ALGUMAS NOTAS SOBRE O TERRAMOTO DE 1755 – por CARLOS LOURES.

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1.Introdução

Eram as 9,30 do dia 1 de Novembro de 1755. Dia santo, grande parte da população de Lisboa encontrava-se nas igrejas. Subitamente, um rugido medonho subiu das entranhas da terra e sucessivos abalos destruíram em minutos uma das maiores e mais ricas cidades da Europa. Aos abalos sucedeu um pavoroso tsunami e um enorme incêndio. O cálculo do número de vítimas mortais vai em alguns autores até quase às cem mil (a cidade teria 275 000 habitantes).

O primeiro abalo, o mais forte terá durado entre três e nove minutos, embora o cálculo da duração tenha sido feito por métodos empíricos. Pensa-se que terá atingido o grau 8,7 na escala logarítmica de Richter. Abriu fendas com cinco metros de largura. Minuto e meio depois, uma violenta réplica provocou o tsunami com vagas que atingiram os 20 metros e devastaram o que o abalo deixara de pé. Horas depois, desencadeou-se um forte incêndio que completou a destruição.

A Sul, a região de Setúbal e o Barlavento algarvio foram também grandemente afectados. É muito difícil imaginar como seria hoje Lisboa se não tivesse sido flagelada pelo terramoto de 1755. É praticamente incalculável o valor do que se perdeu – conventos, palácios, igrejas, o Castelo, a sumptuosa Ópera do Tejo, a Casa da Relação, o Paço da Ribeira (e a sua valiosa biblioteca de 70 mil volumes), a Torre do Tombo, o Hospital de Todos-os-Santos as livrarias do marquês de Louriçal e dos conventos de S. Domingos, do Carmo, do Espírito Santo, documentos, quadros, baixelas valiosas… Sabemos o que se ganhou, a nova cidade pombalina , construída em cima das ruínas da urbe medieval. O terramoto impressionou vivamente a Europa da época.

Numerosas obras literárias se inspiraram ou se referiram ao cataclismo – entre muitos outros, nomes com os de Voltaire, Kant, Humboldt, Goethe, Le Brun, padre Feijoo, Charles André, Goldsmith, Baretti, Lemercier. Em 26 de Janeiro de 1531, Lisboa fora abalada por um outro sismo de grande intensidade. Segundo descrições coevas, terá durado «o tempo de um credo», durante o qual ruíram cerca de mil e quinhentas casas e numerosas igrejas. Há uma colorida descrição de Garcia de Resende. Gil Vicente esforçou-se por explicar as causas naturais da catástrofe, contrapondo-as à generalizada opinião de que ela significou «um castigo de Deus» pelos desmandos dos homens. Nos próximos dias, iremos falar do terrível Terramoto de 1755 – o Terramoto de Lisboa, como ficou conhecido.

2 – O ANTECEDENTE DE 1531

Com um epicentro algures entre Azambuja e Vila Franca de Xira, no dia 26 de Janeiro de 1531, Lisboa ficou parcialmente destruída por um terramoto que, segundo se julga, pouco terá ficado a dever ao de 1755. No entanto, a cidade não era tão grande, nem tão populosa, embora para a época, fosse considerada de enorme dimensão – teria cerca de 100 mil habitantes (contra os 275 mil de 1755). As zonas da cidade que foram atingidas não terão também sido as mesmas.

Como exemplo desta afirmação, o Hospital de Todos os Santos, no Rossio, não foi atingido, vindo porém a desaparecer no sismo de 1755. Sabe-se também que, com menos danos registados, o Ribatejo e o Alentejo foram regiões duramente atingidas. Desde o dia 7 que se verificavam abalos, mas o mais grave foi o de 26 quando, ao princípio da madrugada, a terra tremeu por três vezes.

