NOVA CRÓNICA DE FARO Nº 3 – PARTE II. DE FARO COM AMOR, DE ESTOI COM HORROR. Por JÚLIO MARQUES MOTA

Meus caros

A segunda parte de uma crónica  já iniciada. As vivências de um velho por uma cidade que  não é sua. Ao ler o que por aqui se escreve talvez sejamos levar a pensar que se trata de delírios da terceira idade. Talvez seja assim. Talvez nada disto se tenha passado, talvez nada disto se tenha ouvido, talvez nada do que aqui se transcreve  tenha sido escrito e lido. Talvez. Mas uma pergunta:   mas não parece a realidade actual apresentar mais sinais de delírio que esta crónica, que se pretende expressão da realidade mas que, como ficção , fica sempre aquém da realidade que quer simular e que a todos incomoda .

Um texto a publicar em  A Viagem dos Argonautas.

Boa paciência para a leitura para aqueles que gastarem alguns minutos a olhar para ela, as minhas desculpas pela liberdade tomada para aqueles a quem não interessa e que devem então  fazer delete.

 

JMOta

2. De Estoi com horror

Parte I

São 21 horas, saio de casa. Jantar já bem arrumado e no sítio certo, ainda me sinto atordoado com a conversa havida durante a tarde, com um desconhecido de então, supostamente um homem de  elevada patente militar. Tudo indica que assim o é. Estávamos em Faro e toda  a  conversa  desta tarde  terá  resultado  do  mal-estar gerado entre um homem e uma mulher, a caminharem sobre desencontros sucessivos  numa  idade já não muito consentânea  com trajectos desta índole. Um mundo repleto de ansiedade em que este homem de suposta elevada patente procurava alguém que o soubesse ouvir e que ele sentisse que o sabia ouvir.  E assim tive um encontro com a História e com ele fiz  a minha história. Mas se esta análise foi dolorosa não menos doloroso foi ouvir um desconhecido de coração aberto, homem situado numa faixa etária de sessenta e poucos anos, falar de amor como se de um adolescente se tratasse, inclusive, com uma autenticidade a que já nos é estranho constatar, pois deparamo-nos com uma realidade em que se vive a fingir e a esconder sentimentos. O politicamente correcto de agora, o que é conveniente dizer.

Tratou-se assim de uma conversa que tem na sua raiz um tema para mim imaginável discutir neste espaço de tempo e com a minha idade: o desencontro sucessivo entre um homem e uma mulher e em que o homem, de uma estrutura mental bem sólida,  não suporta duas coisas, a ausência de uma correspondência afectiva  e a  solidão de  se encontrar  sozinho, marcada esta sucessivamente pelo desencontro de cada encontro marcado.

São 21 horas, Vou até ao café  habitual até porque espero aí  encontrar  o “ meu menino” de Estoi a quem preciso de fazer algumas perguntas sobre o seu curso nas tropas especiais, menino este que no passado ano foi objecto de uma das nossas crónicas de então. Levo um livro ou não? Acabei de ler a Tyrannie des évaluations, que levo então? Ou não levo nada? Decidi nada levar. Ontem encontrei no café o “meu menino” de Estoi. Pretendo colocar-lhe umas perguntas simples de que aguardo ansiosamente as suas respostas, respostas estas que julgo importantes  para poder escrever e descrever com detalhes a segunda parte desta minha crónica (nº3). Sei, pelo pouco que me disse ontem, que andou pelos comandos, que foi recambiado  para casa, para tratar de uma veia que lhe rebentou quando estava no curso. Nada meiga a sua  história nas tropas especiais, mas preciso dela bem detalhada, para que a expressão horror em Estoi tenha algum sentido para  quem essa crónica venha a ler.

Dirijo-me então para o café habitual, para retomar com o “meu menino” de Estoi uma conversa que tivéramos na noite anterior, ontem, sobre a sua carreira militar. Como já mencionado, ficaram penduradas uma série de questões em aberto na noite de ontem. Talvez pela euforia de ontem o reencontrar, uma vez que o não via desde o final de Agosto do ano passado.

Mas hoje vejo que este está nervoso, muito nervoso. Diz-me, “não quero falar de mim, só me apetece ir embora, mas a minha patroa não me substituiu. Mas quero ir-me embora”. Nem pense nisso, disse-lhe. Mas antes de mais o que é aconteceu?

A resposta, meio enrolada, foi como se segue: “um primo meu levou um tiro na cabeça em Estoi. Era muito chegado a mim, está no Hospital. Precisa de mim e eu aqui sem saber o que fazer, está a ver, gritou-me ele”. Calma, respondi. Tu e o teu primo têm um amor mútuo, tudo bem. Levou um tiro na cabeça, terá necessariamente um derrame interno, estará em coma, não fala, não ouve, não vê. Vais lá fazer o quê? Espera, tem calma e não percas o teu emprego. E a conversa seguiu neste tom, amena, sem tocarmos nas questões de que eu tanto necessitava de lhe colocar para assim obter respostas (a matéria-prima crucial para dar completar esta minha crónica), no que diz respeito ao pontapé nos seus tomates de que me falou ontem. E explica-me então o primeiro drama que quero relatar de Estoi, e que aconteceu exactamente hoje. A sua tia, mulher divorciada vivia junta com um senhor, trabalhador de panificação mas, trabalhador precário de muito baixo salário,  como é agora cada vez mais comum por aqui. O avô do menino alvejado disse que nada fazia prever esse drama. O “meu menino” de Estoi dá-me outra explicação. O senhor em questão ganharia pouco, com muito pouco contribuía para as despesas da casa. A companheira em dificuldades exige que a sua contribuição para as despesas da casa seja maior. Ele recusa, ela reage e diz-lhe então “assim não dá. A vida está difícil para todos”. Se não queres partilhar as dificuldades, vai-te embora, ter-lhe-á dito. O homem, acossado reage ao nível dos seus instintos mais primários, primitivos e grita-lhe: “vou-me embora, ficas sem mim, mas hás-de ficar sem nada e marcada para a vida”. E assim foi, disparou à cabeça do filho para o matar, deitou fogo à casa e queimou-lhe o carro. Sem nada para a vida, marcada na alma e no corpo do filho. E sobre isso o “meu menino” de Estoi mostrava-se perdido, muito perdido mesmo. Continuámos serenamente a falar deste drama até que nos despedimos com um até amanhã. Assim se conclui a noite de hoje, no mesmo dia  em que me  encontrei supostamente com um individuo de alta patente militar, brutalmente desfeito por afectos intensos não correspondidos e talvez não muito vulgares face à idade que apresentava. Foi assim a minha noite de ontem, sem saber nada mais quanto à carreira militar do “meu menino” de Estoi. E nem sequer sabia que era  a última noite que o via por aqui, por este café.

(continua)

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