Biografia de ALEXANDRE O’NEILL, Poeta: 1924 – 1986, por Fernando Correia da Silva

 

 




 

 

PAÍS ENGRAVATADO TODO O ANO E A ASSOAR-SE À GRAVATA POR ENGANO

 

QUANDO TUDO ACONTECEU…

 

 

1924: Filho de um bancário e de uma dona de casa, nasce em Lisboa Alexandre Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões. 1944: Termina o 1.º ano da Escola Náutica de Lisboa mas, por causa da sua miopia, é-lhe recusada a cédula marítima para exercer pilotagem. Alexandre não continua os estudos. – 1945: Final da II Guerra Mundial. 1946: Em consequência de um conflito familiar, O’Neill abandona a casa dos pais e passa a viver na casa do tio materno. 1948: É um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa; colabora na Ampola Miraculosa, livro de colagens surrealistas. – 1949: Em Lisboa, apaixona-se pela surrealista francesa Nora Mitrani. – 1950: Grande polémica e O’Neill rompe com o Movimento Surrealista. – 1951: Publica a colectânea Tempo de Fantasmas. – 1953: Morte de Estaline. Durante 40 dias O’Neill fica preso pela PIDE. – 1956: XX Congresso do PCUS, Kruchtchev denuncia os crimes de Estaline. – 1957: Alexandre casa com Noémia Delgado. – 1958: Publica No Reino da Dinamarca. – 1959: Nascimento de Alexandre Delgado O’Neill, primeiro filho do poeta. – 1960: Publica Abandono Vigiado. – 1961: Suicídio de Nora Mitrani. – 1962: O’Neill publica Poemas com Endereço. – 1965: Publica Feira Cabisbaixa. – 1966: Em Turim, Itália, são publicados poemas de O’Neill sob o título Portogallo mio rimorso. – 1969: Publica De Ombro na Ombreira. – 1970: Publica As Andorinhas não têm Restaurante. – 1971: Alexandre divorcia-se de Noémia e no mesmo ano casa com Teresa Patrício Gouveia. – 1972: Publica Entre a Cortina e a Vidraça. – 1974: A 25 de Abril, a Revolução dos Cravos. – 1976: Nascimento de Afonso O’Neill, segundo filho do poeta. – 1979: O’Neill publica A Saca de Orelhas. – 1980: Apaixona-se por Laurinda Bom; publica Uma Coisa em Forma de Assim. – 1981: Alexandre divorcia-se de Teresa; publica As Horas já de Números Vestidas. – 1983: Publica Dezanove Poemas. – 1986: Escreve O Princípio de Utopia, O Princípio de Realidade. Doença cardíaca, morte do poeta.

 

 

CHIADO

   

 

Tiraste o curso na Escola Náutica mas não te deram a carta de piloto por causa da tua miopia. Frustrado, gemeste em verso:

Eu andei para marinheiro
mas pus óculos e fiquei em terra.

Antes que vás naufragar em seco, pergunto:

– O’Neill? Mas que raio de nome é esse?

– Sou filho de um lorde irlandês. Tomarei posse do condado verde quando o meu pai bater as botas. Espera que me desespera, pois gosto muito de irish coffee e do trevo de quatro folhas…

Gargalhadas e depois marchamos, lado a lado, pelo Chiado. Poderíamos ter abancado n’A BRASILEIRA. Com os seus espelhos e o painel modernista, o Café é sedutor. Mas o que lhe estraga o ambiente é volta e meia aparecer por ali o inspector Seixas, o torturador da PIDE, a exibir ora a sua truculência, ora a sua troupe de noviços acabados de sair da tropa. Portanto, o mais saudável é descermos a rua Garrett. Do lado esquerdo, um pouco mais abaixo da livraria Sá da Costa, fica o CAFÉ CHIADO.

E aí vamos nós, tu a saltitar como se houvesse pocinhas no passeio e sempre com um discurso sincopado. Se fosses pianista, serias certamente campeão de stacato.

A primeira sala do CAFÉ CHIADO parece um aquário, lá por dentro há uns peixinhos interessantes. Um deles, esparramado numa cadeira de verga, é o António Maria Lisboa, poeta surrealista. Sei das tuas brigas com a malta da escrita automática e estou curioso quanto ao que vais fazer. Levantas a mão, acenas. Talvez um último adeus porque o Lisboa, tuberculoso, está por ali à espera da morte, coitado…

A segunda sala é a imensa, a sombria. Ali, no lado direito, pratica-se uma Orgia Romana, painel a ocupar quase toda a parede, pintura lambidinha. Mesmo por baixo dessa Orgia, sentados a uma mesa, estão dois Mários surrealistas, o Cesariny e o Leiria. Deste último, também sou grande amigo. Finges que não os vês e eles fingem que a ti não vêem. Não me aguento:

– Ó Alexandre, tão amigos que vocês eram e coisas tão giras que fizeram juntos. Bem me lembro das colagens da Ampola Miraculosa

Paras, seguras-me o braço, perguntas:

– Tu sabes que fui eu o primeiro a ler e a comprar a História do Surrealismo do Maurice Nadeau? Que fui quem desafiou o António Pedro, o Mário Cesariny, o Mário Henrique Leiria, o Vespeira e o José Augusto-França a fazermos aqui uma coisa equivalente para sacudir a pasmaceira lusitana? Assim nasceu o Movimento Surrealista de Lisboa. Sabias?

