CASA COM VISTA SOBRE A PRECARIEDADE, por MARCOS CRUZ

 

A expressão “do meu ponto de vista” é cada vez mais usada no debate público, mas nem sempre pelas melhores razões. Se eu tiver apenas um ponto de vista, e podendo o mundo ser visto dos mais diversos pontos, é um atestado de tacanhez eu querer fazê-lo vingar contra todos os outros. Daí, também, a importância do diálogo: mais pontos de vista, mais completa a visão do mundo. É, contudo, frequente vermos gente a fincar bandeira no sítio de onde avista a realidade, ocupando ideias como propriedades privadas de portão fechado e cão à porta.

Ora, se um ponto de vista compreende tanto melhor o mundo quantos mais pontos de vista nele estiverem compreendidos, os seres humanos só beneficiam de multiplicar e aprofundar as suas relações, assim elas tendam à partilha de pontos de vista. Mas será esse, hoje, um princípio seguido pela generalidade dos indivíduos nas suas diferentes esferas de actividade social?

De há uns tempos a esta parte o paradigma que se vai desenhando aponta para uma bipolarização extremada das opiniões, como se a contenda das ideias estivesse condenada à imiscibilidade do azeite e da água. Espelho disso são, claramente, as redes sociais, onde tantas vezes parece que tudo se resume a uma luta de poder, nos antípodas da concepção atrás sugerida de que o verdadeiro poder, aquele que, tal como o sol, nasce para todos, não deveria pressupor luta, mas escuta.

Em contexto laboral, porém, esta ânsia de afirmação idiossincrática traveste-se não raras vezes do seu oposto. Nas organizações empresariais, é comum a hierarquia definir não apenas a função de cada um, mas também, fruto da colonização da vida pelo trabalho, a sua respeitabilidade. A pessoa deixa de ser pessoa, deixa de ser igual, em termos de direitos fundamentais, a qualquer outra pessoa, para passar a existir como “colaborador”, uma designação tipo farda, que se veste na chegada ao trabalho e nem sempre se despe à saída.

O colaborador pode dizer-se empregado, mas a empregabilidade do seu ponto de vista reduz-se ao campo de competências técnicas que a empresa lhe reconhece – e apenas desde que sirva, sem questionar, o ponto de vista de quem lhe paga. Há nisto uma lógica tão trivial quanto perversa: quem está no topo da hierarquia vê de mais alto, vê mais, vê melhor, ao passo que quem está no fundo não vê nada além do seu metro quadrado, logo deve acolher com gratidão e obediência todos os pontos de vista que, por lhe chegarem de cima, se convertem automaticamente em ordens. E ele come e cala, pois se não calar não come.

Este modelo de gestão empresarial tem-se expandido bem para lá da esfera privada, e hoje não é raro vermo-lo adoptado em instituições com responsabilidades e dinheiros fundamentalmente públicos. Se alguma virtude assentou à malfadada pandemia que mascarou o mundo foi a de, paradoxalmente, ter desmascarado parte das injustiças laborais em que, por todo ele, a desigualdade se monta. A máscara tapou a boca de quem já tivera de tapar os olhos para obturar o próprio ponto de vista, e assim, só com o nariz de fora, o que sobreveio foi o cheiro, um cheiro fétido a ilicitude e a mentira, a desrespeito e a indignidade, proveniente não apenas de onde já o sabíamos escondido, mas até de locais higienizados pela benevolência da opinião pública.

Como são as pessoas que fazem as coisas, e não as coisas que fazem as pessoas, sempre assumi a premissa de que o prestígio de um local de trabalho tem de ser construído por quem lá exerce a sua actividade, mas com a chegada da pandemia pude comprovar que também isso depende do ponto de vista. Mais: ao longo destes meses, fui-me dando conta de que os nossos poderes públicos preferem validar uma premissa de sentido contrário. E, assim, vim a concluir que sou um afortunado por trabalhar num local de prestígio, cabendo-me fechar os olhos e calar a boca perante as práticas desprestigiantes que lá se desenvolvem, sob pena de me tornar, eu mesmo, e não elas, uma ameaça a esse prestígio.

