Tempos de pandemia, de disfuncionamento da justiça, de disfuncionamento dos mercados, de apostas selvagens em Wall Street (3/5). Por Júlio Marques Mota

 

Nota do editor

Dada a extensão deste texto de introdução à série Tempos de pandemia, de disfuncionamento da justiça, de disfuncionamento dos mercados, de apostas selvagens em Wall Street, o mesmo será editado em 5 partes. Hoje é publicada a parte III.


Tempos de pandemia, de disfuncionamento da justiça, de disfuncionamento dos mercados, de apostas selvagens em Wall Street (3/5)

 Por Júlio Marques Mota

                                        Coimbra, 30 de Maio de 2021

 

Parte III – A força dos mercados desregulamentados é a fraqueza da Justiça, é a extensão da injustiça

Uma outra maneira é alterar a própria lei. Um exemplo histórico desta hipótese é o processo que levou à fusão de Travellers com Citicorp (abril de 1998), numa altura em que a Travellers já havia adquirido a Salomon Smith Barney (em 1997), fusão essa que criaria a maior instituição financeira do mundo, o Citigroup. Numa noite em que Alan Greenspan, presidente do FED, se passeava com Sanford Weill, terá sugerido a este último que haveria o grande perigo dos supervisores não aprovarem a grande fusão financeira daquela época, a maior de todas até aí e que, portanto, ser-lhe-ia mais favorável se a lei mudasse.

Em Portugal veja-se o caso das barragens da EDP, bastou mudar uma palavra na lei.

Nada houve de ilegal nas declarações de Alan Greenspan. Dadas as instituições em presença na fusão, era claro que esta fusão não respeitaria a lei em vigor, a famosa lei Glass-Steagall, uma lei que vinha do tempo de Marriner Eccles e de Roosevelt na Grande Recessão. No entanto a nova empresa financeira criada com esta fusão tinha, por lei, dois anos para se colocar em conformidade com as normas em vigor. Chegado ao fim a supervisão aprovaria ou rejeitaria a fusão. Uma anterior fusão tinha chegado ao limite dos dois anos e as autoridades não a autorizaram. Foi isso que lhe disse Greenspan e nada há de ilegal nisto.

Sobre esta fusão, que lamentavelmente marca ainda os nossos dias, sugiro ao leitor que consulte o texto publicado pelo sítio Frontline e intitulado The Wall Street Fix- Mr. Weill Goes to Washington, texto que também publicaremos na presente série. Não dará o seu tempo por perdido e não esquecendo que estávamos sob o reinado do grande democrata, Bill Clinton!

Conta a história que Stanford Weill tinha um ouvido de felino, ouviu muito bem o que lhe disse o Presidente do Federal Reserve e a partir daí organizou o mais caro lóbi financeiro da história em Washington e mudou-se a lei! Dizem-nos que a revogação da lei Glass-Steagall [9], levou 25 anos a concluir e terá custado cerca de 300 milhões de dólares de esforços de lóbi, culminando assim décadas de desregulamentação, e é ainda esta desregulação que esteve na base da crise de 2008 e que, apesar dos dois mandatos de Obama, permitiu o caso Archegos e muitos mais outros casos.

Caiu a legislação designada por Glass–Steagall com a assinatura da lei Financial Services Modernization Act aprovada por Clinton em 1999, validando-se assim a criação do CitiGroup de 1998. Assinada a revogação da lei por Bill Clinton, Isaac Rubin, o Secretário do Tesouro vai para a direção do Citigroup e, cito de memória, com uma remuneração anual na ordem dos 55 milhões de dólares. Uma mudança da lei que custou milhões, muitos milhões, mas fez-se e assim se fez a grande fusão destes três operadores dando origem ao Citigroup. Em suma, mudou-se a lei. Dito isto, sublinhe-se que o processo mais clássico de apoio aos poderosos é a prescrição.

Repare-se, novamente, no que diz David Heihorn da Greenlight Capital, Inc. sobre os mercados financeiros e os poderosos referindo-se à regulação americana:

A Procuradoria mandou fechar Tether? Alguém foi preso ou até perdeu o seu emprego? A infra-estrutura reguladora foi alterada para garantir que isto não volte a acontecer? Não, claro que não. A Procuradoria determinou uma penalização de 18,5 milhões de dólares e Tether concordou em cessar “qualquer actividade comercial com os nova-iorquinos”. Foi como se tivesse sido dito a Bernie Madoff para pagar uma pequena multa e deixar de andar a enganar os nova-iorquinos, mas para ir em frente e divertir-se com a multidão de Palm Beach”.

