Uma viagem pelos países da Europa atingidos pelo escândalo da carne de cavalo
Por Júlio Marques Mota
Uma peça dedicada ao meu amigo Gama, à sua égua, às crianças que a montaram
(CONTINUAÇÃO)
Parte III
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As razões de base para uma crise, de calo, de vaca, do que for
Inicialmente, foi uma questão de acaso. Em última análise, tem havido revelações de que não se trata de fraudes isoladas antes pelo contrário e que são também o testemunho, ao mesmo tempo, da crise que atravessa este sector, a da fileira carne do cavalo na Europa e com um conjunto de praticas pouco respeitadoras das normas da indústria agro-alimentar.
O “caso” de carne de cavalo começa a 17 de Setembro de 2012, quando um inspector de saúde do Condado de Newry (Irlanda do Norte) encontra um problema de etiquetagem e de embalagem num stock de carnes sobrecongeladas. Por puro acaso ele veio cair num dos maiores escândalos recentes sobre produtos alimentares .
A carne pertencia à empresa McAdams, uma pequena estrutura de importação – exportação, com base no outro lado da fronteira, na República da Irlanda. Foi necessário algumas semanas para que o processo fosse transferido de um país para outro e depois mais três meses para as autoridades irlandesas subiram na inspecção da fileira desta indústria.
O escândalo rebenta possivelmente em meados de Janeiro: até 29% de carne de cavalo encontra-se na carne picada suposta ser apenas de carne de vaca e que estava à venda nos supermercados Tesco, Iceland e Lidl. A sua origem, a Polónia.
Preocupadas, muitas unidades industrias de processamento de alimentos na Europa começam a realizar testes. E no final de Janeiro, o francês Comigel alerta Findus: as suas lasanhas estão contaminados, até aos 100% em alguns casos.
A marca de sobrecongelados, puxa o sinal de alarme no Reino Unido em 4 de Fevereiro, anunciando que ia retirar os seus produtos. Desde então, dezenas de pratos têm sido retirados das prateleiras dos supermercados e estão já oito países, afectados pelo escândalo: Irlanda, Reino Unido, França, Suíça, Holanda, Bélgica, Alemanha e Suécia.
AFLUXO DE CAVALOS EM MATADOUROS
Não se trata de uma simples fraude, isolada, realizada por um sub-contratante de poucos escrúpulos. O caso é bem mais amplo: três fileiras diferentes, até agora, foram já descobertas . A primeiro na Irlanda, com a carne polaca; a segunda com Comigel com carne romena. A terceira , descoberto esta semana, vem do Reino Unido, onde as autoridades fizeram já três prisões na quinta-feira, 14 de Fevereiro.
Os matadouros Peter Boddy, no Yorkshire (norte da Inglaterra) são acusados de terem enviado as carcaças de cavalos para a fábrica agro-alimentar gaulesa Farmbox Meats, que as transformou em carne picada para hambúrgueres e para espetadas.
Como é que se chegou até aqui ? A explicação é dupla. A primeira é a “crise do cavalo”.
Com a recessão na Europa, muitos proprietários de equídeos não tem os meios para os manter. Uma possibilidade é abandoná-los: a associação World Horse Welfare (WHW) estima que haja 6.000 cavalos a precisarem de encontrar um novo refúgio no Reino Unido.
Uma outra solução é enviá-los para o matadouro. “Incinerar um cavalo custa dinheiro. Fazer deles carne para a indústria ainda dá algumas centenas de euros “, diz Jessica Stark, porta-voz de WHW.
Na Irlanda, o país da Europa que tem a maior concentração de cavalos, 25 000 foram enviados para os matadouros no ano de 2012, contra 2 000 em 2008. No Reino Unido, o número dobrou em três anos para chegar aos 9.000. De repente, a carne de cavalo torna-se muito barata.
Na Roménia, a situação é um pouco diferente, mas o resultado é o mesmo. Uma lei a proibir que haja carros movidos por cavalos nas estradas tornou desnecessários para os seus donos muitos equídeos; muitos, portanto, foram reenviados para os matadouros para abate . Hoje, segundo os preços de um matadouro romeno que consultar, o jornal Le Monde, a carne de cavalo custa metade do preço da carne de vaca .
PRESSÃO FINANCEIRA SOBRE O SECTOR
Nestas condições, há uma grande tentação para substituir uma carne por outra. E é aqui que intervém a segunda explicação: a indústria agro-alimentar mostra-se tanto menos respeitadora das normas quanto ela está centrada na redução dos seus custos.
