A GALIZA COMO TAREFA – elasticidade – Ernesto V. Souza

Há uns dez anos, num barzinho no centro de Valhadolid assistia, por proximidade de cotovelos no balcão, a um debate in crescendo entre um grupo de homens de uns sessenta e algo de anos. A questão de fundo era a Catalunha – foi bem antes da agitação de hoje – e as nações.

O grupo falava, no estilo castelhano, ruidoso, tumultuoso, exaltado, sem guardar os turnos. De súbito, um homem, tranquila e espaçadamente, de copo caminho à boca, largou uma única frase, que fechou a conversa um instante:

– No sé… Yo, como buen gallego, no creo en las naciones… (Não sei… Eu, como bom galego, não acredito nas nações…). E bebeu.

O silêncio foi desconcertante. Não sei o que duraria. Eu paguei a minha cerveja e fui embora, que já me era tempo. Sai a rir. E mais pensando na complexidade retranqueira e na encenação medida da frase.

É claro que “nação” é um conceito moderno e francês, que só adquire sentido pleno sob a forma do Estado e o seu sistema de aglutinantes culturais, educativos e declarativos conformantes. A Galiza, bem sabemos, é, sem ter sido, e com notáveis variantes na ocupação geográfica descrita, porém mais antiga que a ideia da nação. Quando menos, contemporânea, e sócia fundadora, do cristianismo primitivo; é hoje Autonomia; foi Região e já foi Província da Espanha, e antes Reino, por várias vezes; e mesmo foi Província de Roma, por causa de haver antes, e antes provavelmente, alguma outra cousa identificável na mente daqueles Romanos e dos herdeiros ajudados pelos Suevos, que eram gente mui prática e mirada nestas cousas de marcos organizativos.

E, não é menos evidente que a gente galega conserva – bem patente na ausência de muitos galegos arredor, e fora da Galiza – um marcado reconhecimento, digamos étnico, tribal, ou cultural. Intenso, muitas vezes cúmplice e alegre, por cima da ideologia e as ideias políticas, da profissão, dos comportamentos de classe: um mecanismo que se ativa na  identificação “de mais um outro” e que implica auto-identificação.

A manifestação mais evidente disto é a súbita  fluidez da conversa, após a identificação/auto-identificação positiva, e o riso. Começa com uma posta em comum da soidade e das dificuldades com o contexto arredor e termina numa análise compartilhada a respeito do jeito diferente em que os indígenas iteratuam, falam, opinam, sentem, priorizam, nas cousas que acreditam e em como as manifestam.

A galegagem tem muitos defeitos e acumula tópicos no lombo, mas é discreta, observadora, tolerante, adaptativa, diplomata, subtil e mimética. Dissimula, mas está aí, críptica, adormecida mesmo por décadas, como qualquer vírus, espreitando para reagir.

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Mas não divaguemos. Após anos de perguntas capciosas a parentes, amizades, colegas e conhecidos galegos, oriundos, descendentes e também a esses cripto-galegos de Castela,  Madrid e Portugal, tenho chegado (não se assustem) à mesma conclusão política: os galegos – e mais as galegas – são flexíveis também nisto porque, na realidade, não terminam de acreditar no conceito de nação.

Por mais que digam, e até nos casos que acham pragmático reivindicar a ideia, ou por não ser menos que os “modernos” do arredor, no fundo, não acreditam. Porém acreditam, e como, nas paróquias, nos concelhos, nas comarcas, nas províncias, nas divisões eclesiásticas, e nos estados. Nessas, e em todas e cada uma das instituições reconhecidas, próprias e alheias, se existentes, e por tanto, com poder, em cada momento e através dos séculos.

Isto não é uma contradição. A contrário. Estabelece uma lógica esmagadora e galega, que permite introduzir uma analítica mais simples, e própria, sobre o que é a ideia (ou ideias), do que foi, é ou poderia ser – dado o caso – a Galiza, para os galegos, no decurso dos tempos.

Assumir isto, que parece lógico e simples (quando menos na mente de um galego/a de a pé) implicaria, com consequências políticas e organizativas, porém, uma formulação mais complexa da história, do território (como espaço identificado e reivindicação geográfica) e da galeguidade. Uma formulação, mais elástica e dinâmica, sendo (ou tendo), que assim é a vida, umas vezes mais, outras menos; mas sempre possível se permanecer ativa uma célula de universalidade.

Afinal, acontece, de paróquia a império, de condado a reino, de província a estado (e vice-versa em todos os casos). Na realidade, são poucos os passos que há, e os mais deles dependem das circunstâncias e dos dados jogados.

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Descripcion del Reyno de Galizia, Fernando de Ojea, 1603.

 

 

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