Assim vai a democracia em França… – “O que Bernard Tapie revelou sobre a República”. Por Laurent Mauduit

Seleção e tradução de Francisco Tavares

 

O que Bernard Tapie revelou sobre a República

 Por Laurent Mauduit

Publicado por  em 3 de Outubro de 2021 (Ce que Bernard Tapie a révélé de la République, original aqui)

 

Com a morte de Bernard Tapie, o famoso caso que leva o seu nome é encerrado. Mas continua a ser um espelho formidável no qual se pode detectar o lado escuro do segundo mandato de François Mitterrand, bem como os excessos do mandato de cinco anos do Sarkozy. Diz muito sobre a manipulação da justiça e a anemia da democracia.

 

Durante a vida de Bernard Tapie, a imprensa teve frequentemente duas formas de falar sobre ele. Para muitos jornais da imprensa escrita e ainda mais nos meios audiovisuais, ele foi durante muito tempo, como se costuma dizer, um “bom cliente”. Com os seus discursos retóricos e as suas fanfarronices, os seus bluff e os seus truques, ele era um daqueles convidados que muitos adoravam receber porque trazia a esperança de maiores vendas ou picos de audiência. Durante mais de trinta e cinco anos, foi avidamente acolhido em inúmeras plataformas, incluindo as do serviço público.

De um meio de comunicação social para outro, de BFMTV para a Europa 1, passando por France 2, Le Journal du dimanche ou Paris-Match, Bernard Tapie era disputado. Para o levar a falar sobre qualquer coisa. Ao acaso, o futebol. Ou sobre os “coletes amarelos”. Ou a situação política em geral e Emmanuel Macron em particular. E depois, na sequência, era também convidado a falar (um pouco) sobre o seu próprio caso, sem o contradizer ou interpelar demasiado. Deixando-o exprimir, na maioria das vezes, as maiores enormidades. Na Primavera de 2021, a France Inter chegou mesmo a inclinar-se para a promoção de um livro – um naufrágio de um serviço público! – escrito por um dos empregados de Tapie, cheio de mentiras e inverdades sobre a história da famosa arbitragem fraudulenta, e outros tantos insultos e “notícias falsas” sobre a Mediapart.

Bernard Tapie durante uma conferência na Bélgica em 27 de Setembro de 2018. Foto Emmanuel Dunand / AFP

 

É preciso reconhecer que o artista sabia como fazê-lo. Nos dias em que tudo ainda sorria para ele, tanto no desporto como na política, tinha o hábito de convidar muitos patrões da imprensa e até chusmas de jornalistas para passar uns dias de férias luxuosas com ele no seu luxuoso iate, o Phocéa. O que não contribuía necessariamente para formas muito combativas de jornalismo. Tanto que muitos jornais, desde o JDD ao Figaro, e mesmo o Libération durante muito tempo, defenderam a causa de Bernard Tapie durante anos, como se ele tivesse sido vítima de um insuportável erro judicial, fomentado por alguns poucos magistrados que investigavam perpetuamente para o acusarem.

E agora que um duplo cancro finalmente abateu o borbulhante Bernard Tapie, ele que nunca pareceu manter o joelho no chão durante muito tempo, a propaganda mediática vai sem dúvida recomeçar. Bernard Tapie vai estar nas notícias. Interminavelmente. Com relatórios intermináveis em papel brilhante, odes hagiográficas para o homem que tropeçou inúmeras vezes mas se levantou sempre de novo…

Também para a Mediapart, Bernard Tapie foi certamente um “bom cliente”. Como poderíamos negá-lo, uma vez que, desde que o escândalo que leva o seu nome rebentou em Julho de 2008, dedicámos-lhe várias centenas de artigos ou investigações (estão aqui). Contudo, fazemo-lo sempre tendo em vista o jornalismo de interesse público que reivindicamos e não um jornalismo mais “popularucho”. Porque, para dizer a verdade, não, nunca me debrucei sobre o homem Bernard Tapie – mesmo que nos tenhamos conhecido bem, pois as nossas trocas foram inúmeras, por vezes pacíficas, por vezes vulcânicas, como o demonstram as nossas trocas de mensagens de texto, alguns exemplos das quais podem ser encontrados no documentário que co-escrevi com Thomas Johnson e que pode ser visto aqui neste post do blogue.