Como não aceito tal imposição, resta-me expor o meu ponto de vista. Pertenço ao quadro de trabalhadores da Casa da Música, uma fundação de utilidade pública e direito privado inaugurada há 15 anos na cidade do Porto. Com um financiamento estatal a rondar os 10 milhões de euros anuais e um apoio mecenático de cerca de um quinto dessa verba, a instituição anunciou aos quatro ventos ancorar a sua razão de ser numa missão de serviço público. A verdade, clara para quem há muito lá trabalha, é que com o decorrer dos anos os fundadores e mecenas privados foram vampirizando a esfera pública, a ponto de fazerem sentir o seu poder de decisão sobre procedimentos internos nos quais o próprio Estado abdicou sempre de interferir.

Pouco a pouco, como um girassol que se vira para a sua fonte de alimentação, a gestão da Casa aproximou-se de um modelo empresarial, em que a satisfação dos mecenas – os maiores dos quais representados no Conselho de Administração – parecia ser cada vez mais o desígnio prioritário, a despeito de se manter intocável o alardear da missão fundadora.

Os anos iam passando e muitos “colaboradores” regulares, cumprindo necessidades permanentes em conformidade com os requisitos que certificam um trabalhador efectivo, viam erodir-se a ilusão de que um dia, um dia próximo, seriam integrados no quadro. A resposta para os que o solicitavam repetia-se: “Ainda não é o momento”. E, assim, quem não desistiu por exaustão foi protelando os seus sonhos de justiça, à espera de um “momento” que fugia como o horizonte.

Eis senão quando, surge a pandemia – um outro momento, inesperado, mas à luz da mais elementar razoabilidade o momento indicado para a fundação mostrar, sobretudo àqueles trabalhadores, que apesar de os ter ressarcido sempre enquanto tal não os via como meros prestadores de serviços, e sim pessoas da Casa. Porém, não foi a redenção ética, ou mesmo legal, o que a instituição procurou. Pelo contrário, achou que era, sim, chegado o momento de descartar esses trabalhadores, entregando-os aos apoios estatais sem, no mínimo, se preocupar em aferir da sua elegibilidade. Foi o que fez a técnicos, guias e assistentes de sala, a quem não pagou sequer os serviços cancelados.

Face a isto, um grupo de “colaboradores” do quadro ergueu-se contra a desvergonha e pôs a circular, em apelo à responsabilidade social da fundação, um abaixo-assinado que haveria de reunir 27 contratados e 65 recibos verdes. Como não houve, apesar do tempo concedido, o menor indício de resposta, o protesto foi encaminhado para outras instâncias, nomeadamente o ministério da Cultura, os partidos políticos e a comunicação social. Daí em diante, e a despeito da miserável indiferença da ministra, cresceu o ruído público em torno do caso e da Casa, tendo a determinado ponto entrado ao serviço a Autoridade para as Condições do Trabalho, que no decurso da sua investigação viria a notificar os responsáveis pela instituição da existência de cerca de 40 falsos recibos verdes – certamente para surpresa de José Pena do Amaral, presidente do CA, que em Julho, na Assembleia da República, garantira não haver ilegalidades.

Chegados ao fim do ano, o problema continua por resolver. A Casa da Música fez propostas de contrato inadmissíveis à maioria dos trabalhadores, com salários de início de carreira e negando-se a pagar-lhes mais que 10% do devido em retroactivos. Alguns deles, ainda assim, aceitaram, por manifestas dificuldades de pôr cobro às exigências imediatas da vida. Houve, desse grupo, quem me ligasse a pedir desculpa, como se algo me devesse ou se me assistisse a mínima autoridade moral para basear um julgamento apenas no meu ponto de vista. Era a própria consciência que lhe doía, era com ela que tinha contas a ajustar. E condicionar uma pessoa a isso é já dureza que chegue. Outros vão seguir para tribunal, desafiando os limites da própria resistência. E nós, dê por onde der, vamos estar com eles. Até ao fim.

Este texto, relativizarão uns quantos interessados, também expressa apenas o meu ponto de vista, e é verdade, mas há factos a enquadrar esse juízo: o meu ponto de vista sempre se abriu, desde o início, ao maior número de pontos de vista que, dentro e fora da Casa, pudessem querer com ele unir-se ou confrontar-se. Tanto eu como os meus colegas envolvidos nesta luta agimos desde o primeiro momento no sentido de procurar o diálogo. Quem nunca o quis foi quem terá receado não conseguir sustentar o seu ponto de vista.

Para mim, este texto é, isso sim, uma homenagem aos trabalhadores da Casa da Música – e a todos os outros – que continuam a lutar contra uma precariedade imoral.

 

foto de Marinho Paiva – obrigado à wikipedia

Leave a Reply