A Guerra na Ucrânia — “Erros, tanto tácticos como com consequência estratégica”.  Por Alastair Crooke

 

Seleção e tradução de Francisco Tavares

20 m de leitura

 

Erros, tanto tácticos como com consequência estratégica

 

 Por Alastair Crooke

Publicado por em 18 de Abril de 2022 (original aqui)

 

© Photo: REUTERS/Dado Ruvic

 

O resultado mais provável é a economia da Rússia não entrar em colapso (mesmo que a UE arrisque tudo com a energia e em “tudo o resto”).

Os falcões da NATO americanos e europeus e os intervencionistas liberais querem, acima de tudo, ver Putin, humilhado e repudiado. Muitos no Ocidente querem a cabeça ensanguentada de Putin no topo de uma estaca sobre o “portão da cidade”, visível a todos como um aviso retumbante para aqueles que desafiam a sua “ordem internacional baseada em regras”. O seu alvo não é apenas o Paquistão ou a Índia, mas a China, primordialmente.

No entanto, os falcões vêem que não se atrevem – não podem – arriscar tudo. Apesar da beligerância e da postura, eles querem a vertente cinética do conflito confinada dentro das fronteiras da Ucrânia: Nada de botas americanas no chão do terreno (embora aquelas cuja própria existência não pode passar pelos nossos lábios já lá estejam, e tenham estado “a dar as ordens”).

O Pentágono, ao menos uma vez (pelo menos), não vê com agrado arriscar uma guerra com a Rússia que degenere, e possa evoluir para o uso de armas nucleares. (Esta posição, porém, está agora a ser contestada pelos principais neocons que argumentam que os receios de que a Rússia recorra às capacidades nucleares são exagerados, e devem ser postos de lado).

Assim, para cumprir estas grandes agendas, o Ocidente limitou-se (desde 2015) a treinar e armar quadros de elite (como o regimento Azov), e a assegurar a sua ligação a todos os níveis (incluindo no topo) da liderança política e militar ucraniana.

O objectivo aqui tem sido o de sustentar o conflito (uma vez que uma rotunda vitória não é uma opção): Quanto mais tempo a guerra continuar, segundo a narrativa dos EUA, mais as 5.000 sanções impostas à Rússia prejudicarão a economia russa e minarão insidiosamente o apoio público russo à guerra.

A experiência adquirida com a Síria permeia o espaço de batalha: Para as forças russas, a experiência de limpar Aleppo dos extremistas jihadistas tem sido formativa. E, para o Comando de Operações Especiais dos EUA que treina estas unidades de elite ucranianas, as qualidades de pura crueldade e perturbações de falsa bandeira (aperfeiçoada pelos seus anteriores protegidos de Idlib) parecem ter impressionado suficientemente os seus antigos instrutores ocidentais para garantir que fosse transmitida a uma suposta insurreição liderada por Azov, embora operando a partir do pólo oposto da ideologia da insurreição.

Há motivos para pensar que o FSB (Serviço de Segurança da Rússia) pode ter subestimado a forma como o recurso a tácticas de gestão populacional ao estilo Idlib poderia deixar mesmo uma população civil pró-russa maioritária demasiado intimidada para repelir eficazmente o domínio ao estilo Azov. Como consequência, as forças russas tiveram de combater mais do que o previsto. Isto pode ter sido um erro táctico, mas não foi um erro estratégico.

Há de facto um grande erro estratégico – que é a decisão tomada pelo Ocidente primordialmente de travar uma guerra financeira contra a Rússia – que pode muito bem revelar-se a perdição da agenda da guerra ocidental. (A insurreição ucraniana, na prática, limitou-se em grande parte a dar mais tempo às sanções e às superdimensionadas operações psicológicas de guerra, particularmente para que estas façam mossa na psique doméstica russa).

Bem, eis o busílis da questão: em Março, o Presidente Biden apresentou-se perante o Congresso e vangloriou-se que o rublo russo tinha caído 30% e o mercado de acções russo 40%. A economia russa, disse ele, estava a caminho do colapso; a Missão estava a caminho da sua conclusão.

No entanto, ao contrário da expectativa do G7 de que as sanções ocidentais fariam colapsar a economia russa, o Financial Times está a reconhecer: “Sussurra-o silenciosamente … Mas o sistema financeiro russo parece [hoje] estar a recuperar do choque inicial das sanções“; o “sector financeiro russo está a recuperar a avalanche inicial das sanções“. E as vendas de petróleo e gás da Rússia – a mais de 1.000 milhões de dólares por dia em Março – significam que este país continua a acumular grandes ganhos estrangeiros. Tem o maior excedente em conta corrente desde 1994, uma vez que os preços da energia e das matérias-primas subiram em flecha.