Mas, com a minha caneta, Mediapart preferiu sempre destacar não a aventura pessoal de Bernard Tapie, mas o que o seu caso – ou melhor, os seus assuntos – revelou sobre o nosso país; sobre as disfunções da nossa democracia; sobre as derrapagens perigosas da justiça.

Desde que Bernard Tapie morreu este domingo, 3 de Outubro, após uma longa batalha contra a doença, este continua sem dúvida a ser o melhor prisma através do qual se pode falar do personagem: continuar a observar toda as turbulências em que ele apanhado ao longo da sua vida, como um espelho. Porque na sua tumultuosa vida, podemos ver tudo: a louca consanguinidade entre o poder político e os círculos empresariais, um sistema de justiça que por vezes obedece servilmente, uma imprensa demasiadas vezes servil, e tantas outras coisas… Por isso, observemos por uma última vez o espelho Tapie, para discernir as imagens que ele nos reenvia da nossa democracia.

O primeiro efeito espelho diz respeito à vida política francesa, pois Bernard Tapie foi primeiro protegido por François Mitterrand, que o tornou ministro (de curta duração) no final do seu segundo mandato, antes de ser novamente protegido, muito depois, por Nicolas Sarkozy, que suspendeu o curso da justiça comum a seu favor para recorrer à justiça privada de uma arbitragem – que mais tarde ficámos a saber que tinha sido fraudulenta. Bernard Tapie começou a fazer fortuna sob esta primeira presidência, graças ao apoio que recebeu de um banco público, neste caso o ex-Crédit Lyonnais, cujo CEO, Jean-Yves Haberer, era próximo de François Mitterrand; e [Bernard Tapie] obteve um enorme lucro sob a outra presidência, ao embolsar os 404 milhões de euros da sentença arbitral, incluindo 45 milhões de euros por alegados danos morais.

Em suma, este interminável caso Tapie lança luz sobre os aspectos mais escuros da era Mitterrand, bem como sobre os aspectos de maior desordem do tempo de Sarkozy. Ou, se se preferir, é uma formidável revelação das negociatas políticas que tiveram lugar sob a primeira presidência, e que se acentuaram ainda mais sob a segunda. A história de Bernard Tapie pode de facto ser resumida neste atalho espantoso: o escândalo começou sob François Mitterrand e terminou sob Nicolas Sarkozy.

Bernard Tapie apresenta os seus jogadores a François Mitterrand durante a final da Taça de França, 11 de Junho de 1988. Georges Merillon – AF

 

A boa sorte de Bernard Tapie começou durante o segundo mandato de sete anos de François Mitterrand. Primeiro, porque os socialistas assumiram a responsabilidade de o apresentar como empresário modelo, ao ponto de o fazerem ministro, enquanto que ele era apenas um aventureiro sem demasiados escrúpulos no mundo financeiro, jogando frequentemente no registo do populismo.

Mas há muito mais grave do que isso. Bernard Tapie beneficiou financeiramente da miopia dos socialistas. O empresário apresentou-se frequentemente como vítima e argumentou que foi enganado pelo Crédit Lyonnais quando o grupo Adidas foi vendido, mas a verdade é bastante diferente. Se ele não tivesse sido protegido por François Mitterrand, nunca teria beneficiado das boas graças do Crédit Lyonnais, que nessa época era um banco público.

