CARTA DE BRAGA – “da chupeta e do telemóvel” por António Oliveira

Assisti à primeira parte desta estória, sentado na esplanada de uma pastelaria, ainda não havia o frio nem as chuvadas intensas que nos escangalharam os últimos tempos, mas confesso sinceramente que ficcionei a segunda parte, tendo por base uma outra visão do mesmo par, ela uma senhora bem arranjada, pertencente ao que, neste país, se costuma chamar classe média, carteira arrumada na cadeira vaga no lado esquerdo e, ‘ele, uma rapazito pequeno, rabo inchado pela fralda, mas irrequieto e mexendo-se agarrado às pernas da mãe’, com aqueles quase gritos com que as crianças tentam chamar a atenção, mas a mãe, absorvida e alheada do mundo pelo telemóvel, não lhe presta qualquer atenção.

O rapazito, puxa-lhe a saia, salta ou faz que salta, sem tirar os pés do chão, olha em volta, talvez a procurar ajuda e, depois de uns momentos quieto e calado, enche o peito e manda um grito de desespero, daqueles de arrepiar os tímpanos e, só então, a senhora sai do seu castelo, olha furiosa o rapazito e, num instante chama a empregada, pergunta quanto deve, deixa o dinheiro em cima da mesa, agarra no rapazito sem lhe dizer uma só palavra, atravessa o passeio para se meter num carro de boa marca, instala-o no banco de trás, como ditam as regra e, ala que se faz tarde! 

Volta dois ou três dias depois, ela bem arranjada como sempre, mas o rapazito agora ‘armado’ com uma chupeta, na tentativa vã de lhe arranjar qualquer coisa com que ele se entretenha, adormeça ou se até consegue ‘brincar’ com aquela coisa; negócio falhado pois o rapazito, assim que se apanha na cadeira, logo pede chão e, agarrando-se às pernas da mesa consegue chegar às da mãe, que já não afasta o olhar do telemóvel. 

As duas ou três pessoas que ali estávamos, clientes habituais de pastelaria, assistimos então a uma reprise do que se passou dias antes. Ela, uma associação perfeita entre o telemóvel e o ser humano, talvez ele confluindo nela ou ela nele, mas os dois sempre a preterir tudo o que decorre ao lado, com ou sem fralda, com ou sem chupeta, regressando a este mundo só quando alguém gritar, se calhar o rapazito.

Imagino-o agora a acordar manhã ainda cedo, a pôr-se de pé na camita à procura da mãe, a servir-se de uma das barras do canto da camita, descer ladino para o chão e, procurar, com cautela e em silêncio, a chupeta que já começam a tirar-lhe quando  chega a hora de dormir, mas ao chegar à cama da mãe, olha com espanto aquele telemóvel a espreitar pela borda da mesinha de cabeceira. 

Agarra-o, encosta-o à face, lambuza-o com beijos, senta-se no chão, telemóvel bem agarrado com as duas mãos, esquece a chupeta e, por muito que seja complicado entender, aquele rapazito, rabo inchado pelas fraldas, descobriu, ao acordar, o primeiro amor da sua vida. 

Não seria?

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

 

 

2 Comments

Leave a Reply to António OliveiraCancel reply