– Sei disso tudo. Por isso mesmo é que não entendo essa vossa briga. Porquê, mas porquê?

– Porque dois ou três daqueles aventureiros quiseram transformar o Movimento numa catequese. A poesia tem que ser verdade prática, não suporto catequeses.

Bem sincopado, martelado, sem pedal: | ca | te | que | ses | !

Entramos na terceira sala do Café Chiado, claridade, teto de vidro fosco, deve ser um antigo saguão entre dois prédios. A estudantada abanca por ali. De mesa em mesa correm, mimeografados, poemas do SIDÓNIO MURALHA e de outros neo-realistas. Torces o nariz àquele heroísmo proletário:

– Não é assim que se faz poesia política.

– Então como é?

– Vai lá a casa, que eu te mostro.

– Quando?

– Pode ser amanhã à noite.

 

 

A POMBA

   

E vou. É o segundo andar, lado esquerdo, de um prédio no bairro social do Arco do Cego. Toco à campainha e uma pitosga de uns 30 anos abre a porta. Será a tua irmã. Não, irmã não será, pois tiveste uma zanga com o teu pai e agora vives na casa de um tio materno. Deve ser tua prima. Seja ela quem for, olha para mim muito desconfiada mas lá te chama, esganiçada: Alexandre, Alexandre! Surges ao fundo do corredor, dás uma corridinha, puxas-me pelo braço, levas-me até ao teu quarto.

Uma cama, uma secretária, estantes com livros e um armário de metal, com grandes gavetas a rolarem sobre esferas. Abres uma delas, dezenas de pastas. Retiras seis ou sete e começam a saltar poemas de Maiakovski, Neruda, Aragon, Éluard e a sua catalisadora Liberté, je dis ton nom! Também um desconhecido (pelo menos, para mim) de nome Bertold Brecht. Fico espantado: a poesia organizada como se fosse arquivo comercial? O alemão, o Brecht, é um deslumbramento, cativa-me a sua concisão. Tanto que, uma semana depois, de rajada escreverei seis poemas a la Brecht, um deles de pesar pela morte do camarada Estaline. E tu irás gostar dos meus versos, insistirás para que eu não desista. Insistência vã, estou mais calhado para a prosa…

– O’Neill, ouve lá: a poesia desta malta não pode ficar açambarcada aí, tem que estar ao alcance de toda a gente.

– Também acho!

Assim nasce a ideia de um jornal clandestino de poesia militante. Em homenagem à pomba de Picasso vai chamar-se A POMBA. Das traduções cuidas tu. Da impressão cuido eu porque o meu pai tem um mimeógrafo no seu escritório na Praça dos Restauradores. Imprimo à noite e ele nem dá por isso…

Lançamento do jornal? Proponho:

– Já que de lançamento se trata, então vamos lançar A POMBA do 2.º balcão para a plateia do Tivoli, numa daquelas sessões cine-culturais de 5.ª feira ao fim da tarde. Vai ser uma bonita revoada…

Hesitas:

– Acho que a malta da Oposição não vai aprovar a iniciativa.

– Não te preocupes. Disso trato eu.

E trato. Converso com um dirigente do MUD JUVENIL (*) . Conto-lhe o plano, mostro-lhe os poemas. Dias depois avisa-me que a Direcção é contra, agitação é agitação, poesia é poesia, não pode haver misturas, eles é que sabem… Tu, O’Neill, embora não sejas militante mas apenas um compagnon de route, parece que os conheces melhor do que eu… Mas se entre nós está combinado, combinado está e avançamos, que se lixem os sabichões… À última hora, para amansar os gajos do JUVENIL, sugeres que eu inclua n’A POMBA o meu poema de pesar pela morte do Estaline e eu incluo. Porém assino com pseudónimo, suicida eu cá não sou…

E numa 5.ª feira à tarde lá estamos nós no 2.º balcão do Tivoli. A sala às escuras e quando surge a última cena do filme, puxamos os cordelinhos e AS POMBAS descem em revoada. Com um senão: atrapalhas-te e deixas cair uma pilha de pombas sobre os cornos de um espectador. Mugido lancinante, lá em baixo:

– Ai o caraças…

Acendem-se as luzes, gritos, gargalhadas, palmas, todos a quererem apanhar AS POMBAS, confusão, um sucesso. Sorridentes, nós por ali à coca. Até chegar a PIDE…

 

(Continua)

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