Esquece-se demasiadas vezes que Bernard Tapie nunca se comprometeu com o mínimo dinheiro pessoal – nem um único cêntimo – quando assumiu o controlo do grupo Adidas em Julho de 1990: foi o banco público que financiou a operação, concedendo-lhe um empréstimo de 1,6 mil milhões de francos durante dois anos; um empréstimo que Bernard Tapie nunca foi capaz de reembolsar. Ora, dois anos mais tarde, após muitas peripécias, se o banco, na altura gerido por Jean-Yves Haberer, tivesse sido uma instituição normal; se o Palácio do Eliseu não tivesse deixado claro que Bernard Tapie estava sob a sua protecção e em breve seria ministro, a história teria terminado aí: O Crédit Lyonnais teria colocado em jogo as garantias que tinha sobre as acções Adidas de Bernard; o grupo de desporto teria ficado sob controlo público, pelo menos temporariamente; e não teria havido qualquer litígio comercial nos anos seguintes. Também não teria havido qualquer arbitragem dezasseis anos mais tarde. O caso Tapie teria terminado em 1993, com a queda do empresário preferido dos socialistas.

Em suma, Bernard Tapie beneficiou de tratamento preferencial indigno de uma democracia, em 1993, porque era um dos protegidos de François Mitterrand. E foi graças a isto, sem nunca ter investido um único cêntimo na Adidas, que ele conseguiu, muito depois, intrigar nos corredores do poder de Sarkozy, para obter uma arbitragem, no preciso momento em que arriscava perder o seu confronto legal com o ex-banco público perante os tribunais da República.

Seria, portanto, errado ver Bernard Tapie como um simples aventureiro nos negócios ou na política, que devia a sua excepcional carreira ou longevidade ao seu temperamento – mesmo que isso nunca lhe tivesse faltado. Para além do seu próprio carácter efervescente, ele era antes de tudo um reflexo das eras por que passou. Foi assim o símbolo dos “anos de dinheiro” que marcaram o fim da segunda presidência de Mitterrand, deste período condenatório para o socialismo francês, que favoreceu “aqueles que enriquecem enquanto dormem” – segundo a famosa frase de François Mitterrand -, deste período de naufrágio marcado por uma cascata de escândalos, salpicando muitos dos associados do Palácio, como os de Pechiney-Triangle ou do Crédit Lyonnais.

E muito depois, ele é também um dos símbolos do capitalismo de Fouquet que, sob a presidência de Sarkozy, viu o mundo empresarial viver mais do que nunca em total consanguinidade com as cúpulas do poder.

Bernard Tapie, então Ministro dos Assuntos Urbanos, nas escadas do Palácio do Eliseu em Paris, após o primeiro conselho de ministros do novo governo de Pierre Bérégovoy, 8 de Abril de 1992. Foto Jean-Loup Gautreau e Michel Clément / AFP

Se Bernard Tapie é uma figura que diz muito sobre a vida política francesa e as redes de influência que a rebaixam, isto não pára no final da presidência Sarkozy; continua sob a presidência Hollande. Um interlúdio em particular confirma isto: sem o apoio do seu amigo Claude Bartolone, na altura presidente socialista da Assembleia Nacional, que interveio junto de François Hollande, Bernard Tapie nunca teria podido comprar (com o dinheiro da arbitragem fraudulenta) o grupo de imprensa La Provence, no final de 2012, ou seja, numa altura em que ele já era objecto de uma investigação judicial por burla e desvio de fundos públicos – inicialmente, a qualificação era mesmo “burla com bando organizado”.

Se o infatigável Bernard Tapie teve um talento inegável durante todos estes anos, é antes de mais o de explorar todos os privilégios e vantagens que o capitalismo de conluio ao estilo francês permite, este capitalismo incestuoso [capitalisme de barbichette] organizado com base no intercâmbio mútuo de favores. Ele explorou-os certamente melhor do que qualquer outra pessoa. Além disso devemos ter em mente que este capitalismo consanguíneo pode ter várias caraas. Há o capitalismo de conivência da classe alta, aquele encarnado durante muito tempo por Alain Minc, que entrou no Palácio do Eliseu através do pátio principal; e depois havia o capitalismo menos educado de conivência, aquele encarnado por Bernard Tapie, que também teve as suas entradas no Palácio do Eliseu, mas na maioria das vezes por uma porta das traseiras. Mas estas são duas facetas do mesmo universo. Como relatámos no passado (leia-se aqui), os dois homens cruzaram-se e procuraram fazer negócios juntos.