Não há registo de maremoto, tsunami ou grandes incêndios, como na catástrofe de 224 anos depois. Em todo o caso, o número de vítimas que a tradição consagra é o de 30 mil. Tendo em conta a população da cidade, foi igualmente uma tragédia de grandes dimensões. Por outro lado, as fontes de informação disponíveis para estudar o terramoto de 1755, não são tão copiosas para o de 1531. Sabemos, no entanto, que houve danos muito consideráveis. Na principal rua de Lisboa, a Rua Nova, caiaram varandas e muitos dos edifícios abriram enormes fendas. Uma parte do palácio real, o Paço da Ribeira, sofreu grandes estragos.

A Torre de Belém e o Mosteiro de Belém (Jerónimos) foram também duramente atingidos. António de Castilho, filho do arquitecto João de Castilho, descreveu os estragos em Lisboa, particularmente no Rossio, onde caiu a Igreja de Nossa Senhora da Escada., uma parte do Paço dos Estaus, parte das naves do Convento de São Domingos (onde está hoje o Teatro de D. Maria II). Houve danos na Sé, no Convento do Carmo, na Igreja de São João da Praça e, como já, disse, numa ala do Paço da Ribeira.

De notar que o Bairro Alto, um dos primeiros bairros europeus a ser construído com planta em quadrícula, foi edificado para responder à destruição provocada pelo terramoto de 1531. Especulação sobre os terrenos, comprando quase de graça e vendendo depois por preço elevado, foi o negócio de um tal Duarte Belo (de que ainda existe memória numa Rua da Bica Duarte Belo, aquela que é percorrida pelo elevador da Bica). Era um armador e negociante que possuía na Boavista (onde fica a rua do mesmo nome) umas casas e um terreno no qual existia uma bica, designada pelos seus utentes como «Bica dos Olhos ».

Em 1726, publicava-se em Lisboa no «Arquipégio Medicinal» um anúncio recomendando, como remédio infalível para terçolhos e outros males da vista, a lavagem dos olhos na «Bica do Duarte Belo ». Tinha de ser antes do Sol nascer, para garantir a cura. O rei D.João III que estava no Paço de Benavente, teve ir para Alhos Vedros e depois para Azeitão, porque os seus aposentos de Benavente ficaram destruídos. Em Santarém, na Castanheira, em Vila Franca de Xira, na Azambuja, onde sacudidos pelo sismo os sinos tocaram sozinhos, no Lavradio, em Setúbal. Digamos que o terramoto de 1531 afectou toda a região de Lisboa e o vale do Tejo. Os testemunhos, muito mais escassos do que os de 1755, existem, no entanto: Além do já citado António de Castilho, há uma carta de um anónimo castelhano ao marquês de Tarifa, Fradique Enríquez de Ribera, descrevendo as destruições em Lisboa, nomeadamente na Rua dos Fornos, onde ruíram numerosas casas e as da Rua Nova. Na carta, descrevia-se também o pavor da população lisboeta que dormia vestida para poder fugir ao primeiro sinal de novo sismo. Como disse Garcia de Resende na sua »Miscelânea», referindo-se também a este terramoto: «Todos com medo que haviam deixaram casas, fazendas; nos campos, praças dormiam em tendilhões e em tendas, casas de ramas faziam; as mais noites velando, temendo e receando; porque tremor não cessava; a gente pasmada andava com medo, morte esperando».

