Há tempos atrás, li num jornal a notícia de que, entre muitas outras coisas, ia ser leiloado, salvo erro no Palácio do Correio Velho, um lote de correspondência entre Luiz Pacheco e a minha pessoa. O que me parece mais natural é que se tratasse de cartas e postais por mim endereçados ao Pacheco. Tenho muita correspondência que me enviou, postais na sua maioria. Em 7 de Outubro de 1998 recebi a carta que abaixo reproduzo.
Palmela, 7 de Outubro de 1998
Caríssimo e Velho Amigo (do Gelo, da Pirâmide, de Tomar, etc,)
Gostei muito de ler a tua carta. Achei que te devia uma explicação desta m/edição do Dostoievski. Não creio que saibas tudo: em 1995, ainda em Setúbal, num quarto bera como uma tumba…»
E descreve-me a situação difícil que o levou a reactivar a Contraponto, com Noites Brancas, de Dostoievski, traduzida por ele, embora soubesse haver outras traduções, a minha inclusive. Não podia usar nem a minha nem as de Maria Franco e de José Marinho (as respectivas editoras, cair-lhe-iam em cima). Teve ele de traduzir. Já aqui contei em que circunstâncias fiz essa tradução num tempo recorde. Bem sei que o livro não é grande, mas foi uma maratona.
Estávamos em 1972 e íamos lançar uma «História da Arte» em volumes. A versão portuguesa era dirigida por um grande especialista, José António Ferreira de Almeida (1913-1981), professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde viria a ser presidente do Conselho Científico. Como sempre, nas vésperas dos lançamentos, a azáfama era enorme – reuniões com a distribuidora, com a agência de publicidade, telefonemas para a gráfica (em Pamplona).
Oferecíamos, por sorteio, viagens a São Petersburgo, (Leninegrado). Tínhamos aprovado as diversas peças que a agência preparara para os locais de venda, os encartes para os jornais diários e para o Expresso, bem como os spots de televisão. Dos encartes, aprováramos o grafismo, pois o texto estava ainda a ser escrito – não havia tempo para fazer as coisas como devia ser e confiávamos na agência, gente culta, escritores, jornalistas, com provas dadas.
No lançamento, com sessão de apresentação a decorrer no salão nobre do Hotel Tivoli, enquanto o professor falava para uma assembleia distinta, pus-me a ler o material publicitário. E, a dado momento, o coração caiu-me aos pés: «Ganhe uma viagem a Leninegrado, a Veneza do Báltico, a cidade das cúpulas douradas e das «Noites Brancas», de Tchekhov.»
Mostrei o folheto ao director criativo da agência, Orlando da Costa, um grande amigo e excelente escritor. Ele também não tinha lido, tinha confiado na «copyrighter», uma senhora de grande cultura que quando a chamámos e lhe mostrámos o seu erro ficou desolada e envergonhada. Ligada ao meio intelectual, lera muito Dostoievski, muito Tchekhov, e escrevendo de memória, enganara-se. A sessão acabou e fizemos uma reunião de emergência numa sala que o hotel disponibilizou. Houve quem quisesse crucificar a «copyrighter». Orlando e eu não deixámos.A responsabilidade era minha, que tinha confiado cegamente nele e era do Orlando que confiara cegamente na colega. Ela não tinha culpa de que, quem estava a seguir na cadeia de responsabilidades tivesse abdicado do direito e do dever de ver, rever, ler e corrigir. A obra fora distribuída por todo o País, a hipótese de tirar os encartes dos jornais e dos livros, estava fora de questão. Na reunião, começaram a ser postas ideias na mesa. A mais lógica era mandar fazer novos folhetos corrigidos e distribuí-los. Houve quem dissesse que o melhor era não fazer nada, acreditando que poucas pessoas dariam pelo erro. De notar que tinham sido distribuídas mais de duas centenas de milhares de encartes. Foi então que tive a ideia – Transformar o erro num concurso.
A ideia foi aprovada. O segundo encarte dizia: «No folheto anterior cometíamos deliberadamente um erro na informação sobre os prémios. Se localizar esse erro terá direito a uma oferta». Foi um êxito. Milhares de respostas e uma grande parte delas correctas – o autor de «Noites Brancas» era Dostoievski e não Tchekhov. Embora tenha custado muito dinheiro, o erro convertera-se num factor de promoção e com resultados positivos no volume de vendas. Faltava o livro. Não encontrando ninguém que traduzisse a obra em três ou quatro dias, tive de meter mão à obra e fazer eu o trabalho. Traduzi a partir da edição francesa de Pierre Pascal e Boris Schloezer – essa, sim, feita directamente do russo. pois de russo apenas sei a meia-dúzia de palavras que toda a gente conhece. Como disse, havia já as excelentes traduções de Maria Franco e de José Marinho (que fiz questão de não consultar durante o meu trabalho). E houve a de Luiz Pacheco. As operações de revisão, de composição e de impressão e acabamento, foram também executadas com a oficina a trabalhar de dia e de noite. Dias depois de terem respondido acertadamente, os clientes tinham em suas casas um elegante livrinho com a história romântica de Nastenka e de um sonhador que por ela se apaixona, deambulando pelas noites brancas de São Petersburgo. Começa assim: «Era uma noite maravilhosa, uma dessas noites que apenas são possíveis quando somos jovens, amigo leitor. O céu estava tão cheio de estrelas, tão luminoso que quem erguesse os olhos para ele se veria forçado a perguntar a si mesmo: será possível que sob um céu assim possam viver homens irritados e caprichosos?»
Nota: Quem tenha conhecido Orlando da Costa e Luiz Pacheco depressa perceberá que eram «cartas de baralhos diferentes». Orlando a Costa era um cavalheiro. Pacheco fez tudo para que nunca lhe chamassem tal coisa. Mas havia aspectos comuns – ambos eram escritores e ambos excelentes escritores, politicamente, militavam no mesmo partido politico, embora duvide que Pacheco «militasse» verdadeiramente. A Comissão de Toponímia da CML deu o nome de Luiz Pacheco a uma rua pedonal de Chelas, bairro que não tem qualquer relação com a vida ou com a obra de Pacheco. Orlando da Costa merece ter o nome numa artéria da capital. O filho, embora já não seja Presidente da Câmara, poderá evitar que o nome de seu pai seja dado a uma rua que nada tenha a ver com ele. Pouco tempo antes de morrer pediu a um amigo comum (o António Andrade) que desse, no carro do Andrade, uma volta de despedida pela cidade que tanto amava.
Os eléctricos são tão bonitos, foi um dos seus comentários.
.