Um exemplo: o esparguete à bolonhesa sobrecongelados dos supermercados Tesco, subcontratados junto de Comigel, em que se encontrou carne de cavalo até cerca de 60% da carne total . Vende-se pratos de 450 gramas a cerca de 1,20 euros, ou seja em que o prato é barato.
A marca britânica diz-se hoje vítima de fraude e diz que ela nunca mais irá trabalhar com Comigel, uma cez que esta empresa não respeitou o caderno de encargos em que se exigia a garantia de 100% de carne irlandesa de bovino.
No entanto, isto levanta uma questão: como é que um distribuidor britânico pode encomendar ao preço em que foi feito, muitíssimo baixo, a uma fábrica situada no Luxemburgo um prato feito com carne de bovino irlandesa, sem questionar os métodos utilizados?
Legalmente, a Tesco está protegida. As regras europeias exigem simplesmente que as empresas acompanhem os produtos alimentares, uma etapa antes e uma etapa depois:
É preciso saber qual a empresa tinha o ingrediente exactamente antes e para onde o produto vai em seguida. Na época, praticamente ninguém conhece a cadeia de fabricação na sua totalidade.
“Isso poderia ser evitado se as empresas agro-alimentares assumissem as suas responsabilidades e procurassem supervisionar todo o processo . Mas a indústria está sob uma tal pressão financeira que ninguém o quer fazer. A tentação da fraude é óbvia, “acusa Andy Bowles, director de ABC Food Security , uma empresa britânica que forma inspectores em questões sanitárias .
Erica Sheward da Universidade de Greenwich (Reino Unido) confirma esta pressão bem à sua maneira : “Como os consumidores que compram estes produtos de carne picada a 33 cêntimos podem acreditar que são feitos à base de carne de vaca ?”
Esta pressão financeira não é nova, e o escândalo da carne de cavalo não é a primeira fraude. No Reino Unido, dois outros casos foram grandes títulos nos media ingleses nos últimos anos. Em 2009, foi injectado no galinhas um líquido derivado de peles de porco e de carne bovina para ficarem mais inchados r. Alguns anos antes, tinha-se feito passar velhas ovelhas do país de Gales por ovelhas jovens.
“”Deve-se ainda esperar por mais revelações “
Se bem que no meio alimentar, ninguém esteja verdadeiramente surpreendido com este novo escândalo. “Eu não estou surpreendido , testemunhou sob anonimato um inspector de saúde a trabalhar em Londres. “Os supermercados procuram de tal modo esmagar os preços que as derrapagens são inevitáveis .”
Até mesmo o departamento britânico de horticultura e agricultura, que supervisiona a fileira alimentar da carne , o reconhece : ” na sua extremidade , o comércio de carne pode ser bastante problemático,” disse Guy Attenborough, o seu director de relações públicas, que adverte: ” Devemos ainda aguardar mais revelações.”
A Roménia, ” é o suspeito de serviço”
A Roménia, “o suspeito de serviço”, segundo a palavra do seu primeiro-ministro, Victor Ponta, está pois exonerada pelos primeiros resultados da investigação francesa. Na Roménia, as autoridades afirmam-no desde segunda-feira, 11 de Fevereiro: os dois matadouros que tinham sido considerados incriminados exportaram, de facto, carne de cavalo… rotulada, enquanto tal, como carne de cavalo. Não há, portanto, aqui nenhuma fraude, ao contrário do que afirma a empresa Spanghero. Resta pois para os romenos a sensação desagradável de terem feito má figura, desde o início do caso, a figura do culpado ideal . Pensemos bem nisto ! Um país relativamente atrasado para deixar andar a circular nas suas estradas os carrinhos de tracção animal, puxados pelos cavalos…
o episódio faz lembrar outros. A delinquência”romena” estigmatizada em 2011 na rádio pelo ministro francês do Interior na época, Claude Guéant. a campanha preparada por Londres para incentivar os romenos – e os búlgaros – a ficarem em casa, quando as fronteiras do Reino Unido lhes forem abertas, a eles, no início de 2014; as acusações de “dumping social’, lançadas a quando cada deslocalização industrial . “Não há um espectáculo (…) sem que para tal não lhe esteja associado a Roménia”, escreveu em Janeiro, o historiador de arte Colin Lemoine. Por outro lado, os romenos contentam-se simplesmente e muitas vezes com uma fórmula tão límpida como rápida: não somos nós, são os ciganos. Outros suspeitos de’ serviço’ muito convenientes para a situação em presença.