O outro efeito espelho de Bernard Tapie diz obviamente respeito à justiça. Pois se há alguma prova de que a justiça em França pode correr gravemente mal; que por vezes é poluída por interferência do poder; e que, em suma, não é verdadeiramente independente, é certamente este caso Tapie que fornece a ilustração mais marcante. Enquanto este caso começou exactamente há 27 anos, com o litígio entre o empresário e o seu banco, o ex-Crédit Lyonnais (cujos ativos duvidosos foram adquiridos em 1995 por uma estrutura pública de liquidação chamada CDR – para Consortium de réalisation) relativamente à venda, em Fevereiro de 1992, do grupo desportivo Adidas, é impressionante notar que no dia da morte de Bernard Tapie, alguns dos procedimentos legais (civis, penais, fiscais…) ainda não estavam concluídos ou só estavam concluídos há muito pouco tempo. Este caso Tapie é um exemplo clamoroso do fiasco improvável que às vezes pode resultar de um sistema de justiça que não é independente e pode mesmo estar sob influência.

A instrumentalização do sistema de justiça dizia respeito em primeiro lugar à parte civil do processo – a parte que dizia respeito à venda da Adidas. Em direito, numa democracia pacífica preocupada com a correcta administração da justiça, o caso era bastante simples de julgar. Porque conflitos como o existente entre Bernard Tapie e o seu banco, o antigo Crédit Lyonnais, existem em abundância na vida empresarial. Teria o banco respeitado o mandato de venda da Adidas que o seu cliente Bernard Tapie lhe tinha dado? Ou será que o traiu ao agir secretamente como contraparte, ou seja, ao fazer parte da mesa dos compradores? Teria ela, em suma, falhado em ser leal ao seu cliente, afirmando defender os seus interesses mas tendo tomado partido dos compradores? Esta disputa comercial é perfeitamente banal. E a justiça deveria ter sido fácil. Mas, de facto, tudo saiu dos carris muito rapidamente!

No início, muito rapidamente, os procedimentos legais foram suspensos porque Bernard Tapie foi apanhado noutros casos, em particular o do jogo de futebol OM-VA [Olympique de Marseille-Valenciennes] manipulado, e foi colocado em detenção.

O processo civil, que deveria julgar se o Crédit Lyonnais tinha ou não enganado o seu cliente [em 1993], só foi realmente retomado no início dos anos 2000. Mas em 2004, foi novamente suspenso porque o Ministro das Finanças da altura, Nicolas Sarkozy, que é próximo de Bernard Tapie, tentou, a seu pedido, impor uma mediação entre este último e o CDR [consórcio de liquidação do ex-Crédit Lyonnais].

Tendo a mediação falhado, foi apenas em 2005 que o processo civil foi finalmente acelerado. Nesse ano, o Tribunal de Recurso proferiu uma decisão inicial que foi bastante favorável a Bernard Tapie. Mas em 2006, o Tribunal de Cassação anulou forçosamente a decisão. O processo foi então remetido para um tribunal de outra jurisdição e o Tribunal de Cassação tinha, em tal medida, controlado o reenvio que o resultado judicial era quase certo: entendia-se na altura que alguns meses mais tarde, o tribunal de referência decidiria definitivamente a favor do CDR, ou seja, do Estado, e que Bernard Tapie perderia em breve o processo.

Foi então que ocorreu a reviravolta mais espectacular e insana da história. Assim que foi eleito, o novo presidente, Nicolas Sarkozy, deu instruções para suspender o curso da justiça ordinária – no momento em que o Estado estava prestes a ganhar o seu caso – e para remeter o caso para um tribunal privado de arbitragem.

