PIER PAOLO PASOLINI: PAIXÃO E IDEOLOGIA – por Manuel Simões

livro&livros1Pier Paolo Pasolini nasceu num dia 5 de Março e este artigo de Manuel Simões foi pensado para a rubrica Livro & Livros de amanhã. Manuel Simões, que durante mais de três décadas lecionou Língua e Literatura portuguesa em universidades italianas, é um estudioso da obra de Pasolini, tendo seleccionado, traduzido e prefaciado o volume  Pasolini, Poeta (Plátano Editora, Lisboa, 1978). Resolvemos antecipar a publicação e editar um post suplementar da rubrica que dedicamos aos livros e ao seu universo. O Livro & Livros de amanhã será, no seu formato habitual, dedicado a Pasolini.

Pasolini nasceu em Bolonha em 5 de Março de 1922. «Eu nasci em Bolonha, na vermelha Bolonha e, o que é mais importante, na vermelha Bolonha passei a minha adolescência e a minha juventude, isto é, os anos da minha formação. Aqui me tornei antifascista por ter lido aos dezasseis anos um poema de Rimbaud. Aqui escrevi as minhas primeiras poesias em dialecto friulano (coisa não admitida pelo fascismo) (…) No Friuli, primeiro apreendi um mundo de camponeses e católico (…) e tornei-me, mais tarde, com os trabalhadores agrícolas, comunista. No Friuli li Gramsci e Marx» (“Scritti Corsari”).

Obrigado a refugiar-se em Roma por volta dos anos cinquenta, ao mundo rural associa agora o contacto com o mundo das “borgate”, os bairros “populares” da periferia de Roma, mundo «degradado e atroz» mas que conserva um seu «código de vida e de língua» e que lhe serve de motivação para os romances “Ragazzi di vita” e “Una vita violenta” ou para o seu primeiro filme, “Accattone”, o anti-herói enquanto elemento do subproletariado.

Autor polémico e com uma actividade incessante no campo da cultura italiana, intensifica nos últimos anos a sua intervenção política e ensaística em todos os sectores do debate público. São disso testemunho os textos recolhidos em “Empirismo eretico” (1972), para além dos livros póstumos “La Divina Mimesis” e “Scritti Corsari” (ambos de 1975), o último dos quais reúne precisamente a matéria “escandalosa” da sua não indulgência e da sua não ortodoxia política.

Na madrugada de 2 de Novembro de 1975, Pasolini foi encontrado morto num campo aberto da periferia de Roma, dando sobre um fundo de barracas, o mundo do subproletariado, do qual, por ironia, acabaria por ser vítima.

Deixou-nos uma imensa obra que se reparte por vários géneros: poesia, teatro, narrativa, crítica, cinema (quem não se lembra de “Mamma Roma” de 1962, ou de “Il decameron” (1971?).  Recordamos aqui o poeta, transcrevendo  fragmentos de dois poemas de “La religione del mio tempo”(1961):

A RESISTÊNCIA E A SUA LUZ

Assim cheguei aos dias da Resistência

sem nada saber dela senão o estilo:

foi estilo todo luz, memorável consciência

de sol. Nunca mais pôde murchar,

nem sequer um instante, nem quando

a Europa tremeu na mais morta vigília.

Fugimos, com os trastes sobre um carro,

de Casarsa para uma aldeia perdida

entre canais e vinhas: e era pura luz.

[…]

Aquela luz era esperança e justiça:

não sabia qual: a Justiça.

A luz é sempre igual a outra luz.

Depois variou: de luz passou a incerta alba,

uma alba que crescia, se alargava

sobre os campos friulanos e os canais.

Iluminava os agrícolas que lutavam.

A alba nascente foi assim uma luz

fora da eternidade do estilo…

Na história a justiça foi consciência

de uma humana divisão de riqueza

e a esperança adquiriu nova luz.

LÁGRIMAS

Eis os tempos recriados pela força

brutal das imagens assoladas:

aquela luz de tragédia vital.

[…]

Não sei porquê, transido

por tantas lágrimas, vislumbro

o grupo de rapazes afastar-se

na acre luz de uma Roma ignota,

a Roma apenas aflorada pela morte,

sobrevivente com toda a estupenda

alegria de branquejar na luz:

cheia do seu imediato destino

de um pós-guerra épico, dos anos

breves e dignos de uma inteira existência.

[…]

São adultos, agora: viveram

o seu inquietante pós-guerra

de corrupção absorvida pela luz,

e rodeiam-me, pobres homens

para quem cada martírio foi inútil,

servos do tempo, nestes dias

em que se levanta o doloroso estupor

de saber que toda aquela luz,

pela qual vivemos, foi apenas um sonho

injustificado, não objectivo, fonte

agora de solitárias, vergonhosas lágrimas.

(tradução de Manuel Simões).

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