Ironicamente, as perspectivas económicas da Rússia hoje em dia, em muitos aspectos, parecem melhores do que as do Ocidente. Tal como a Rússia, a Europa ou já tem – ou terá em breve – uma inflação de dois dígitos. A grande diferença é que a inflação russa está a cair, enquanto que a da Europa está a subir ao ponto (nomeadamente com os preços dos alimentos e da energia) em que estas subidas provavelmente irão desencadear indignação e protesto popular.

Bem … tendo o G7 percebido mal (a crise política, afinal de contas, estava prevista para suceder na Rússia – e não na Europa), os Estados da UE parecem agora estar com a intenção de redobrar os esforços: “Se a Rússia não colapsou tal como se esperava, então a Europa deve dar o grande salto: simplesmente tirar tudo“. Que nenhum navio russo entre nos portos da UE; que nenhum camião atravesse as fronteiras da UE; nenhum carvão; nenhum gás – e nenhum petróleo. “Nem um euro a chegar à Rússia” é o grito.

Ambrose Evans-Pritchard escreve no Telegraph, “Olaf Scholz deve escolher entre um embargo energético à Rússia, ou um embargo moral à Alemanha“:

” … a recusa da Europa Ocidental em cortar o financiamento da máquina de guerra de Vladimir Putin é insustentável. Os danos morais e políticos para a própria UE estão a tornar-se proibitivos. A política já é um naufrágio diplomático para a Alemanha, atónita ao descobrir que o Presidente Frank-Walter Steinmeier é um pária – o Kurt Waldheim da nossa época? – tão manchado por duas décadas como o obscuro senhor da conivência com o Kremlin, que a Ucrânia não o quer no país. O arrastar dos pés não faz justiça ao povo alemão, que apoia esmagadoramente uma resposta que esteja à altura da ameaça existencial que a ordem liberal da Europa enfrenta agora”.

Aqui está claramente a grande agenda revista, Mark II: a Rússia está a sobreviver à Guerra do Tesouro porque a UE ainda compra gás e energia à Rússia. A UE – e mais especificamente a Alemanha – está a financiar a “grotesca guerra não provocada” de Putin – diz a narrativa. “Nem um euro para Putin!

O segundo erro estratégico é a incapacidade de compreender que a resiliência económica da Rússia não decorre só de a UE continuar a comprar gás à Rússia. Mas antes de a Rússia jogar de ambos os lados da equação – ou seja, ligando o rublo ao ouro, e depois ligando os pagamentos de energia ao rublo – e viu a sua moeda apreciar-se.

Desta forma, o Banco da Rússia está fundamentalmente a alterar todos os pressupostos de trabalho do sistema de comércio global – (isto é, substituindo as transações evanescentes em dólares por transações sólidas em divisas, respaldadas por matérias-primas) – ao mesmo tempo que desencadeia uma mudança para o papel do ouro, de volta a ser um baluarte que sustenta o sistema monetário.

Paradoxalmente, os próprios Estados Unidos prepararam o terreno para esta mudança para o comércio em moeda local através da sua confiscação sem precedentes das reservas da Rússia, e da ameaça ao ouro da Rússia (… se ao menos pudesse deitar-lhe as mãos). Isto assustou outros Estados que temeram ser os próximos na linha, incorrendo no “descontentamento” caprichoso de Washington. Mais do que nunca, o não-Oeste está agora aberto ao comércio em moeda local.

Esta estratégia “de boicote à energia russa” é “para a Europa, uma cortina”, é claro. Não há forma de a Europa substituir a energia russa por outras fontes nos próximos anos: Nem da América; nem do Qatar, nem da Noruega. Mas a liderança europeia, consumida por um frenesim de “ultraje moral” perante uma inundação de imagens atrozes da Ucrânia, e uma sensação de que a “ordem liberal” a qualquer custo deve evitar perder no conflito da Ucrânia, parece estar pronta a arriscar tudo (“a pôr toda a carne no assador”).