Em 1755, a par com as «explicações» tradicionais – castigo divino pelos desmandos humanos – surgiram abordagens diferentes, científicas umas (com os naturais limites da ciência contemporânea) e outras procurando explicar racionalmente o que sucedera. Em 1531, o estado dos conhecimentos sobre o mosaico multidisciplinar que permite compreender fenómenos naturais desta natureza, era mais do que incipiente. No entanto, quando frades de Santarém relacionaram os danos verificados na cidade pela presença de judeus, ou melhor, de «cristãos novos», visto que os judeus haviam sido expulsos no reinado de D. Manuel, Gil Vicente combateu esta tentativa de culpabilizar os hebreus, numa carta que leu perante os próprios frades, atacou as prédicas dos clérigos que aterrorizavam os fiéis anunciando-lhes que os cataclismos eram resultado da ira divina contra os pecados dos homens. Com o mesmo esclarecedor objectivo, escreveu uma carta a D. João III condenando a perseguição aos judeus. Curioso o facto de, em 1755, uma das tais «explicações» encontradas para o sismo, tenha sido a das perseguições feitas aos judeus, a par com hábitos debochados importados de França e de Itália e com a proibição de os crentes lerem a Bíblia.

Como ficou Lisboa depois deste terramoto, sabêmo-lo cruzando os dados que nos proporcionam as obras de Cristóvão Rodrigues de Oliveira, «Lisboa em 1551» («Em que brevemente se contêm algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa», «Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552», de João Brandão (de Buarcos) e na «Descrição da Cidade de Lisboa», de Damião de Góis.

3 –  COMO TUDO SE TERÁ PASSADO

O sismo que conhecemos como o Terramoto de 1755, é por muitos considerado como o maior sismo de que há notícia histórica. Lisboa, por ser a mais importante cidade atingida, deu-lhe o nome, mas o abalo foi sentido com violência também no Algarve, no Sul de Espanha e em Marrocos. Sem causar prejuízos, sentiu-se em toda a Europa, nos Açores e na Madeira. Para Norte de Lisboa, a intensidade foi sendo menor, embora registando-se danos em Alenquer, Torres Vedras e Óbidos.

Em Lisboa, no dia um de Novembro, um sábado, o tempo estava quente para a época, atribuindo-se essa circunstância a uma antecipação do Verão de São Martinho. A temperatura andava na ordem do 14 graus centígrados. Em 31 de Outubro a maré atrasara-se mais de duas horas. A hora a que o sismo teve início é objecto de alguma controvérsia, podendo ser calculado entre as 9,30 e as 9,45. Ouçamos um dos relatos do acontecimento, feito por uma testemunha ocular (Joaquim José Moreira de Mendonça in «História Universal dos Terremotos que tem Havido no Mundo, de que há notícia, desde a sua criação até o século presente», Lisboa, 1756 – citado por Helena Carvalhão Buescu em «O Grande Terramoto de Lisboa», 2005) :

«Sábado, primeiro de Novembro, e vigésimo oitavo da Lua, amanheceu o dia sereno, o Sol claro, e o Céu sem nuvem alguma. Durava já esta serenidade por muitos dias do mês de Outubro, sentindo-se maior calor que a estação do Outono prometia. Pouco depois das nove horas e meia da manhã, estando o Barómetro em 27 polegadas, e sete linhas, e o Termómetro de Réaumur em 14 graus acima do gelo, correndo um pequeno vento Nordeste, começou a terra a abalar com pulsação do centro para a superfície, e aumentando o impulso, continuou a tremer formando um balanço para os lados de Norte a Sul, com estrago dos edifícios, que ao segundo minuto de duração começaram a cair, ou a arruinar-se, não podendo os maiores resistir aos veementes movimentos da terra, e à sua continuação.

Duraram estes, segundo as mais reguladas opiniões, seis para sete minutos, fazendo neste espaço de tempo dois breves intervalos de remissão este grande Terremoto. Em todo este tempo se ouvia um estrondo subterrâneo a modo de trovão quando soa ao longe». Segundo a maioria dos testemunhos registados, o grande abalo dividiu-se em três fases: uma primeira com a duração aproximada de minuto e meio, pouco violenta, intervalo de um minuto, um movimento mais intenso durante cerca de dois minutos e meio, provocando já danos consideráveis; outro intervalo de um minuto, seguindo-se a terceira e última fase por três minutos, a mais violenta de todas. Total, cerca de nove minutos.

