VIDA E MORTE DA «FRENTE AMPLA» – por Carlos Loures

Como disse numa crónica que há dias publiquei, referindo o aproveitamento que a propaganda getulista fez da Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, embora, tendo muito gosto em que os brasileiros me leiam, é sobretudo aos outros leitores de língua portuguesa que dirijo estas reflexões – os brasileiros, de uma forma geral, saberão tudo isto muito melhor do que eu. Muitos deles, os mais velhos, viveram estes dolorosos tempos de que falo – os “anos de chumbo”. Aliás, a própria expressão «anos de chumbo» que aplico a todo o período da ditadura militar, de 1964 a 1985, é pelos especialistas usado apenas  para referir a fase mais repressiva, indo de final de 1968, com a edição do AI-5 em 13 de Mezembro daquele ano, até o final do governo Médici, em Março de 1974. Mas há os que reservam a expressão “anos de chumbo” apenas para o governo Médici.

Se quisermos fixar o momento em que a galopada da direita começou, teríamos de recuar até 1961, quando o presidente Jânio Quadros renunciou ao mandato no próprio ano em que foi empossado, O Vice-presidente, João Goulart assumiu a Presidência, de acordo com o quadro constitucional em vigor. No momento da renúncia de Jânio Quadros, Goulart encontrava-se em visita de Estado à China, o que levou os adversários a impedir a sua nomeação automática como presidente da República, acusando-o de ser comunista. Se estava de visita a um estado comunista é porque era comunista. Não vos parece óbvio? Não? A mim também não. Mas para os adversários de Jango era-o. Conclusão muito conveniente, pois a Constituição brasileira, aprovada em 1946, impedia o acesso de comunistas ao cargo presidencial. Seguiu-se uma demorada ronda de negociações, em que Leonel Brizola (cunhado de Jango) teve um papel preponderante. Essas diligências possibilitaram que Goulart acabasse por ser aceite como presidente.

Em 1963, um plebiscito determinou o regresso ao regime presidencialista e, mercê dessa nova moldura jurídico-institucional, Jango pôde enfim assumir o cargo com amplos poderes. Tudo parecia estar resolvido. Porém, as coisas voltaram a complicaram-se quando militares de baixa patente, sobretudo da Marinha e da Aeronáutica, manifestaram publicamente o seu apoio ao Presidente. A direita logo considerou que esse apoio era feito devido ao resvalamento de João Goulart para posições e medidas esquerdistas ou esquerdizantes. Dizia-se mesmo que estaria prestes a desencadear um golpe antidemocrático para impor um governo radical de esquerda; outros falavam na perspectiva de uma ditadura inspirada no justicialismo ou peronismo da Argentina, levando a que as classes possidentes e os políticos mais conservadores se sentissem ameaçados.

Com estes fantasmas agitados ante os sectores conservadores, a Igreja Católica e os militares de alta patente criaram um cenário perfeito e o clima propício para aquilo que a Direita, pondo as tropas nas ruas, considerou não um golpe, mas o impedimento de um golpe. Um daqueles malabarismos semânticos, tão disparatados e risíveis que só a força das armas consegue sustentar. O governo militar autodesignou-se «Revolução de 31 de Março de 1964», com o objectivo «revolucionário» de acabar com a subversão e a corrupção «marxistas», mantendo, a princípio as eleições presidenciais marcadas para 3 de Outubro de 1965, porém sem a presença de candidatos da extrema esquerda. Digamos que se tratou de uma «Revolução» contra-revolucionária.

Assim, no dia 2 de Abril de 1964, o presidente do Congresso Nacional, declarou vagos os cargos de Presidente e de Vice-presidente. João Goulart, ante as movimentações militares de 31 de Março, apoiadas por governadores estaduais, refugiara-se no Uruguai. O general Mourão Filho, líder do golpe militar, afirmou que João Goulart fora afastado por abuso do poder. Os militares iriam defender a Constituição, disse. E, a princípio, mantiveram os 13 partidos políticos existentes, bem como o Congresso Nacional em funcionamento. Cassaram os direitos políticos dos políticos de esquerda, mas tentaram encostar-se aos partidos políticos sobreviventes para garantir apoio no Congresso e manter pelo menos a aparência de um Estado de Direito. O general Costa e Silva, que aderira à última hora ao golpe, assumiu o ministério da Guerra. A sua influência foi aumentando até se tornar o rosto da linha dura do Exército. Foi o segundo presidente da República do regime, seguindo-se a João Baptista Figueiredo.

