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A propósito de «Nacionalismos» de Ernesto V. Souza – por Carlos Loures

 

Num artigo da rubrica A Galiza como tarefa, Ernesto V. Souza, com a sua proverbial mestria e com a clareza a que nos habituou nos seus textos, expôs uma tese sobre os nacionalismos com a qual só posso concordar parcialmente. O termo tem diversas acepções e na mais corrente, subsidiária dos movimentos de cidadãos na Revolução Americana de 1776 e na Revolução Francesa de 1789, desenvolveu fluxos de opinião tendentes a provar a superioridade de uma dada nacionalidade, etnia, família linguística… No limite, estes movimentos desembocaram no nazi-fascismo que, sob diversas formas, flagelou a Europa (e não só) constituindo causa-próxima para a Segunda Guerra Mundial.  Mas há um outro conceito de  nacionalismo que, partindo também do Século das Luzes, encontrou no Romantismo um campo fértil para se desenvolver – potenciado pela poesia, pela pintura, pela música do grandes mestres românticos, gerou na Europa a febre dos grandes espaços, a nostalgia dos impérios, do heroísmo ao ritmo das árias operáticas – Va’, pensiero, sull’ali dorate./ Va’, ti posa sui clivi, sui coll,/Ove olezzano tepide e molli/L’aure dolci del suolo natal!/Del giordano le rive saluta,//Di sionne le torri atterrate./O mia patria, sì bella e perduta!/O membranza sì cara e fatal! Numa terceira acepção, o vocábulo tem um significado mais simples – é sinónimo de patriotismo, do apego que os naturais de uma nação sentem pela terra-mãe. E nesta acepção menos erudita, o termo não pode ser conotado com correntes políticas – pode-se ser de direita, de esquerda e pode-se ser internacionalista sendo nacionalista. Adaptando uma frase famosa de Charles Fourier, podemos dizer que só podemos amar todo o mundo se amarmos a nossa terra. Pelo tipo de exemplos que refere, dir-se-ia que o nosso companheiro Ernesto V. Souza usa o termo numa acepção mais próxima desta última que referi.

E na minha opinião, procurando um modelo que possa abarcar todos os nacionalismos, constrói uma fórmula de certo modo redutora – o nacionalismo português, desde logo, não cabe na tipologia de nacionalismo serôdio criada neste artigo. O catalão, o basco e o galego merecem também uma atenção particular às especificidades de cada caso. Diz Ernesto V. Souza;

Após uma primeira fase francesa, racionalista e revolucionária, que pretendeu transplantar nos Reinos os princípios de nação e cidadania, entrou em jogo, nas primeiras décadas do século XIX, uma dinâmica constitutiva pós revolucionária, liberal e pragmática que fixava os Estados possíveis em função de interesses políticos, económicos e territoriais do momento. [,,,] A meados do século XIX, por reação a essa construção necessária da identidade, que por imitação do modelo francês, exigia uma unificação da identidade, uma capital e uma centralização não apenas administrativa…

Na época considerada pelo nosso amigo Ernesto Souza, Portugal era um estado independente há sete séculos, com uma língua, uma cultura próprias, e uma capital que não era apenas um centro administrativo, mas um local por onde havia passado muito da História da nação. Em contrapartida, Espanha, o Estado espanhol, criado de jure nas Cortes de Cádis (1812), palmilhava o seu primeiro século de existência. Não fazia, nem faz, sentido falar de nacionalismo espanhol. Como nacionalismo se, usando a fórmula benigna de Filipe VI, «Espanha é uma nação de nações» e na versão mais crítica é um amálgama de nações subjugadas e aculturadas. E diz adiante:

Nessa mesma fase [1820-1875], Espanha e Portugal, ainda são uma hipótese, não fechada como estados. No espaço interno e internacional debate-se intensamente a respeito dos prós e contra de uma unificação Ibérica. Condenados à perda dos seus impérios americanos e habilmente afastados deles e entre eles por uma Inglaterra empenhada em ser o árbitro do mundo em defesa dos seus interesses comerciais e marítimos, num cenário de lógica territorial o iberismo numa Espanha quase já sem colónias e num Portugal que disputa o Brasil os territórios africanos, tem importantes valedores.

Houve, de facto, no Brasil quem propusesse uma invasão militar de Angola, mas o que causava preocupação em Portugal não era esse episódio (que, aliás, é pouco conhecido por aqui). Preocupantes eram as opiniões expendidas pelas potências europeias – Grã-Bretanha, França, Alemanha ou mesmo a pequena Bélgica, perfilhavam a opinião de que Portugal não tinha capacidade económica, social, militar, para ocupar um império colonial tão vasto, isso sabe-se e é apontado como um dos motivos para a entrada de Portugal na Primeira Guerra Mundial. Preocupantes  era os ataques alemães em Angola e em Moçambique, a relutância da Inglaterra em concordar com a entrada de Portugal no conflito. Preocupantes eram as movimentações em Espanha, onde uma corrente de direita, onde se incluía Afonso XIII, considerava Portugal um assunto interno de Espanha e procurava obter da Grã-Bretanha a aceitação de uma aventura militar espanhola, invadindo o nosso país.  Analisando um período que antecede este de que falo, diz Ernesto Souza:

Em 1883 os Federalistas galegos ainda falam na Confederação Ibérica com a integração de Portugal, envolvida já nas brétemas da saudade. O Nacionalismo espanhol de forte base iberista ainda sonha com integrar Portugal,[…] Nessa década de 80-90, na Espanha (intensamente após a reação conservadora contra a construção falida da I República) e em Portugal, o iberismo (que para Vazquez Cuesta ou Teófilo Braga, deixa de ser possibilidade para ficar num componente discursivo anti-británico, ecoando forte após o Ultimatum) é progressivamente substituído por um nacionalismo intenso, focado na fixação da Identidade nacional e no colonialismo (Africanismo), como manifestação do espírito de Grandes potências que invade a Europa e do que emerge o racismo científico e a lingüística.[…] Se na Espanha o federalismo é substituído pelo colonialismo e após a perca de Cuba, centra-se na expansão pelo Norte da África, em Portugal, com um espaço colonial africano muito mais próximo, consolidado (e disputado pela expansão das grandes potências) o Nacionalismo emergente terá um claro componente anti-ibérico, resgatando mitologias históricas anti-castelhanas.[…] O nacionalismo espanhol e português é pois serôdio mas muito intenso. Se em Portugal, tomará as formas de saudade, fronteirização com Espanha e colonialismo imperial; na Espanha, fortemente construído desde o Estado na Restauração Canovista, será continuadamente combatido pelas elites locais, sendo significativamente interessante pela existência e conformação de nacionalismos paralelos, dotados de língua e de próprias dinâmicas, na Galiza, Catalunha e País Basco, em processos que eclodirão como em toda a Europa arredor da Grande Guerra.

Em Portugal, a partir de 1880 e das comemorações camonianas que foram ponto de partida para a campanha republicana que iria culminar 30 anos depois com o derrube da monarquia, os líderes republicanos adoptaram um estilo demagógico, enfatizando o amor pátrio e pondo em causa o patriotismo dos monárquicos. A partir do Ultimato, o facto de não ter havido uma resposta violenta à humilhante ofensa inglesa, foi usado como prova do desprezo monárquico pela honra nacional. Mas essa demagogia, que se prolongou pelo 16 anos da I República, encontrava eco no coração do povo humilde.  Era um sentimento consolidado por sete séculos, forjou-se em guerras, assédios, conspirações. No século XVII, sem recursos económicos, fundindo os sinos das igrejas para fabricar canhões, mobilizando crianças com 16 anos e velhos com mais de 60, canalizando os parcos recursos para o esforço de guerra, construindo ao longo da raia uma linha modelar de fortificações, Portugal bateu-se durante 28 anos contra o estado vizinho e saiu vencedor. O nacionalismo português só foi e é traído pelos poderosos que à independência nacional sobrepõem os seus interesses. Ainda recentemente, Ricardo Salgado, o homem do BES, declarava que veria de bom grado a integração de Portugal no Estado espanhol, pois o seu banco teria boa margem de expansão nas áreas metropolitanas de Madrid e Barcelona.

Pelo que sei do nacionalismo catalão, também ele nada tem a ver com a moda gerada no século XIX. Diferente do português, mais contemporizador com a independência formal, mais habituados os catalães ao convívio com outras nacionalidades dentro de um mesmo Estado, mas genuíno e apegado às suas tradições, à sua língua e cultura. Julgo que os bascos são patriotas de uma maneira semelhante. Na Galiza, pelo que julgo saber, o rexurdimento terá sido tardio, mas não serôdio – termos sinónimos, mas com campos semânticos distintos. Mas da Galiza, o argonauta Ernesto Souza saberá. E sabe de Portugal e da Catalunha – não quero, nem poderia ensinar-lhe. Só lhe lembrei aspectos que não valorizou. Os factos históricos são imutáveis – são o que são, foram o que foram. A sua interpretação é livre, mas ao historiador compete analisar os factos e não refazer a História. A História de Espanha é mentira a partir do título, falando de uma Espanha milenária, quando pouco mais de dois séculos tem. A História de Portugal está eivada de mitos, é verdade, e como Ernesto V. Souza diz, alimenta-se muito da mitologia anti-castelhana – mas as invasões aconteceram, os assédios também, e Portugal manteve-se independente. Construiu uma cultura baseada na língua que nasceu na Galiza. Levou o idioma aos pontos mais longínquos do planeta. Isso pode ser mitificado e Os Lusíadas são uma evidência dessa mitificação, Mas França (para referir apenas um exemplo), a sua história gloriosa não são também um processo de mitificação permanente ? – derrotas militares sucessivas, interrompidas por um corso e logo retomadas (as derrotas) quando o corso saiu de cena? A mitificação que se desculpa a França não pode compreender-se relativamente a Portugal? E os milhões de falantes de português espalhados pelo mundo não são um mito. Algum mérito os portugueses tiveram, não é verdade amigo  Ernesto Souza?

 

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