O resto da história é bem conhecido: constituído pouco depois, o tribunal arbitral proferiu a sua sentença um ano mais tarde. E inverte completamente o acordo: Tapie ganha, e embolsa uma fortuna de 404 milhões de euros, incluindo uma indemnização de 45 milhões por alegado prejuízo moral, o que choca todo o país.

O problema é que … ! Quando, a partir de Setembro de 2012, a investigação judicial confirmou que numerosas irregularidades tinham sido cometidas durante a arbitragem, os processos civis foram relançados. Com base em documentos do processo penal, o Tribunal de Recurso proferiu a sua primeira decisão em 17 de Fevereiro de 2015, anulando a arbitragem com base no facto de ter sido fraudulenta.

Vinte e um anos após o seu início, a disputa comercial entre Bernard Tapie e o CDR sobre a venda da Adidas está de volta ao ponto de partida. O Tribunal de Recurso deve, portanto, mais uma vez julgar se Tapie foi ou não enganado em 1993 pelo seu banco.

E foi finalmente a 3 de Dezembro de 2015 que o Tribunal de Recurso proferiu a sua decisão final: todas as reivindicações de Tapie foram rejeitadas; ficou claramente estabelecido que nunca tinha sido enganado pelo seu banco.

Neste mês de Dezembro de 2015, parece claro que Bernard Tapie terá de devolver os 404 milhões de euros da arbitragem fraudulenta, mais os juros que correram desde 2008, ou seja, um total de quase 450 milhões de euros na altura (mais de 500 milhões hoje em dia).

Bernard Tapie e Nicolas Sarkozy

Mas é então que a justiça sofre um novo abalo. Em várias ocasiões, o Tribunal de Comércio de Paris recusou-se a ordenar a liquidação do grupo Tapie e, ao ordenar a sua reorganização, impediu de facto o Estado de recuperar a sua dívida. Em suma, o Tribunal Comercial de Paris entrava a execução da decisão do Tribunal da Relação de Paris que ordenava a Tapie a devolução do seu saque. Esta obstrução é tanto mais espectacular quanto o caso Adidas acaba perante o Tribunal de Cassação, que condena definitivamente Bernard Tapie em Maio de 2017 a devolver as somas fraudulentamente recebidas.

Foi uma causa perdida! O Tribunal de Comércio de Paris ainda resiste a favor de Bernard Tapie. E só em Maio de 2020 é que o Tribunal Comercial de Bobigny (para onde o caso foi transferido) pronunciou a liquidação judicial do grupo Tapie, abrindo caminho para o Estado recuperar o crédito que tinha sobre Tapie.

Mas apesar deste julgamento, parece que as coisas pouco mudaram. Se bem que muitos dos bens e contas bancárias de Bernard Tapie tenham sido congelados durante a instrução penal, o Estado, tanto quanto sabemos, ainda não recuperou o seu crédito. A morte de Bernard Tapie, que ipso facto acarreta a extinção da ação do Ministério Público, levanta uma série de questões: o Estado, que recentemente reclamou mais de 550 milhões de euros de Bernard Tapie (ou seja, muito mais do que a fortuna que ainda detinha), terá a mínima hipótese de recuperar, pelo menos parcialmente, as somas que lhe são devidas? As apreensões que tinham sido feitas pelos tribunais sobre certos bens não são elas anuladas devido à morte, arruinando ainda mais as hipóteses do Estado recuperar a sua parte e permitindo aos herdeiros do ex-empresário manterem parte do saque? Em suma, Bernard Tapie desapareceu, mas o lado civil do caso está mais confuso do que nunca.

No caso do processo penal, o fiasco judicial é ainda mais devastador. Porque a acção pública também se extingue com a morte de Bernard Tapie. Não haverá, portanto, verdade judicial para esta parte do caso, que era, no entanto, uma das mais importantes.