Segundo algumas descrições, na terra abriram-se fendas das quais emanaram vapores sulfúricos, fechando-se umas e permanecendo outras. Observaram-se fenómenos luminosos, tais como faíscas saindo do chão. Para além do índice de elevada destruição causada pelos abalos, logo eclodiram incêndios por toda a Baixa. O fogo lavrou por seis dias, destruindo muito do que resistira ao tremor de terra e matando também muita gente. Por volta das onze da manhã do dia um, estava já a cidade destruída, chegaram as vagas de um tsunami. As águas do Tejo desceram, arrastando os barcos ancorados e, em seguida, começaram a subir, entrando pela Baixa dentro, trezentos ou quatrocentos metros. Só às sete horas de domingo, a maré normalizou.

Perante o grau de destruição produzido pelo grande terramoto, as medidas tomadas pelo Marquês de Pombal demonstram a capacidade daquele político e a forma pragmática como encarou a terrível catástrofe. Um inquérito à escala nacional foi por ele determinado. Um formulário com 13 questões foi impresso com elevada tiragem e os exemplares distribuídos pelas paróquias, pois sabia-se ser esta a forma mais expedita de o fazer chegar a todas as partes.

Eis as perguntas: 1º. – A que horas principiou o terremoto do primeiro de Novembro e que tempo durou? 2º. – Se se percebeu que fosse maior o impulso de uma parte que de outra? Do norte para sul, ou pelo contrário, e se parece que caíram mais ruínas para uma que para outra parte? 3º. – Que número de casas arruinaria em cada freguesia, se havia nela edifícios notáveis, e o estado em que ficaram. 4º. – Que pessoas morreram, se algumas eram distintas? 5º. – Que novidade se viu no mar, as fontes e nos rios? 6º. – Se a maré vazou primeiro, ou encheu, a quantos palmos cresceu mais do ordinário, quantas vezes se percebeu o fluxo, ou refluxo extraordinário e se se reparou, que tempo gastava em baixar a água, e quanto a tornar a encher? 7º. – Se abriu a terra algumas bocas, o que nelas se notou, e se rebentou alguma fonte de novo? 8º. – Que providências se deram imediatamente em cada lugar pelo Eclesiástico, pelos militares e pelos Ministros? 9º. – Que terremotos têm repetido depois do primeiro de Novembro, em que tempo e que dano têm feito? 10º. – Se há memória de que em algum tempo houvesse outro Terremoto e que dano fez em cada lugar? 11º. – Que número de pessoas tem cada Freguesia, declarando, se pode ser, quantas há de cada sexo? 12º. – Se se experimentou alguma falta de mantimentos? 13º. – Se houve incêndio, que tempo durou, e que dano fez? Extra – Se padeceu alguma ruína no terremoto de 1755 e em quê e se já está reparado.

Considerando a época, dizem os especialistas que este inquérito foi redigido de uma forma notável, procurando com o seu leque de perguntas a obtenção de informações de tipo «macrosísmico» como se faz com as escalas de danos desenvolvidas século e meio mais tarde e que ainda hoje são as que vigoram, tais como a Escala Mercalli Modificada (IMM) ou, a mais recente, a European Macroseismic Scale-98 (EMS-98). O grande geólogo Luís Francisco Pereira de Sousa (1870-1931) usou os dados obtidos pelo inquérito do Marquês para um estudo profundo sobre os danos previsíveis para construções e monumentos. O sismo de 1909 em Benavente, obrigou os sismólogos a estudarem de novo o grande terramoto de 1755. Mas vejamos, da forma sucinta que se impõe, como é que a população correspondeu ao inquérito que, com a grande maioria de analfabetos existente, deve ter dado bom trabalho a párocos e seus ajudantes.

