GIRO DO HORIZONTE – TEMPOS DE INCERTEZA NO MEDITERÂNEO ORIENTAL – por Pedro de Pezarat Correia

10550902_MvCyL[1]            Todo o mundo é sensível à imagem que o Mediterrâneo Euro-Afro-Asiático[1] transmite, como a zona de mais persistente conflitualidade mundial. Não vamos entrar em pormenor nesta caraterização polemológica, apenas pretendendo, neste espaço obrigatoriamente limitado, chamar a atenção para os novos contornos que os conflitos aí vêm assumindo nestes últimos anos, particularmente no Mediterrâneo Oriental, para L do estrangulamento do Estreito da Sicília (Mapa 1).

MAPA 1 – MEDITERRÂNEO EURO-AFRO-ASIÁTICO

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            Nas últimas décadas do século XX, com o fim da Guerra-Fria e a Globalização anunciando uma nova ordem de concórdia sob tutela da hiperpotência que sobrevivera à disputa bipolar, a conflitualidade no Mediterrâneo Oriental fixou-se na margem N, com o desmantelamento da Jugoslávia e a violência que alastrou pelos Balcãs. Encerrados estes conflitos, mais por exaustão do que pela irradicação das contradições que estavam na sua origem, no final da primeira década do século XXI o foco da conflitualidade transfere-se para a margem S, com as convulsões decorrentes das ilusórias “primaveras árabes”. Entretanto na fachada L continuava o infindável conflito israelo-palestiniano mas passava passava para o primeiro plano das atenções mundiais o agravamento da guerra civil na Síria e os seus reflexos nos vizinhos, Líbano, Israel e Palestina (Gaza). Isto é do domínio público, abundantemente tratado nos media e não vou deter-me aqui.

Pretendo chamar a atenção para dois atores principais neste xadrez geopolítico e geoestratégico e que, neste final de 2013, se apresentam no palco de forma inesperada, não pela presença porque desde sempre fazem parte do elenco, mas pelos papéis que lhes estão a caber. Refiro-me à Turquia e ao Egito.

Peço que observem o Mapa 2. Repare-se como a fachada L do Mediterrâneo que

MAPA 2 – FACHADA LESTE DO MEDITERRÂNEO

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se estende no sentido N-S, é enquadrado, a N pela Turquia e a S pelo Egito, cujas costas se desenvolvem perpendicularmente à da fachada L.

            A Turquia e o Egito são duas potências regionais que apresentam vários paralelismos que importa destacar:

1)      Ocupam ambas posições chaves no controlo da circulação marítima entre o Mediterrâneo e os mares vizinhos, decisivas no escoamento de petróleo e gás natural; a Turquia domina o Mar de Mármara e os Estreitos de Bósforo e Dardanelos, portas de acesso ao Mar Negro e ao Cáucaso; o Egito domina o Canal de Suez, porta de acesso ao Golfo de Aden e ao Oceano Índico.

2)      São duas potências militares, ambas com ligações preferências aos EUA; a Turquia parceira na OTAN, desempenhou um papel decisivo na Guerra-Fria pois tinha fronteiras com a URSS; o Egito, na Guerra-Fria, transferiu-se do campo de influência da URSS para o dos EUA e passou a ser o principal beneficiário da ajuda militar norte-americana no mundo árabe.

3)      Ambas têm tradicionalmente regimes cesaristas, com óbvia vocação dos militares para intervirem na política e assumirem o poder em situações de crise.

4)      Ambas mantém relações ambíguas face ao conflito israelo-palestiniano, por influência dos EUA, contribuindo para a impunidade com que Israel tem ditado as regras na região.

5)      O regime laico, exceção no mundo muçulmano, que a Turquia tem mantido nos últimos tempos, constituiu um modelo atrativo para alguns países saídos das primaveras árabes, tendo-se admitido que pudesse inspirar a Irmandade Muçulmana o Egito, vencedora das primeiras eleições livres ali realizadas.

Este é, a traço largo, o quadro das identidades turco-egípcias. A verdade é que, nos últimos dias, ambos os Estados saltaram para os títulos dos jornais, não exatamente por estas razões.

A Turquia, que vinha azedando as relações com os EUA desde a invasão do Iraque em 2003, que entrara em colisão aberta com Israel, que sofre o maior impacto com os refugiados da guerra civil da Síria foi, de repente, abalada internamente por uma grave crise governamental, por acusações de corrupção no aparelho de Estado e policial, enquanto o povo, que enche as ruas em protesto, nomeadamente o emblemático Parque Gezi, enfrenta vagas de repressão. Os fantasmas da intervenção militar perfilam-se de novo no horizonte.

No Egito os militares, que tinham deixado uma imagem apaziguadora quando do derrube de Mubarak, estão já de regresso ao poder e não tiveram hesitações em declarar como “organização terrorista” a Irmandade Muçulmana que vencera todas as eleições realizadas e que tentara retirar aos militares os poderes desde o tempo da ditadura que estes, institucionalmente, procuravam preservar. A Irmandade Muçulmana, por outro lado, com o imenso aparelho político e social montado desde há décadas, era vista pela juventude e pelos setores laicos da “primavera árabe” como tendo empalmado a revolução. Aqui é o radicalismo islâmico que espreita.

A situação é extremamente complexa e não favorece prognósticos sobre desenvolvimentos prováveis. Em termos gerais digamos que a “primavera” pode estar a aproximar-se da Turquia onde irá ter de se confrontar com os militares que aguardam a sua hora e que pode estar de regresso no Egito onde os militares já se instalaram no poder. Em ambos os países a mesquita nunca estará ausente.

A entrada no ano 2014 vai, certamente, trazer surpresas. Para já o ocidente está inquieto e perante uma armadilha, pois já não sabe até que ponto deve apoiar movimentos potencialmente democráticos e eleições livres que, no final, se viram contra os seus interesses. A globalização e a exportação de estereótipos ocidentais, afinal, não será a receita milagrosa. E a instabilidade endémica na fachada L vai sofrer novos impulsos, encaixada que está entre duas potências regionais de futuro imprevisível.

30 Dezembro 2013

Em tempo: A todos os nossos companheiros em A Viagem dos Argonautas, votos de um 2014 que rompa com o fatalismo deprimente para que nos têm empurrado. Também depende de nós.

Grande abraço


[1] Assim denominado para o distinguir do Mediterrâneo Asiático ou Mar do Sul da China e do Mediterrâneo Americano ou Mar das caríbas, segundo Yves Lacoste

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