Em Portugal tem sido este o processo mais frequente. Arrastam-se os processos em tribunal com muito bons advogados e geralmente com muito dinheiro até que muitos dos crimes em processo prescrevam.

Das prescrições deram-nos os jornais notícias, por exemplo, sobre a casa de Ronaldo no Gerês:

A antiga casa de férias de Cristiano Ronaldo no Gerês, entretanto vendida a Pepe em 2019, já não vai ser demolida por ter sido construída à revelia do projeto aprovado, em zona reservada, uma vez que o caso já terá prescrito.

A mansão de luxo, localizada em Valdosende, em Terras do Bouro, violava as regras urbanísticas, uma vez que, além de não respeitar o projeto original, foi construída em zona reservada e parcialmente em domínio hídrico. No entanto, o Ministério Público ditou o arquivamento do processo porque o crime prescreveu.

Um processo que envolve 31 acusados no âmbito de dois processos relacionados com construções ilegais no Gerês. Entre os arguidos estão, além dos proprietários das moradias, algumas de luxo, com piscinas, estão também os presidentes de juntas de freguesia e técnicos das câmaras municipais de Terras do Bouro e de Vieira do Minho. Em causa estão crimes de violação de regras urbanísticas, falsificação de documentos, crimes de abuso de poder e crimes de prevaricação de titular de cargo político.” (Fim de citação)

Este crime prescreveu, penalizações não terá havido e o usufruto do crime continua assim a ser usufruído. Mais uma vez trata-se de gente de elevada reputação socialmente reconhecida. Nada a dizer.

Nos Estados Unidos, tal como cá, a prescrição é uma arma, afinal! Acrescente-se ainda que há casos que são resolvidos por mudança de lei, outros por prescrição, e outros insinua-se, por simples corrupção direta. A este leque acrescente-se, há ainda um lóbi bem especial e não à vista, que aparece muitas vezes travestida de pragmatismo político, que dá pelo nome de ineficiência da Administração Pública no plano da Democracia em que, sem grandes custas processuais, se consegue igualmente a prescrição.

Como exemplo adicional disto mesmo vejamos o que nos diz Barry Ritholtz num artigo de Janeiro de 2012 intitulado Uma moderna Comissão Pecora para corrigir os erros de Wall Street[10] [11]. Este texto é objetivamente uma homenagem ao homem que mais terá contribuído ao nível da Administração Pública Americana para que publicamente se tenha conseguido ter a perceção de quem foram os principais atores e autores da Grande Depressão, Ferdinand Pecora. Diz-nos Barry Ritholtz:

“(…)  apesar de ilegalidades desenfreadas, fraudes bancárias e inúmeros casos de perjúrio, a resposta até à data – a nível federal e da maioria, mas não de todos os estados – tem sido pouco clara, covarde até. Alguns poucos resistentes de princípios – os procuradores-gerais de Delaware, Nova Iorque, Nevada e Califórnia – recusam-se a assinar um acordo pré-investigação com os bancos, mas é tudo. Apesar das hipóteses de levar os vigaristas à justiça, tem havido pouca ação.

Portanto, aqui estamos nós, quatro anos após o grande colapso financeiro, três anos após o início da recuperação e no último ano do mandato de Obama – e o presidente decidiu finalmente investigar o papel da fraude na grande crise financeira global. Assim, este novo Grupo de Trabalho – a unidade dos abusos ligados à criação de hipotecas e da titularização (Mortgage Origination and Securitization Abuses) começa com muito atraso. O prazo de prescrição está, em muitos casos, muito próximo do fim.

(…)

Mesmo [que] prescreva a possibilidade de instauração ou continuação de um processo penal, podemos conseguir alguma medida de justiça contra os infratores da crise. Os advogados podem ser expulsos da Ordem e as pessoas responsáveis nas empresas acusadas podem ser proibidas de servir em empresas públicas. Os Diretores executivos e os diretores financeiros podem ser despedidos. Uma investigação aprofundada, com poderes de intimação, um orçamento real e audições públicas contribuiriam em muito para restaurar a confiança do público.” (Fim de citação)

Curiosamente, o que nos propôs Barry Ritholtz em 2012 não difere em nada do que nos propõe em 2021 David Einhorn diretor do fundo de cobertura Greenlight Capital. Exijam-se explicações aos responsáveis, simplesmente isso, sobretudo ao mais alto nível das Instituições de topo em todo e qualquer país dito democrático.