Ambrose Evans-Pritchard continua:

“O dique político está a rebentar na Alemanha. Die Welt captou o estado de espírito exasperado dos meios de comunicação social, chamando ao caso de amor da Alemanha com a Rússia de Putin “o maior e mais perigoso erro de cálculo da história da República Federal”. Os presidentes dos comités de relações externas, defesa e Europa do Bundestag – abrangendo os três partidos da coligação – todos apelaram a um embargo petrolífero na quinta-feira. “Temos finalmente de dar à Ucrânia o que ela precisa, e isso inclui armas pesadas. Um embargo energético completo é exequível”, disse Anton Hofreiter, o presidente dos Verdes do comité Europa”.

Os custos de energia mais elevados implícitos no corte da energia russa simplesmente eviscerarão o que resta da competitividade da UE, e provocarão uma hiper-inflação e agitação política. Será isto uma parte da agenda original da NATO de manter a América “dentro”; a Rússia “fora”; e a Alemanha “em baixo”?

Há linhas de falha graves que irradiam desta tentativa da UE-EUA de reafirmar o seu “liberalismo” – uma tentativa que insiste em não tolerar qualquer “alteridade”. Em questões como a agenda de uma elite científico-tecnológica e sobre “vencer” na Ucrânia, não pode haver outra perspectiva. Estamos em guerra.

Então, o que irá acontecer? O resultado mais provável é a economia da Rússia não entrar em colapso (mesmo que a UE arrisque tudo com a energia e em “tudo o resto”). A China apoiará a Rússia, e a China é a “economia global”. Não pode ser sancionada para que capitule.

Xeque-mate? Bem, qual poderá ser o Plano III do Ocidente? O frenesim bélico, o ódio visceral, a linguagem que parece destinada a excluir um “chegar a um acordo político” com Putin, ou a liderança de Moscovo ainda lá está, e os neocons estão a cheirar a oportunidade:

“O intelectual neoconservador, antigo escritor de discursos de Reagan, John Podhoretz, escreveu recentemente uma coluna triunfante intitulada, ‘Neoconservadorismo: Uma reivindicação. A peça Comentário declarou que arquitectos da Guerra ao Terror como ele próprio estão agora ‘de volta ao topo’, tendo os acontecimentos mundiais provado que estão correctos sobre tudo – desde o policiamento comunitário à guerra”.

Não só estão de volta ao topo, afirma Podhoretz, como os neocons conquistaram os seus principais inimigos intelectuais quando se trata do quadro moral da dissuasão. Isto representa o novo ‘jogo’ interno na questão da Ucrânia: Os neoconservadores pensam que foram reivindicados pela Ucrânia.

Claro que, quando a invasão do Iraque terminou com um monumental débacle, os neocons foram universalmente ridicularizados, com Podhoretz balbuciando desculpas. Sem surpresas, na sua esteira, a validação original da intervenção militar americana entrou num declínio acentuado, e as sanções do Tesouro entraram na guerra quando a intervenção exigiu “sem botas no terreno”.

Daí que os Neocons partilhem o juízo errado de que a guerra do Tesouro, acompanhada com operações psicológicas extremas, poderia reduzir Putin “ao seu tamanho”.

Os neocons estão encantados com o fracasso da guerra financeira. Do seu ponto de vista, coloca a acção militar novamente em cima da mesa, com a abertura de uma nova “frente”: Um ataque contra a premissa chave original de que uma troca nuclear com a Rússia deve ser evitada, e o elemento cinético do conflito, cuidadosamente circunscrito para evitar esta possibilidade.

É verdade que agir com firmeza em 2008 ou 2014 teria significado arriscar o conflito“, escreveu Robert Kagan na última edição do Foreign Affairs, lamentando a recusa dos EUA em confrontar militarmente a Rússia mais cedo:

Mas Washington está a arriscar-se a um conflito agora; as ambições da Rússia criaram uma situação intrinsecamente perigosa. É melhor para os Estados Unidos arriscarem o confronto com potências beligerantes quando se encontram nas fases iniciais de ambição e expansão, não depois de já terem consolidado ganhos substanciais. A Rússia pode possuir um arsenal nuclear temível, mas o risco de Moscovo o utilizar não é mais elevado agora do que teria sido em 2008 ou 2014, se o Ocidente tivesse intervindo nessa altura. E tem sido sempre extraordinariamente pequeno: Putin nunca iria obter os seus objectivos destruindo-se a si próprio e ao seu país, juntamente com grande parte do resto do mundo”.

Em resumo, não se preocupe em entrar em guerra com a Rússia, Putin não vai usar a bomba. A sério? Porque deveria pensar que isso é certo?

