O saudoso tempo do fascismo – 30 – por Hélder Costa

Lá estava ele, a engraxar os sapatos e de óculos escuros, com tal postura que se eu não o conhecesse diria que era um gajo da Pide.

 

– Eh pá, aconteceu uma coisa chata. Tive um acidente com o carro, não te pude trazer a mala. Convenci os gajos da Pide a deixarem-me vir comprar caramelos e chocolates, só para te avisar.

 

– Afinal, até há gajos porreiros na Pide. Não te esqueças de lhes dar uns rebuçados e Uns brinquedos para os meninos.

 

Uns últimos copos, mais abraços e os velhos conselhos para termos cuidado, até breve e boa viagem.

 

Faltava tempo para o comboio, fui comprar pasta de dentes, um pente, e coisas para a barba, distrai-me numa livraria e numa feira com o olhar e a conversa com uma bela menina, quando cheguei à estação já a máquina tinha arrancado.

 

 – Merda, que chatice, nem nestas alruras tenho juízo!

 

Depois desta auto-crítica, que eu tentei que fosse o mais sincera possível, tinha de arranjar onde dormir algumas horas porque o próximo transporte era um autocar¬ro para Madrid às 5 da manhã. E este não podia falhar, porque era evidente que Badajoz não oferecia segurança nenhuma, dada a conhecida colaboração entre as polícias porruguesas e espanholas.

 

Claro que os hotéis estavam à cunha, e tive de recorrer à velha saída que eu já tinha experimentado noutros países: nos bairros de prostituição tem sempre de haver camas porque senão o negócio ia abaixo, e com o comércio da ternura sexual não se brinca.

 

Lá dormi como pude, até o despertador horroroso me expulsar da cama. Em Madrid gastei umas pesetas no barbeiro e numa camisa, e instalei-me no com¬bóio para Madrid.

 

Está quase, pensava eu, enquanto ia tentando descobrir patrícios portugueses. Parece incrível, mas o combóio ia cheio de Argelinos e Marroquinos, e de Portugueses só viajava a minha miserável espécie.

 

E agora? Único passaporte português, sem mala, com um ar que não tem nada de emi¬grante, como é que vai ser?

 

Felizmente, os companheiros de viagem eram pessoas habituadas a sofrer e ao auxílio mútuo. Deram-me comida e bebida – só água, é lá uma coisa deles – iam trabalhar para a Holanda em fábricas, e uma bela Marroquina ia ser ajudante de enfermagem num hospital para Arnsterdam. Quando chegámos à fronteira, levei uma das malas da minha companheira, por uma questão de cortezia e principalmente porque a polícia não gostaria de ver um português chegar a França só com uma pastinha e um jornal debaixo do braço. O polícia abriu o passaporte, viu os carimbos de passagem das anteriores fronteiras totalmente correctos, era mais uma habilidade do nosso grupo, folheou, carimbou’ e deixou-me passar.

 

 – Já cá estou!

 

Sim, mas ainda faltava outro roque anedótico nesta quase odisseia. A minha companheira pediu-me a mala para tirar uma coisa de que precisava. Abriu e, é claro, a mala estava cheia de roupa interior feminina.

 

E se o polícia me tivesse pedido para abrir a mala? Como é que eu explicava aquela roupa? Dizia que a mala era da minha mulher? E se ele quisesse ver a mala da minha mulher? E se a mala dela tivesse as mesmas coisas, ou ainda pior. .. hachiche, coisas assim, com marroquinos nunca se sabe … E se ela dissesse que não era minha mulher? E se eu dissesse que era travesti, ou artista de variedades? Não, para a outra vez não car¬rego mala de mulher. Peço a um homem para lhe levar a mala … porra, isso ainda é pior, o que é que o gajo vai pensar?

 

 Estava eu nestes pensamentos confusos, e sem saída à vista, quando fui interrompido por um beijo. Nada de alegrias excessivas, era um último beijo de despedida, boa sorte para ti e para ti também.

 

Paris, Austerlitz.

 

Outra vez, mas agora já não era a chegada ou o ponto de passagem de turismo ou de participação em Festivais Internacionais de Teatro.

 

Telefonei para vários amigos Franceses e portugueses, e ninguém atendeu. Era natural, – 17 de Agosto, férias -, fui para o Quartier Latin, para a Maspero, a livraria responsável pela divulgação de textos e formação de milhares de jovens nos anos 60.

 

Ia a chegar à livraria, e encontro o Idálio, um camarada que eu tinha ajudado a fugir um ano antes!

 

Grandes abraços, “afinal, Deus não dorme!”, vais lá para casa, horas depois já tinha umas calças e umas camisas, há cá malta porreira, temos de fazer qualquer coisa, aqueles filhos da puta …

 

Realmente, as coisas tinham dado uma grande volta.

 

A partir daqui, a história era outra.

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