Retomando ainda o caso dos Estados Unidos e da Administração do Presidente Obama, cujo sentido da Democracia ninguém poderá pôr em causa, diz-nos um analista dos mercados e antigo-regulador William Kurt Black [12], advogado, professor universitário, escritor e antigo regulador bancário, num artigo intitulado: Os discursos de Holder e Obama são “desmentidos por uma pequena coisa preocupante chamada factos.

Aí se pode ler:

O historial da administração Obama de processar as fraudes financeiras das elites é pior do que o historial da administração Bush, o que é uma afirmação muito forte. A universidade de Syracuse através de TRAC – Transactional Records Access Clearinghouse- emitiu um relatório a 11 de Novembro de 2011 intitulado, “Continuam a diminuir as acusações penais por fraude de instituições financeiras” onde se afirma:

As acusações federais por fraude de instituições financeiras continuaram a diminuir, apesar dos problemas financeiros reportados neste sector. Os últimos dados disponíveis do Departamento de Justiça mostram que durante os primeiros onze meses do ano fiscal de 2011 o governo reportou 1.251 novos processos judiciais. Se esta actividade continuar ao mesmo ritmo, o total anual de processos judiciais será de 1.365 para este ano fiscal, 28,6% abaixo dos números de há apenas cinco anos e menos de metade do nível prevalecente há uma década. Ver Quadro 1.

Nenhuma das administrações processou qualquer diretor executivo de elite pela epidemia de fraude hipotecária que provocou a crise em curso. Isto contrasta com mais de 1.000 condenações por crimes de elite decorrentes da derrocada das caixas de poupança dita crise das S&L (loans and savings crisis – 1986/1995). A crise em curso [de 2008] causou perdas mais de 70 vezes maiores do que o colapso das S&L e a quantidade de fraude de elite que conduziu a esta crise é também largamente maior do que a havida durante o colapso da S&L. Os diretores executivos dos bancos que lideram as “fraudes de controlo contabilístico” fazem-no agora com impunidade face às leis penais. Tornam-se ricos através da fraude e mesmo que sejam processados civilmente, quase invariavelmente saem ricos com o produto das suas fraudes.”

E William Black continua o seu texto em que coloca como subtítulo “A administração Obama Prefere a Política e o seu discurso ao Ministério Público”:

Os funcionários das instituições financeiras de elite envolvidos em fraudes enfrentam um risco drasticamente reduzido de processos judiciais em comparação com 20 anos atrás, quando a fraude financeira era muito menos comum. O TRAC informa que o número de processos por fraude em instituições financeiras sob Obama é menos de metade do número de há 20 anos atrás. O antecessor Bush (II) foi ligeiramente melhor do que Obama na perseguição penal de fraudes em instituições financeiras não pertencentes à elite, mas ambas as administrações foram pateticamente muito más.

 

Barack Obama [Janeiro 2009/Janeiro 2017] pretende passar-se por alguém que ofereceu forte resistência às pretensões do mundo financeiro. Os dados acima mostram claramente que assim não foi e antes de passarmos à análise da prescrição como instrumento jurídico ao serviço das classes dominantes vale a pena olhar para uma retrospetiva sobre o que foi a política económica e social da administração Obama face à crise que rebentou em 2008. Para esse efeito reproduza-se um longo excerto de um muito bem documentado artigo de David Sirota, End The Austerity Loop [Fim do Ciclo da Austeridade], publicado em dezembro de 2020 pelo sítio Jacobin (disponível aqui).

(…)

A conhecida mensagem de Obama aos eleitores do Partido Democrata é a mesma que os apologistas do partido oferecem hoje: As capitulações orçamentais não são um produto de vassalagem ideológica a uma agenda de austeridade, são apenas um reflexo da realidade política – por isso, parem de estar a forçar comecem a cair na realidade e sejam pragmáticos.

