A OPINIÃO DE DANIEL AARÃO REIS – HERANÇAS E HERDEIROS

 

O golpe que instaurou a ditadura do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937,   fez 80 anos. Preparado por seu principal mentor e beneficiário, Getúlio Vargas, teve o apoio essencial das Forças Armadas.

O contexto internacional dos anos 1930 marcou o declínio das democracias liberais, consideradas corruptas e ineficazes. As alternativas ditatoriais fortaleciam-se: pela direita, o fascismo, o nazismo e os corporativismos estatais; pela esquerda, o socialismo soviético. No Brasil, após o fracasso da tentativa revolucionária do Partido Comunista, em novembro de 1935,  a repressão prendeu mais de 7 mil pessoas, muitos torturados, o que ajudou a construir o mito do “inimigo interno”.

A nova constituição, formulada pelos golpistas, dissolveu as instituições representativas (art. 178), atribuindo-se a Vargas o direito de aposentar ou reformar funcionários civis e militares (art. 177). Além disso, Getúlio ficou autorizado a modificar a Constituição por ato próprio ( editou 8 Leis Constitucionais).

Até 1943, a ditadura teve sucesso. Contribuíram para isto a associação entre nacionalismo e estatismo; a articulação de uma aliança, envolvendo empresários, classes médias e camadas populares urbanas; a prosperidade econômica; uma repressão implacável, silenciando os oposicionistas.

A ditadura contaria também com a colaboração de uma grande maioria de intelectuais: compartilhavam ideais nacionalistas e a celebração da Pátria, sendo atraídos para participar em jornais, revistas e instituições.

O ministério da Educação e o Departamento de Imprensa e Propaganda/DIP  aplicavam a censura, mas incentivavam, nos marcos do Estado,  iniciativas, como    o culto à personalidade de Vargas, o “chefe”, cuja data de nascimento se transformou em efeméride nacional. Seu retrato estava  nas paredes, nas notas de dinheiro e nas moedas. Biografias exaltavam suas virtudes.  Grandes eventos integravam crianças, adultos, idosos,  homens e mulheres,  agitando bandeirinhas brasileiras a cantar alegremente  sua disposição de trabalhar e de amar a nação, o Estado e o  ditador.

Também foi inegável o apoio dos trabalhadores urbanos, mesmo porque o reconhecimento dos direitos sociais consagrava em leis reivindicações das classes populares. A sua presença em eventos promovidos pelo Governo não pode ser reduzida à mera “manipulação” nem pode desconsiderar a participação consciente, conforme mostrou Ângela de Castro Gomes. É mais problemático, porém,  falar em “cidadania social”, pois o conceito  supõe uma grau de autonomia desconhecido pela ditadura de Vargas. Com efeito, é difícil negar, como gostam de fazer os ideólogos do varguismo e do trabalhismo, a posição subordinada imposta aos trabalhadores, os controles rígidos do Ministério do Trabalho  e a repressão.

Apesar de ainda haver historiadores que têm a imprudência – e a impudência – de afirmar que o Estado Novo foi melhor, ou menos pior, que a ditadura instaurada em 1964, o regime varguista representou a negação das liberdades e não hesitou em abusar de métodos cruéis: inserção de lascas de bambu e alfinetes debaixo das unhas que eram arrancadas com alicates; queimaduras de pele causadas pelo  apagamento de cigarros e charutos e pelo uso de maçaricos; inserção de buchas de mostarda e cassetetes em vaginas e ânus; estupros de mulheres e homens perante cônjuges e parentes; surras aplicadas por policiais truculentos.

Após 1943, a ditadura entrou num período de questionamentos e de crises. No contexto da guerra contra o nazi-fascismo, ganharam força as oposições. Por outro lado, acumularam-se dificuldades econômicas, estimulando lutas reivindicatórias entre as camadas populares.

A partir de 1945, o filme rodou rápido. Embora ainda com apoios, o ditador preferiu ceder às pressões de setores das forças armadas que sempre tinham sido seu maior sustentáculo. Assim, em outubro daquele ano, aceitou a deposição sem luta, desde que garantidos seus direitos políticos.

A ditadura de Vargas deixou uma herança complexa. O Estado Novo é celebrado como um tempo de modernização econômica, soberania nacional e direitos sociais. Quanto à prática da tortura como política do Estado e à repressão,  prevalece o negacionismo que fecha os olhos aos aspectos sombrios do regime.

Vargas terá sido um “promotor de direitos sociais” ou um “ditador político”? Os dois aspectos sempre estiveram unidos numa só e mesma pessoa. As mãos nas mãos, o reconhecimento dos direitos, o controle  e a repressão impiedosa. A prosperidade econômica, as desigualdades  e a ditadura política.

E assim se construiu uma cultura política, uma herança. Mas os herdeiros não são escravos das heranças, como aponta Amós Oz, mesmo porque “nosso passado foi entregue em nossas mãos, não fomos entregues ao nosso passado”. E termina indagando o intelectual israelense: “nosso passado nos pertence ou estamos submetidos a ele”?

Daniel Aarão Reis

Professor de História Contemporânea da UFF

Email: daniel.aaraoreis@gmail.com

1 Comment

  1. Não citar Luís Carlos Prestes é muito lamentável. Diga-se o que quiserem – e muito haverá para poder fazê- lo – fez, com heroicidade, o que nunca outro conseguiu.CLV

Leave a Reply to Carlos A P M Leça da VeigaCancel reply