Estes Neocons são profusamente financiados pela indústria da guerra. Nunca são retirados das redes. Eles entram e saem do poder, estacionados em lugares como o Conselho de Relações Exteriores ou Brookings ou a AEI, antes de serem chamados de volta ao governo. Têm sido tão bem-vindos na Casa Branca de Obama ou de Biden, como na Casa Branca de Bush. A Guerra Fria, para eles, nunca terminou, e o mundo permanece binário – “nós e eles”, o bem e o mal.

Mas o Pentágono não compra isso. Eles sabem o que a guerra nuclear implica. Portanto, o resultado final é que as sanções prejudicarão, mas não farão colapsar a economia russa; a verdadeira guerra (e não a guerra de propaganda psicológica sobre a incompetência e fracasso militar russo) será ganha pela Rússia (com qualquer fornecimento militar da UE e dos EUA de grandes equipamentos à Ucrânia a ser vaporizado à medida que atravessam a fronteira); e o Ocidente experimentará o que mais teme: a humilhação na sua tentativa de reafirmar a ordem liberal baseada em regras.

A Europa receia que, sem uma reafirmação retumbante, verá aparecer fracturas em todo o mundo. Mas essas fracturas já estão presentes: Trita Parsi escreve que “os países não ocidentais tendem a ver a guerra da Rússia de forma muito, muito diferente”:

“As exigências ocidentais de que façam sacrifícios dispendiosos cortando os laços económicos com a Rússia para manter uma “ordem baseada em regras” deram origem a uma reacção alérgica. Essa ordem não tem sido baseada em regras; em vez disso, tem permitido aos EUA violar impunemente o direito internacional. A mensagem do Ocidente sobre a Ucrânia levou a sua surdez de tom a um nível completamente novo, e é pouco provável que ganhe o apoio de países que muitas vezes experimentaram os piores lados da ordem internacional”.

Do mesmo modo, o antigo Conselheiro de Segurança Nacional indiano, Shivshankar Menon, escreveu em Foreign Affairs, que “Longe de consolidar “o mundo livre”, a guerra sublinhou a sua incoerência fundamental. Em qualquer caso, o futuro da ordem global será decidido não pelas guerras na Europa, mas pela contenda na Ásia, sobre o qual os acontecimentos na Ucrânia têm um peso limitado“.

A característica mais saliente da primeira volta das eleições presidenciais francesas da semana passada foi que mesmo que Macron vença a 24 de Abril (e os poderes estabelecidos e os seus meios de comunicação social farão tudo para garantir a sua vitória), essa vitória será pírrica. A maioria dos eleitores franceses votou a 13 de Abril contra um sistema de bloqueio de interesses entre o Estado e a esfera empresarial.

Os eleitores franceses sentem-se num desgovernado comboio de inflação mais elevada, níveis de vida em declínio, mais regulamentação supranacional, mais NATO, mais UE, e mais diktats americanos.

Agora, dizem-lhes que o aumento dos preços dos alimentos, do aquecimento e dos combustíveis é o preço que vale a pena pagar para paralisar a Rússia e a China e “preservar o tecido moral da ordem liberal”.

Se quisermos caracterizar esta ‘guerra’ não dita, é que Macron fala (em baixo) a La France, em abstracto. Le Pen, pelo contrário, tem falado com o povo francês, e falando de política com a qual se podem relacionar de uma forma pessoal. Nas eleições, as antigas categorias tradicionais e “contentores” da política francesa: a Igreja Católica; o Partido Republicano e o Partido Socialista tornaram-se insignificantes.

O Presidente Eisenhower, no seu discurso de despedida de 1961, previu claramente o cisma que se aproximava:

Hoje, o inventor solitário foi ofuscado por grupos de trabalho de cientistas em laboratórios e campos de ensaio. Da mesma forma, a universidade, historicamente manancial das ideias livres e das descobertas científicas, experimentou uma revolução na condução da investigação. Em parte devido aos enormes custos envolvidos, um contrato governamental torna-se praticamente um substituto da curiosidade intelectual. Por cada velho quadro negro existem agora centenas de novos computadores electrónicos.

A perspectiva de que os académicos da nação sejam dominados pelo emprego federal, a atribuição de projectos, e o poder do dinheiro está sempre presente – e deve ser seriamente considerada.

No entanto, ao mantermos o respeito pela investigação e descoberta científica, como devemos, devemos também estar atentos ao perigo igual e oposto de que a própria política pública possa tornar-se cativa de uma elite científico-tecnológica”.

Esta é a guerra.

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O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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