Ouvindo-o falar, é uma história convincente que faz sentido se não se tiver lido mais nada e se esquecer o que realmente aconteceu. O problema é que omite um detalhe chave que destrói toda a sua narrativa e expõe a ideologia da austeridade a funcionar: mais ou menos no mesmo período de tempo, Obama e o seu partido congratularam-se por terem aprovado legislação que – em nome da redução do défice – revogou a autoridade da Casa Branca de gastar centenas de milhares de milhões de dólares para ajudar os americanos que estavam a ser expulsos das suas casas.

Chamado “Pay It Back Act“, o projeto de lei democrata reduziu o tamanho do Programa de Resgate de Ativos Problemáticos (TARP-Troubled Asset Relief Program) [N.T. de 700 mil milhões para 475 mil milhões de dólares; a lei foi aprovada e entrou em vigor em Julho de 2010, ver aqui] logo após ter resgatado os bancos, mas antes do novo presidente [Obama] poder decidir utilizar o dinheiro para o que inicialmente era suposto fazer: ajudar os proprietários das suas casas. Com a lei Pay it Back tinha anulado a capacidade de o poder fazer.

No meio de toda a dor e sofrimento durante o colapso financeiro, Politico relatou em 2009 que “a Casa Branca sinalizou que quer dedicar o ano de 2010 à redução do défice, e que o facto de colocar a maior parte dos fundos TARP para o pagamento da dívida poderia agradar aos falcões do Capitólio”.

Os democratas do Congresso no ano seguinte emitiram comunicados de imprensa [em 2010] elogiando-se por terem aprovado uma lei para impedir o presidente de utilizar o dinheiro para ajudar as pessoas. A legislação reduziu o montante dos fundos TARP disponíveis para serem utilizados, e exigiu que os rendimentos dos títulos do fundo fossem utilizados “com o único objetivo de reduzir o défice”.

“É isso que as pessoas na minha assembleia municipal querem”, insistiu o senador democrata do Colorado Michael Bennet, uma vez que as execuções hipotecárias e os cortes orçamentais devastaram a economia do seu estado.

Obama promulgou a lei como parte da legislação da reforma financeira Dodd-Frank, que foi finalizada logo após a Casa Branca ter criado uma comissão para cortar a Segurança Social em plena Grande Recessão. Alguns meses mais tarde, os Democratas foram – segundo as próprias palavras de Obama – “batidos” nas eleições intercalares. A sua administração duplicou então a austeridade, publicando rapidamente uma proposta de cortes nas prestações da Segurança Social e pressionando o Congresso controlado pelos Republicanos a decretar alguns desses cortes.

Entretanto, milhões de pessoas sofreram uma recuperação económica que “foi a mais lenta da história pós Segunda Guerra Mundial, e o grau de austeridade fiscal pode explicar inteiramente a sua lentidão”, segundo o Economic Policy Institute.

O resultado foi uma reação popular que acabou por criar as condições da subida de Trump”. Fim de citação.

 

Percebemos bem a afirmação de Barry Ritholtz sobre se o grupo de trabalho anunciado por Obama seria ou não um exercício de propaganda ou de estilo. Esta posição de Barry Ritholtz leva-nos a analisar a relação existente ente a figura jurídica de prescrição, a escassez de recursos jurídicos e a falta de vontade política, o que faremos na parte IV deste trabalho.

 

(continua)


Notas

[9] Sobre a revogação da lei Glass-Steagall, veja-se igualmente de Julio Mota,  Luís Peres Lopes e Margarida Antunes  A Crise da Economia Global: Alguns Elementos de Análise, Lisboa, LIVRE, 2009. Edições Terramar.

[10] Veja-se: Barry Ritholtz, A Modern Pecora Commission. Texto disponível em: https://ritholtz.com/2012/01/75361/

[11] Veja-se veja-se igualmente de Julio Mota,  Luís Peres Lopes e Margarida Antunes  a obra A Crise da Economia Global: Alguns Elementos de Análise, Lisboa, LIVRE, 2009. Edições Terramar.

[12] William Kurt Black, Holder & Obama’s Propaganda is “Belied by a Troublesome Little Thing Called Facts”. Texto disponível em: https://ritholtz.com/2012/02/holder-obama%e2%80%99s-propaganda-is-%e2%80%9cbelied-by-a-troublesome-little-thing-called-facts%e2%80%9d/

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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