Mas às ordens do Marquês, tinha de se obedecer. Vê-se que houve zonas, talvez por terem sido menos atingidas, em que a informação quase não existe, como por exemplo os Distritos do Porto, Braga e Viana do Castelo. O que dissemos sobre o analfabetismo, e as consequentes dificuldades de interpretação, explica a falta de homogeneidade no corpo das informações. Por exemplo, a duração do sismo é descrita, não em termos de contagem feita por relógio, mas comparativamente à duração de uma oração. As Ave-Marias e Credos prevaleceram como medidas, pelo que se calcula entre 7 e 8,15 minutos. A descrição do ruído que antecedeu ou acompanhou o abalo sísmico, repete-se na maioria das respostas – primeiro um grande estrondo e depois uma vibração, o ranger das estruturas das casas.

Até hoje não se deixaram de fazer estudos sobre o que aconteceu em Lisboa naquele dia. Por exemplo, num trabalho de 2005, Hubert Reeves entende que a construção urbana lisboeta fugia à tipologia-padrão da época, com prédios muito altos e ruas muito estreitas, pelo que o colapso de um edifício implicava a queda de outros, num literal efeito de dominó. Na realidade, os maiores danos foram no tecido urbano da Baixa onde se concentrava o centro medieval por excelência – casas com o exterior em alvenaria e o interior em madeira (ou taipa) e que subiam a quatro, cinco ou mesmo seis pisos. O número estimado de vítimas é muito variável.

Calculando-se em 270 mil pessoas a população da cidade (das quais, 150 mil com mais de sete anos), cálculos moderados apontam para cinco mil mortos durante o terramoto e mais cinco mil nos dias seguintes, em consequência de ferimentos ou de doenças contraídas. Mas há estimativas diferentes que apontam para vinte mil mortos e outras ainda mais catastrofistas que chegam às cem mil. Sabe-se que o contacto entre as placas tectónicas Euro-Asiática e Africana, serão em princípio, o motivo da frequência com que se verificam sismos em Portugal. Porém, uma explicação científica do que aconteceu, não cabe neste texto. Essa explicação envolve áreas do conhecimento como a sismologia, a geotecnia, a engenharia.

Sabemos que, apesar dos estudos que se têm feito ao longo de dois séculos e meio ainda não existem explicações cabais que permitam evitar uma catástrofe semelhante no futuro. Interessantes são algumas das explicações encontradas na época. Para já a da Igreja, a do costume – foi castigo divino pelos pecados cometidos. Dois motivos para que Portugal tivesse sido escolhido como alvo prioritário: a proibição da leitura da Bíblia e a perseguição dos Judeus pela Inquisição. Não faltaram outras explicações, astronómicas, astrológicas e, por exemplo, de natureza geológica, provocado o sismo por «forças do interior da Terra».

4 – O TERRAMOTO E A CULTURA EUROPEIA

Em textos anteriores, vimos já que se perdeu muita coisa importante no Terramoto de 1755 – os seis hospitais da cidade, incluindo o de Todos-os-Santos, 33 palácios da grande nobreza, o Palácio Real, a Patriarcal, o Arquivo Real, a Casa da Índia, o Cais da Pedra, a Alfândega palácios, igrejas, bibliotecas, a faustosa Ópera do Tejo, inaugurada sete meses antes… Na «Gazeta de Lisboa» do dia 6 de Novembro, afirmava-se que «O dia primeiro do corrente mês ficará memorável pelos terremotos e incêndios que arruinaram uma grande parte desta cidade». Diga-se, de passagem, que a «Gazeta» nunca interrompeu a sua publicação devido ao sismo, constituindo uma importante fonte de informação sobre o que aconteceu.

O que se ganhou, também sabemos: uma cidade nova, muito moderna para a época em que foi construída e, pormenor importante, edificada de acordo com um sistema anti-sísmico – a famosa estrutura flexível de madeira dos edifícios, «em gaiola». Como disse José Augusto França, a nova Lisboa saída do inspirado traço de Eugénio dos Santos, surge como uma autêntica «cidade das luzes», uma obra emblemática do espírito do iluminismo.