Para compreender a bagunça a que chegámos, basta lembrar que após a arbitragem que concedeu 404 milhões de euros a Bernard Tapie em Julho desse ano, os primeiros indícios de irregularidades foram revelados muito rapidamente, particularmente pela Mediapart em Julho de 2008. Mas, sob a presidência de Nicolas Sarkozy, o sistema de justiça permaneceu inerte. E foi só após a mudança, em Setembro de 2012 [eleição de François Hollande], que o procurador público abriu finalmente uma investigação judicial.

Iniciaram-se então investigações judiciais muito longas, trazendo à luz novas irregularidades, que levariam à anulação da arbitragem em 2015, com base no facto de ter sido fraudulenta.

Uma vez concluída a investigação judicial, teve lugar um primeiro julgamento criminal, onde foram julgados seis arguidos, incluindo o próprio Bernard Tapie, o seu advogado Maurice Lantourne, o actual chefe de Orange Stéphane Richard e um dos três árbitros, Pierre Estoup. O julgamento levantou uma questão jurídica complexa: a fraude estabelecida no processo civil constituía ela uma fraude criminal?

Bernard Tapie com os seus advogados no tribunal de Paris, a 21 de Março de 2019. Foto Kenzo Tribouillard / AFP

 

No entanto, contra todas as expectativas, o Tribunal Penal de Paris absolveu finalmente Bernard Tapie e os outros cinco arguidos a 9 de Julho de 2019. Na altura, assinalámos que o caso Tapie também se estava a transformar num fiasco judicial na sua vertente penal, uma vez que a decisão estava cheia de incoerências. Entre as muitas aberrações que revelámos, havia esta em particular: Perante o Tribunal de Justiça da República, Christine Lagarde, Ministra das Finanças na altura dos acontecimentos, tinha sido anteriormente condenada (mas isenta de pena) a 19 de Dezembro de 2016 por desvio de fundos públicos cometido por um terceiro e resultante da negligência de uma pessoa responsável pela autoridade pública; mas perante o Tribunal Penal de Paris, o seu então Chefe de Gabinete, Stéphane Richard, sobre o qual pesavam pesadas queixas semelhantes, foi absolvido, uma vez que os magistrados não lhe impuseram a acusação de desvio de fundos públicos.

Como pôde um tribunal considerar que tinha havido um desvio de fundos públicos enquanto o outro considerava que a acusação era inexistente? Foi esta razão, e muitas outras, que, de qualquer modo, levou a acusação a recorrer. Inicialmente, o Tribunal de Recurso deveria ter julgado novamente o caso em Outubro de 2020. Mas no início do julgamento, a defesa de Bernard Tapie tinha apresentado um pedido de adiamento com o fundamento de que este, de 77 anos, sofria de um duplo cancro do estômago e do esófago, e não estava capaz para assistir a todas as audiências. Em 26 de Outubro de 2020, o Tribunal de Recurso de Paris decidiu, portanto, adiar o julgamento para 10 de Maio de 2021.

Sabemos o que aconteceu a seguir: as audiências mal tinham sido retomadas quando Bernard Tapie anunciou que o seu estado de saúde já não lhe permitia estar presente e recusou deixar que os seus advogados o representassem na sua ausência. Isto deu um golpe fatal no processo penal, porque mesmo que os factos estivessem estabelecidos por uma investigação judicial muito longa, depois discutida longamente na presença de Bernard Tapie durante o julgamento da primeira instância, suspeita-se que um julgamento Tapie sem Tapie perderia subitamente muito do seu interesse.

A 6 de Outubro de 2021, o Tribunal de Recurso de Paris emitirá o seu acórdão no caso da arbitragem fraudulenta. Dirá portanto respeito aos outros cinco arguidos, mas não a Bernard Tapie, que agora desapareceu.