As oposições organizadas movimentaram-se e em 25 de Agosto de 1966, foi criada a Frente Ampla, plataforma política onde se reuniam homens como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart, num leque que ia da direita conservadora de Lacerda, ideologicamente próximo dos golpistas, até um João Goulart, mais progressista. Todos contra o Regime Militar. O moderado Juscelino Kubitschek estava exilado em Lisboa e foi Renato Archer, deputado do Movimento Democrático Brasileiro (que não fora posto fora da lei pelos militares) quem mediou as conversações entre o ex-presidente e os outro dois elementos da Frente.

No dia 19 de Novembro de 1966, Lacerda e Juscelino emitiram a Declaração de Lisboa, onde afirmavam a intenção de trabalhar juntos numa frente ampla de oposição. A nota mais saliente desta declaração era o apelo aos cidadãos brasileiros no sentido de apoiarem a formação de um grande partido de base popular. Carlos Lacerda procurou em seguida chegar a um acordo com Jango e com as franjas mais esquerdistas do MDB, a chamada “corrente ideológica”. Tentou mesmo contactos com o Partido Comunista Brasileiro, na clandestinidade. Os militantes comunistas dividiram-se. Uns aprovavam o acordo outros recusavam-no liminarmente. A leitura que faziam era lógica – com Juscelino e Jango exilados, Lacerda seria o único a ganhar com o acordo. Em 1967, Carlos Lacerda foi fortemente pressionado a abandonar a Frente e a colaborar com o Regime Militar. No entanto, Lacerda recusou essas propostas, revelando uma insuspeitada coerência democrática.

E, como jornalista e tribuno, prosseguiu com as suas aceradas críticas ao governo,. Assim, em Agosto de 1967, o então ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva proibiu a sua ida à televisão. Em 1 de Setembro desse mesmo ano, foi determinado que a Frente Ampla seria dirigida apenas por parlamentares e por gente com ligações à Igreja Católica. Decidiu-se também que seriam enviados emissários para mobilizar a opinião pública em torno dos ideais frentistas. No dia 2, porém, um golpe de teatro – 120 dos 133 parlamentares oposicionistas, recusaram-se a participar. Tal como acontecera com os comunistas, estes políticos suspeitavam que Carlos Lacerda pretendia servir-se da Frente como alavanca pessoal – teria a intenção de se candidatar à presidência da República. Apesar das suspeições, Lacerda prosseguiu com as suas diligências e, em 24 de Setembro, foi a Montevideu ao encontro de Jango. No dia seguinte foi emitido um comunicado conjunto em que a Frente Ampla era defendida. Leonel Brizola, também exilado no Uruguai, condenou com violência a aceitação do acordo por parte de Jango. Por seu lado, Lacerda também teve problemas, pois o comunicado anunciando o seu acordo com Goulart foi a gota de água que fez transbordar a taça da paciência dos militares da chamada “linha dura”. Os militares retiraram o apoio que até então tinham concedido a Lacerda.

A Frente, apesar deste parto tão difícil, ganhou pontos ao conseguir implantação entre os estudantes e também entre o operariado. Organizou numerosos comícios e sessões de esclarecimento. Num deles, realizado em Santo André, em Dezembro de 1967 reuniu muitos milhares de manifestantes e em Abril do ano seguinte, em Maringá, concentrou mais de cento e cinquenta mil oposicionistas, sobretudo operários e estudantes. As coisas pareciam correr bem. Porém, em face desta evolução, através de uma portaria do Ministério da Justiça, Costa e Silva proibiu todas e quaisquer actividades da Frente Ampla A Polícia Federal recebeu ordens para prender todos os que, de algum modo, desrespeitassem esta determinação. A Frente Ampla estava fora da lei.

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