Dada a necessidade de uma reconstrução rápida, optou-se por uma tipologia despojada de ornatos, um estilo que resulta de uma mistura de elementos que, segundo o Professor Nelson Correia Borges, se inspira « num passado arquitectónico, recente ou longínquo, de Lisboa, numa combinação de maneirismo revivido com alguns pormenores empobrecidos do barroco e do rococó». Em todo o caso, apesar desse despojamento formal que caracteriza o «pombalino», a reconstrução deu – nos uma praça de beleza ímpar, à maneira das «praças reais» europeias – o Terreiro do Paço (uma das derrotas do Marquês, que quis crismar o largo como Praça do Comércio, nome que ainda hoje figura nas placas toponímicas).

Mas não só na arquitectura houve ganhos – o grande sismo e a destruição de Lisboa, tiveram repercussões na cultura da segunda metade do século XVIII. Numa época em que os filósofos punham em causa princípios considerados até então intocáveis, uma tal catástrofe, destruindo em minutos uma das maiores cidades da Europa, que tantas centenas de anos levara a edificar, dava que pensar. Era a insustentável fragilidade da condição humana face à incomensurável grandeza… de quê? De Deus? Da Natureza? Diversos vultos da cultura europeia lhe dedicaram escritos. A catástrofe foi motivo para equacionar questões importantes que mexiam com a religião, com os conceitos filosóficos, com o papel atribuído ao homem no palco do mundo. As grandes interrogações que se punham, pelo menos na Europa das Luzes, poucas décadas antes da Grande Revolução de 1789, eram a prevalência (ou não) da vontade divina e a margem de manobra que o homem tinha para decidir o seu devir.

Em síntese – Deus e o homem – quem decidia o quê. Tudo isto (principalmente aqui, com a Inquisição de ouvidos espalhados por toda a parte) tinha de ser dito com cuidados funambulescos, avançando-se sobre um estreito arame de conceitos, não fosse no meio das deambulações filosóficas escapar-se alguma heresia e cair-se em cima da fogueira. como iremos ver, às vezes acontecia. Sobre o que se escreveu, Europa fora, acerca do terramoto, os exemplos mais citados são «O Poema sobre o desastre de Lisboa», escrito em 1756 por Voltaire (1694-1778) e a consequente «Carta a Voltaire» de Jean-Jacques Rousseau (1712- 1778), os «Escritos sobre o Terramoto de Lisboa», de Immanuel Kant (1746-1781) e palavras de Goethe (1749-1832) que, dissertando sobre a catástrofe, disse “porventura em algum tempo o demónio do terror espalhou por toda a terra, com tamanha força e rapidez, o arrepio do medo”. O poema de Voltaire tem como “subtítulo” ou “título alternativo” as palavras que se seguem: «Ou exame do axioma “”Tout est bien quand finit bien”». Voltaire contraria o pressuposto de que o mundo criado por Deus, está de tal maneira bem organizado que, quando ocorre um «mal necessário», a Divina Providência logo compensa os homens com um «bem» que supera esse mal. Utiliza o terramoto que destruiu Lisboa como um argumento que contraria aquele conceito optimista e conducente ao fatalismo que não deixa margem de manobra à intervenção humana. Digamos que a reflexão voltaireana introduz o determinismo como elemento a tomar em consideração. Tornou-se óbvio desde logo que, na mira de Voltaire, estavam os postulados metafísicos de Leibniz (1646-1716) segundo os quais o nosso mundo é o melhor, pois foi o escolhido e criado por Deus. Na «Teodiceia», Leibniz atacava frontalmente todas as tentativas filosóficas para contrariar a religião. Voltaire, no poema, perguntava ironicamente como é que a bondade de Deus permitiu uma tal tragédia. Em Candide, ou l’optimisme (1759) o terramoto de Lisboa é também referido como negação desse optimismo defendido por Leibniz. Por seu turno, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) 1756, na sua “Lettre sur la Providence” (1756), contraria a posição de Voltaire, sem contudo apoiar a teodiceia leibniziana. Segundo Rousseau, a culpa do que ocorreu em Lisboa, não seria de Deus, nem o drama terá decorrido de causa natural.