À custa da lentidão senão mesmo de entraves, treze anos após os acontecimentos, a justiça ainda não fez o seu trabalho. O desaparecimento de Bernard Tapie marca assim o epílogo do naufrágio judicial…

É provável que todos estes casos venham a ter muitas mais réplicas judiciais durante muito tempo. Em particular, há ainda um outro aspecto, um aspecto fiscal, sobre o qual a justiça terá de se pronunciar. Este último caso diz respeito a Éric Woerth, o actual presidente (LR) da comissão de finanças da Assembleia Nacional, que está a ser acusado pelos tribunais de factos desde o tempo em que era ministro do orçamento sob o comando de Nicolas Sarkozy. Em 2013, Mediapart revelou uma gravação de Bernard Tapie mostrando que tinha ido ao Palácio do Eliseu para negociar o montante dos impostos que devia ao Estado na sequência da arbitragem. Depois, em Dezembro de 2015, revelámos que Éric Woerth tinha dado um presente de 58 milhões de euros a Tapie, do montante de impostos que devia às autoridades fiscais.

E foi este caso que levou o Tribunal de Justiça da República a abrir uma investigação judicial por “corrupção” na secção fiscal do caso Tapie, e a colocar Eric Woerth sob exame em Julho de 2021.

Mas estas réplicas não podem esconder o facto principal: Bernard Tapie, um lutador incansável, ganhou à sua maneira o confronto final e interminável com a justiça, deixando-nos antes de a justiça ter a última palavra sobre a vertente penal do caso. O epílogo desta história é ainda mais espectacular do que isso. Pois, no final, Bernard Tapie partiu, levando consigo o seu segredo principal, do qual nunca quis falar. Por que razão Nicolas Sarkozy aceitou interromper o curso da justiça comum para confiar a um tribunal privado a disputa comercial que o seu amigo Bernard Tapie estava prestes a perder? Quais eram as ligações que uniam os dois homens?

Bernard Tapie desapareceu, mas o mistério permanece.

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O autor: Laurent Mauduit, jornalista francês, é co-fundador de Mediapart. Foi jornalista no Quotidien de Paris (1979), depois na Agence Centrale de Presse (1979-1984), no La Tribune de l’économie (1984-1990). Chefe do departamento económico do Libération (1991-1994) antes de se juntar ao Le Monde, responsável pela política económica francesa (1995-1999), depois editor-chefe do departamento comercial (1999-2003), director editorial adjunto (2003-2005), redactor editorial (2006). Deixa o Le Monde em Dezembro de 2006, em desacordo com a política editorial. Autor dos seguintes livros: Histoire secrète des dossiers noirs de la gauche (em colaboração), Éditions Alain Moreau, 1986; La grande méprise (em colaboração), Grasset, 1996; La gauche imaginaire et le nouveau capitalisme (com Gérard Desportes), Grasset, 1999; Voyage indiscret au coeur de l’État (em colaboração), Éditions Le Monde-Le Pré aux Clercs, 2000; Les stock-options (com Philippe Jaffré), Grasset, 2002; L’adieu au socialisme (com Gérard Desportes), Grasset, 2002; Jacques le Petit, Stock, 2005; Petits conseils, Stock, 2007; Sous le Tapie, Stock, 2008; Les 110 propositions, 1981-2011 – Manuel critique à l’usage des citoyens qui rêvent encore de changer la vie, Don Quichotte, 2011 (obra colectiva dos editores da Mediapart); Les imposteurs de l’économie, Editions Gawsewitch, 2012; L’étrange capitulation, Editions Gawsewitch, 2013; Tapie, le scandale d’Etat, Stock, 2013; A tous ceux qui ne se résignent pas à la débâcle qui vient (Don Quichotte, 2014); Main Basse sur l’information (Don Quichotte, 2016); La Caste. Enquête sur cette haute fonction publique qui a pris le pouvoir (La Découverte, Setembro de 2018); Prédations. Histoire des privatisations des biens publics, (La Découverte, Setembro de 2020).

 

 

 

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