INTEGRADO MARGINAL. BIOGRAFIA DE JOSÉ CARDOSO PIRES, DE BRUNO VIEIRA AMARAL – por MANUEL SIMÕES

(1925 – 1998)

 

 

O título paradoxal desta biografia de José Cardoso Pires (1925-1998) foi extraído de um texto confessional do autor de O Delfim, em que este se definia como alguém que nunca tinha cultivado o «espírito de grupo. Quando muito, talvez nunca tenha passado em toda a minha vida de um integrado marginal ou coisa que se pareça». Para um militante, inicialmente do MUD e depois do PCP até 1974, mas sempre empenhado na luta de resistência contra o Estado Novo, estes dois termos parecem contraditórios mas determinam certamente a relativa “indisciplina” usufruída pelo intelectual que, por sua vez, conduziu uma existência um tanto indisciplinada: conhecedor, como poucos, da Lisboa nocturna dos bares, este conhecimento haveria de fornecer-lhe, por outro lado, os modismos linguísticos e as navegações de muita experiência que estão na base do excelente Livro de Bordo. Vozes, olhares, memorações, de 1997.

O texto de Bruno Vieira Amaral (Contraponto, 2021), nas suas 599 páginas, vai para além da simples biografia. Na verdade, o biógrafo procede a uma exaustiva investigação dos textos críticos publicados sobre cada um dos livros de José Cardoso Pires, em especial dos primeiros (Caminheiros, Histórias de Amor, O Anjo Ancorado, O Hóspede de Job ou O Delfim), não se eximindo, porém, de formular, de cada vez, uma síntese da crítica e a deixar entrever a sua predilecção por certas tendências da mesma, as que mais confortariam o “ego” do biografado. Sem constar do seu projecto, o biógrafo acaba por percorrer a evolução da história da crítica literária em Portugal no século XX, não sendo por isso de estranhar que sobre as últimas obras (Balada da Praia dos Cães, Alexandra Alpha ou De Profundis, Valsa Lenta) não abundem as análises críticas: foram desaparecendo os suplementos literários dos jornais, a nível nacional e, é claro, a nível regional, e a crítica refugiou-se na Academia, com as limitações resultantes de, nos cursos de letras, só se estudar a literatura portuguesa até ao final do século XIX. A crítica “profissional” deixou de interessar a imprensa, e as editoras encontraram outras formas de promoção dos livros (com a criação dos prémios, por exemplo), panorama que se foi agudizando até chegar ao quase nível zero dos nossos dias.

A biografia é, assim, apoiada por um grande número, quanto a mim excessivo, de citações (são 464 as notas ao texto), oriundas de fontes diversas: as muitas entrevistas concedidas pelo Autor, críticas, cartas de muitas personalidades, por vezes sem nenhuma densidade crítica, diários, espólios/arquivos – tudo com a finalidade objectiva de construir um itinerário, um percurso acidentado numa História feita de inquietações, de sobressaltos de vária ordem por parte de quem teve que enfrentar a constante intervenção dos vários tipos de censura  Na sua globalidade, este volume ilustra perfeitamente tal itinerário, respeitando a progressão da obra de Cardoso Pires e a cronologia da mesma. Refira-se, no entanto, a descuidada redacção em demasiados momentos da biografia, prejudicada ainda por uma má revisão literária. A confirmar o pouco cuidado redaccional, veja-se o segmento em que Bruno Amaral se exprime, de passagem, sobre o nosso prémio Nobel e acerca de O Evangelho Segundo Jesus Cristo: «Saramago atirou-se aos evangelhos para ‘descrucificar’ Cristo e morder as canelas de Deus Pai»; ou ainda quando exprime, a propósito de A República dos Corvos, o estilo de Cardoso Pires: «Era tudo passado e servido com a sua prosa ágil, vivaça, com um ritmo inconfundível, misto de conhecimento da tradição e ouvido para a língua viva das ruas», onde o mínimo que se pode dizer é que se trata de uma escrita “vivaça”.

Quem tem medo do Neo-realismo?

Bruno Vieira Amaral trouxe para a biografia de José Cardoso Pires a estafada questão “arte pura e arte social”, invocada entre nós desde os primórdios do movimento neo-realista pelos seus detractores (nisto os presencistas tiveram o quinhão mais importante), convencidos como estavam – e parece que ainda estão – que a expressão “arte pura”, pela presença do adjectivo, viesse penalizar os que eles consideravam, pelos vistos, seguidores de uma “arte impura”. E o biógrafo/crítico vai ao ponto de defender o que João Gaspar Simões, conhecido pelos seus “ódios de estimação”, escreveu em 1949: «Se alguma coisa faltava nos contos e romances do neo-realismo era, precisamente, realidade» (cit.de p. 93). Daí até à generalização de que alguns escritores (os tais impuros) viam a realidade à distância, do comboio, e coisas afins, vai um passo. Não se interrogou sobre a relação estabelecida com a realidade cruel, por exemplo: por Alves Redol (Gaibéus, Avieiros, etc.); por Carlos de Oliveira e a Gândara (Casa na Duna, Os Pequenos Burgueses, etc.); por Manuel da Fonseca e o Alentejo (Seara de Vento, Cerromaior, etc.); ou por Fernando Namora e a Beira interior (Retalhos da Vida de um Médico, Casa da Malta, etc.), para só apresentar alguns exemplos. Não se interrogou, prefere insistir na divergência entre o conteúdo real e o estilo artificial (em que consiste?), e que supostamente houve um neo-realismo «básico, preguiçoso e sentimental de propensão lírica e pitoresco etnográfico» (p. 274), do qual, segundo o biógrafo, Cardoso Pires se teria libertado.

Não é original a posição de Bruno Vieira Amaral, feita de lugares-comuns, de estereótipos de fundo ideológico, sedimentados e martelados à consciência dos leitores, sequelas de um sistema político cuja sombra ainda paira na mente dos criadores duma mitologia que a sistematização literária já devia ter arrumado e banido do discurso mediático mas acrítico.

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