Os motivos da tragédia teriam de ser procurados na corrupção da «integridade» dos homens, provocada pela degenerescência social, pela usura, por aquilo que Marx no século seguinte definiria como a vertigem da acumulação do capital. Como exemplo, Rousseau, referia o facto de em Lisboa haver cerca de vinte mil casas com seis e mesmo sete andares, o que era contrário à Razão. A cupidez, a ânsia de lucro, a corrupção da natureza humana que Deus atribuiu aos homens, eis a causa da tragédia. Kant, por sua vez, diz nos seus «Ensaios»: «A história não regista outro exemplo de uma agitação das águas tão grande e tão extensa numa tão larga superfície da Terra». E, mais adiante, referindo-se à generalidade das pessoas: «Como o terror lhes rouba a reflexão, julgam que estas grandes desgraças são das tais que não se podem minorar por qualquer precaução e supõem que a dureza do destino só pode ser abrandada por uma submissão cega e entregam-se completamente à misericórdia ou à cólera divina».

Houve também os que não especularam e se limitaram a descrever. Um bom exemplo desse formato é o de J.R.A. Piderit (1710-1791), que diz em «Freye Betrachtung über das neuliche Erdbeben zu Lisabon» (Marburgo, 1756, citado por Isabel Barreira de Campos em «O Grande Terramoto -1755», Lisboa, Parceria, 1998): «As nossas casa tremiam como folhas das árvores, e os nossos corações como as nossas casas. Imaginai, ó vindouros, o pavor com que o ranger e o ribombar da queda dos edifícios, que ruíam em massa, nos abrasava, como um fogo, até à medula dos ossos. Aqui uma caterva de gente contorcia-se sob os escombros, nas mais cruenta agonia. Além gritos lancinantes de morte coavam através das pedras e da terra, e a ninguém era possível acudir aos desventurados que se debatiam sozinhos. Mas além um desgraçado rasgava as unhas e a carne até aos ossos, a fim de salvar a sua pobre vida de uma cova – tal, porém, para nada mais lhe valendo senão para se tornar em coveiro de si mesmo, porquanto, com suas mãos, preparava o próprio túmulo».

5. ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DO TERRAMOTO

Em Portugal, com a Inquisição a ser usada pelo marquês como polícia política, fiava mais fino. Em todo o caso, publicaram-se numerosas obras sobre a catástrofe. A maioria delas, descritivas, sem grandes incursões no território perigoso das razões filosóficas ou religiosas, tanto mais que o marquês depressa fez saber a sua opinião através de um panfleto que foi profusamente distribuído – o sismo fora motivado por causas naturais, não haviam intervindo forças sobrenaturais. Ponto final.

Um dos mais elucidativos exemplos desta forma prudente de abordagem é a de Paulino António Cabral, Abade de Jazente com «Ao Terramoto do Primeiro de Novembro de 1755. Romance Fúnebre!»: «Um só momento, um só, porém terrível Abre, rompe, destrói, faz em pedaços Os doces lares, as sublimes torres, Os Templos Santos, e os Palácios altos. A rude queda das paredes rotas Devora vidas mil por modos vários; Pois sendo um só destino, é bem diversa A morte que resulta dos acasos.» É uma reflexão filosófica sobre o efeito que «um só momento» pode ter no frágil mundo dos humanos e a imponderabilidade do destino. Muitos outros livros houve, como por exemplo a «Nova e Fiel Relação do Terremoto, que experimentou Lisboa e todo Portugal no 1º de Novembro de 1755», de Miguel Tibério Pedegache, ou, de D.J.F.M., Teatro Lamentável, Cena Funesta: Relação Verdadeira do Terremoto do primeiro de Novembro de 1755», ambos publicados em 1756. A lista completa de títulos é grande e, para o que pretendo dizer, inútil.

