EDITORIAL – Silêncio de ouro.

Se há dom que Cavaco Silva não possua é o da oratória. Não se trata dos lapsos culturais que tanto têm sido comentados, mas sim da forma como expõe as ideias – Santana Lopes, por exemplo, poderá cometer lapsos semelhantes, mas expõe de uma forma desenvolta, sem as soluções de continuidade que fazem dos discursos do presidente verdadeiros exemplos de como não se deve falar em público. É uma mera observação – esta má oratória ao serviço de ideias e de práticas correctas, não teria qualquer importância. Porém, o presidente tomou o gosto ao discurso irónico, à maneira ianque – durante uma entrega de prémios de jornalismo, tentou emular Barack Obama e encadeou uma série de ditos supostamente espirituosos. Entre eles o de que o seu silêncio é de ouro: “Todos sabem que o silêncio do Presidente da República é de ouro, hoje a cotação do ouro foi 1.730 dólares por onça, uma onça são 31 gramas, mais 1,7% do que a cotação do ouro naquele dia de setembro em que a generalidade dos portugueses ficou a saber o significado da conjugação de três letras do alfabeto português: “tê, ésse, u” Um outro presidente, Américo Tomás, sem a pretensão de ter graça, deixou-nos discursos de um humor muito mais consistente.

E continuou a ironizar sobre o silêncio: “Até aqui, boa parte dos portugueses pensava que o Presidente da República estava a meditar, a reflectir sobre a próxima visita a Portugal da senhora já bem conhecida de todos, amada por muitos, a que carinhosamente os portugueses chamam de troika, outros estariam a pensar que o Presidente da República estava a refletir sobre se o aumento de impostos era enorme ou gigantesco, outros pensariam que o Presidente da República estava a reflectir sobre os novos apoios que a chanceler Merkel podia trazer para Portugal na sua próxima visita ao país e outros poderiam estar a pensar que o Presidente da República estava a refletir sobre o que fazer relativamente às pressões de vinte corporações e mais de cem individualidades para que ele enviasse o Orçamento do Estado para o Tribunal Constitucional”, (…) “Outros estariam a pensar que o Presidente estaria a reflectir sobre o consenso político que foi possível estabelecer entre as forças políticas do arco da governação sobre a forma de realizar a reforma das funções do Estado, outros podiam estar ainda a pensar que o Presidente estava a reflectir sobre se a transmissão televisiva dos jogos de futebol em canal aberto fazia ou não parte da definição de serviço público de televisão, mas agora, depois de ter quebrado o meu silêncio, os portugueses dirão que afinal ele estava apenas a reflectir sobre a forma de evitar a sua presença na cerimónia de atribuição dos prémios».

O presidente esqueceu-se de referir os portugueses que interpretam o seu silêncio como um apoio tácito a um governo desastroso que está a destruir o que ainda restava do tecido produtivo do pais, e a lançar centenas de milhares de pessoas no desespero da miséria. O presidente pode estar tranquilo quanto a um aspecto – há muitos portugueses que não o acusam de estar a reflectir – sabem que ele seria incapaz de uma coisa dessas.

Quem não tem dúvidas e raramente se engana, para que necessita de reflexão?

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