritual que acompanhava o sacrifício do bode nas festas de Dionísio na época arcaica.

[4] Embora este compromisso também seja estranho: como poderia Mitterrand pensar em contrariar o poder alemão através da partilha da mesma moeda? Isto remete-nos para o complexo de inferioridade histórica da classe política francesa face à Alemanha, que remonta à guerra de 1870. Mody diz-nos que o projeto do euro nasceu durante a presidência de Georges Pompidou.

[5] A reunificação era já defendida pelos Estados Unidos e aprovada pela União Soviética.

[6] A propósito do Tratado de Maastricht, no dia 20 de setembro de 1992 na Sorbonne.

[7] Ordo-liberalismo é uma doutrina económica cuja palavra-chave estabilidade será encontrada na conceção do euro: equilíbrio das contas, estabilidade dos preços. Para assegurar esta estabilidade, o Estado deve limitar-se ao papel de organizador das regras do mercado, passando por um banco central independente do poder político. Estes princípios vão guiar a construção europeia, mesmo que isso signifique tornar invisível a incorporação dos princípios igualitários e dirigistas franceses. Para mais informações, veja-se: https://lvsl.fr/ordoliberalisme-comprendre-lideologie-allemande/

[8] Esta posição foi também contra o embaixador alemão em Roma que viu que a Itália, enredada na operação “Mãos Limpas ” no início dos anos 90, estava longe de realizar as reformas estruturais para reduzir as despesas públicas exigidas pelo Tratado de Maastricht. Na altura, a Itália tinha uma dívida pública equivalente a 120% do seu PIB quando o limite estabelecido pelo tratado era de 60%.

[9] https://www.la-croix.com/Archives/2000-01-25/L-Allemagne-decouvre-avec-stupeur-le-systeme-Kohl-_NP_-2000-01-25-100333

[10] A Polónia acaba de ultrapassar a França  no seu comércio com a Alemanha: https://visegradpost.com/fr/2021/02/17/la-pologne-depasse-la-france-dans-le-commerce-avec-lallemagne/

[11] Ideologia que junta os princípios ordoliberais de estabilidade dos preços e equilíbrio das contas.

[12] Esta tribuna de Michael Vincent mostra-o bem: https://0vinz.files.wordpress.com/2020/07/europe-_bce_mv.pdf

[13] Poética

[14] Jacques Ellul dizia assim: “Quando há um risco de fatalidade, então o homem deve revoltar-se e recusar-se a aceitá-la como destino. Em todas as tragédias gregas, é na presença do destino que o homem diz que quer que a humanidade exista”. (https://www.youtube.com/watch?v=01H5-s0bS-I). No quadro do euro, a única afirmação de humanidade  provém dos povos dos diferentes Estados-membros.

[15]  https://www.les-crises.fr/leuro-contre-leurope-par-jacques-sapir/, veja-se a parte «Uma saída do euro arrasta consigo uma catástrofe?»

[16] Como Jacques Sapir salientou neste programa em relação ao último plano de recuperação francês, o euro sobrevalorizado para a França constitui um importante travão ao desejo do governo de aumentar a competitividade das empresas do país, mesmo desbloqueando a ajuda orçamental: https://www.youtube.com/watch?v=knb5p7QRCFw

[17] Esta é uma formulação desajeitada, uma vez que a soberania é um conceito indivisível.

[18] Isto deve-se à imobilidade insuperável do fator trabalho considerado no seu modelo (inspirado no de Robert Mundell) como um critério indispensável para uma zona monetária ótima.

[19] Ver, por exemplo, este artigo por ocasião do décimo aniversário do processo: https://www.lemonde.fr/idees/article/2009/04/10/le-processus-de-bologne-attise-la-fronde-universitaire-par-brigitte-perucca_1179139_3232.html. Além disso, a ideia de uma educação europeia não é nova e foi cruelmente criticada por Romain Gary em Educação Europeia: “Na Europa temos as catedrais mais antigas, as universidades mais antigas e famosas, as maiores bibliotecas, e é aí que recebemos a melhor educação – de todos os cantos do mundo, ao que parece, as pessoas vêm à Europa para aprender. Mas no final, tudo o que esta famosa educação europeia vos ensina é como encontrar a coragem e as boas, válidas e limpas razões para matar um homem que nada vos fez, e que está ali sentado no gelo com os seus patins calçados, curvando a cabeça, à espera que isso aconteça”.

[20] Página 367: estas reformas de “flexibilização” do mercado de trabalho, abrandando os aumentos salariais, foram associadas à recuperação económica da Alemanha, enquanto que  Mody mostra que a recuperação foi efetivamente possibilitada pela deslocalização de algumas atividades industriais para economias europeias de baixos salários e pelas vantagens estruturais na formação profissional dos trabalhadores, não impedindo a precarização dos trabalhadores do sector dos serviços, que foi fortemente afetado pelas reformas Hartz e cujos ganhos de produtividade foram menores. Estas reformas inspiraram a Lei do Emprego em Itália em 2015, aumentando o número de trabalhadores com contratos temporários.

[21] Veja-se por exemplo L’invention de l’Europe de Emmanuel Todd.

[22] Foi a comissão chefiada pelo francês Jacques Delors que recomendou a aplicação destes princípios.

[23] Ameaça por agora afastada: https://lvsl.fr/congres-de-la-cdu-allemande-beaucoup-de-bruit-pour-rien/ [Nota de editor: conforme texto original, esta nota não está assinalada no corpo do artigo]

[24] Helmut Kohl para a Itália, Valéry Giscard d’Estaing para a Grécia. [Nota de editor: conforme texto original, esta nota não está assinalada no corpo do artigo]

[25] Aliás, desde 1992, a maior parte dos economistas americanos do l’establishment eram céticos em relação ao euro: https://ec.europa.eu/economy_finance/publications/pages/publication16345_en.pdf

 

 

 

 

 

 

 

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