Entre as excepções à onda descritiva ou meramente oratória, refiro duas das transgressivas – a do padre Malagrida e a de Cavaleiro de Oliveira. Que não tiveram um final feliz, diga-se. Francisco Xavier Oliveira, o famoso Cavaleiro de Oliveira, com o seu «Discurso Poético sobre as Calamidades presentes sucedidas em Portugal. Seguimento do Discurso Patético, ou Resposta às Objecções e aos Murmúrios que esse escrito sobre si atraiu em Lisboa», dirigindo-se a D. José, afirmava que ignorando a palavra de Deus e perseguindo tantos inocentes, os «culpados habitantes de Lisboa» tinham atraído a ira divina. E desenvolvia o mote, acusando implicitamente de ateísmo, com referências pouco discretas, Voltaire e, mais grave, o marquês de Pombal.

O mesmo e pouco original motivo, foi o introduzido pelo padre jesuíta Gabriel Malagrida (1689-1761), um pregador de origem italiana, que esteve como missionário no Brasil durante mais de trinta anos. O seu opúsculo «Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto que Padeceu a Corte de Lisboa no 1º de Novembro de 1755» considerando que a catástrofe era um castigo divino para os desmandos humanos. Já após o terramoto de 1531, clérigos e frades apontaram a mesma causa. Cavaleiro de Oliveira e Malagrida cometeram o erro de contrariar frontalmente o conteúdo do tal folheto que o marquês encomendara e no qual se afirmava que o terramoto era um fenómeno natural, nele não intervindo qualquer força sobrenatural. Ausente de Portugal, Cavaleiro de Oliveira não foi atingido pelo braço da Justiça. Malagrida foi desterrado para Setúbal, mas sendo depois envolvido no processo dos Távoras, entregue à Inquisição acusado de ter produzido afirmações heréticas, foi condenado à morte, estrangulado, o corpo queimado e as cinzas deitadas ao rio. Contrariar o marquês não era nada bom para a saúde. Cavaleiro de Oliveira foi, nesse mesmo auto-de-fé, queimado em efígie.

Procurei, de forma quase telegráfica, abordar muito pela rama as repercussões profundas que o grande terramoto de 1755 e o impacto da destruição da grande cidade de Lisboa, provocaram numa Europa onde a Luz abria temerosamente caminho entre as trevas de ancestrais ignorâncias. Tema que daria para muitos e volumosos livros.

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Bibliografia:

BORGES, Nelson Correia, (1987) em Do Barroco ao Rococó, volume 9 de História da Arte em Portugal, Lisboa, Publicações Alfa.

BUESCU, Helena Carvalhão, (2005) em 1755 – O Grande Terramoto de Lisboa, (2005) :Lisboa, Fundação Luso-Americana/Público,

CAMPOS, Isabel Maria Barreira de, (1998) O Grande Terramoto, Lisboa, Parceria Imp.,

CHANTAL,  Suzanne, (1986)  A Vida Quotidiana em Portugal no Tempo do Terramoto, Lisboa, Livros do Brasil.

 FRANÇA José Augusto, (1983) Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, Bertrand Editora,

FUNDAÇÃO Luso-Americana (2005) 1755 O Grande Terramoto de Lisboa, Lisboa, Fundação Luso-Ameicana/Público,

ROUSSEAU, Jean-Jacques, (2005) Voltaire: O Desastre de Lisboa seguido de Carta a Voltaire, (trad. e pról. de Jorge P. Pires),Lisboa, Frenesi.

SOUSA, Francisco. L. Pereira de, (1922) O Terramoto do 1º de novembro de 1755 em Portugal, vol. III, Lisboa.

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