Na morte de João Cutileiro, reflectindo com os meus botões – por António Gomes Marques

Na morte de João Cutileiro, reflectindo com os meus botões

 

por António Gomes Marques

 

João Cutileiro

Num curto espaço de tempo, a cultura portuguesa perde três dos seus vultos significativos: Eduardo Lourenço, Carlos do Carmo e João Cutileiro.

Serão substituíveis? Eu penso que não, embora isso não signifique que não tenhamos vultos na cultura portuguesa comparáveis e, muito poucos, até talvez superiores. Não há dois seres iguais, mas há seres que se distinguem por uma obra, como é o caso dos três agora desaparecidos.

Dois deles tiveram, podemos dizer, honras de Estado, que eu —que fique desde já claro— não contesto, até por pensar que delas são merecedores. No entanto, as honras prestadas a Eduardo Lourenço pelos mais altos representantes da Nação poderão levar alguém a pensar que o brilhante ensaísta foi o mais alto representante do sistema político que nos (des)governa, não só pela unanimidade nos louvores, mas também pelas diferenças ideológicas que representam os responsáveis por tais louvores, sendo minha convicção que Eduardo Lourenço não gostaria de assim ser considerado, como a sua obra me parece demonstrar.

Repito, para que não restem dúvidas, considero que os dois —Eduardo Lourenço e Carlos do Carmo— mereceram as homenagens. A obra de Eduardo Lourenço ajuda-nos a pensar Portugal e os portugueses —em Portugal, na Europa, no Mundo—, nas suas virtudes e nos seus muitos defeitos; a voz de Carlos do Carmo, não só pela sua qualidade, como também pelos poetas que cantou e pelas composições musicais que porporcionou e que o seu rigor exigiu, também nos ajudou a conhecer o país que é o nosso, devendo realçar-se a forma como cantou Lisboa. Amália, José Afonso e Carlos do Carmo são —e não apenas foram— vozes que colocaram Portugal nos mais altos patamares da música universal do género.

Mas, pergunto, em que é que a obra de João Cutileiro é menos merecedora das mesmas homenagens? É meu convencimento que Eduardo Lourenço e Carlos do Carmo não estariam em desacordo comigo.

Quando na minha adorada Lagos me encontro, não resisto a mais uma vez ir ver o seu D. Sebastião, escultura que me diz mais sobre «O Desejado» do que muitos dos estudos que sobre ele li (claro que os estudos me deram informações que me ajudaram a ler a escultura). Pena é que a Câmara Municipal não dê a dignidade à Praça onde a escultura está colocada que esta obra de João Cutileiro merece, não conhecendo eu na cidade uma criação que se lhe compare, acompanhando eu Miguel Sousa Tavares no que diz na sua última crónica para o Expresso ( de 2021/01/08): «Devo ao João horas sem fim de face a face com o seu D. Sebastião, numa praça que começou por o rejeitar e que hoje, de tão abastardada, o desonra.»

A quem não conhece a obra de João Cutileiro, ou conhece mal, proponho que leiam esta crónica de M. S. T («E tudo passa, e tudo se esquece», é o seu título).

Não conheci pessoalmente João Cutileiro, mas vi algumas das suas exposições, nomeadamente em Évora e em Lisboa, mas nunca tive dinheiro suficiente para adquirir uma ou outra das suas esculturas, como, por exemplo, as que a fotografia a seguir mostra (que retirei do «youtube.com – João Cutileiro – Um artista da exposição Pós-Pop. Fora do lugar comum»).

No mesmo vídeo do «youtube», podemos ouvir estas suas palavras: «A sexualidade e a fome, “as fomes”, portanto, a fome sexual e a fome gastronómica, são as forças que me moldaram e que se reflectem, certamente, em todo o traço que faça».

Miguel Sousa Tavares (M. S. T.) termina assim aquela sua crónica, referindo-se a João Cutileiro:

«Esculpiu, desenhou, retratou. Sorriu, troçou, amou, resmungou, viveu. Provocou, contestou, rompeu, inovou. Foi um homem livre, independente, sem medo e sem dono. Não houve e não há muitos como ele.»

Nesse mesmo texto, M. S. T. escreve a dado passo: «O D. Sebastião, de Lagos, faz-me sempre lembrar o título de um livro do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, “A Educação pela Pedra”», o que me a levou a pegar no citado livro do grande poeta brasileiro e ler:

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

Uma educação pela pedra: por lições;

para aprender da pedra, frequentá-la;

captar sua voz inenfática, impessoal

(pela de dicção ela começa as aulas).

A lição de moral, sua resistência fria

ao que flui e a fluir, a ser maleada;

a de poética, sua carnadura concreta;

a de economia, seu adensar-se compacta:

lições da pedra (de fora para dentro,

cartilha muda), para quem soletrá-la.

As palavras de João Cutileiro acima transcritas e as de M. S. T., com invocação do poeta brasileiro, são bastante esclarecedoras e, portanto, ajudam-nos a compreender a razão por que os representantes políticos do actual sistema que nos (des)governa não poderiam prestar-lhe a sua homenagem.

Mas outros representantes políticos do mesmo sistema que nos (des)governa tiveram a mesma atitude, que agora estes mostram perante a morte de João Cutileiro, para figuras maiores como, por exemplo, o Padre Manuel Antunes, Vasco Magalhães-Vilhena, Luís Albuquerque, Vitorino Magalhães Godinho, Maria Helena da Rocha Pereira, Mário Dionísio, Júlio Pomar, para lembrar apenas alguns, não querendo falar dos ainda vivos. As obras que nos deixam mostram claramente como são erráticos os caminhos por que os representantes do sistema político que nos (des)governa têm optado na condução do país.

São figuras maiores não só no país, mas também internacionalmente e, na verdade, qualquer homenagem que lhes fosse prestada por esses representantes do sistema político vigente há, pelo menos, 30 anos, nada acrescentaria ao valor que lhes é reconhecido.

O Padre Manuel Antunes e Vasco Magalhães-Vilhena foram meus professores, dois Mestres que jamais esquecerei; de Luís Albuquerque e de Mário Dionísio guardo também o convívio extraordinariamente enriquecedor que com eles tive e a exigência de rigor em todas as acções, das mais simples às mais complexas.

De todos, incluindo Eduardo Lourenço e Carlos do Carmo, tenho as suas obras que me vão proporcionando momentos de reflexão preciosos no tempo que me é dado viver; de Júlio Pomar, para além de alguns livros de que é autor, os seus originais pictóricos não estão ao meu alcance, mas há sempre a possibilidade de adquirir uma ou outra serigrafia.

De João Cutileiro, não tendo as esculturas que gostaria de ter, tenho a oportunidade de, diariamente, poder admirar duas das suas obras que estiveram dentro das minhas possibilidades financeiras:

Escultura (múltiplo) de João Cutileiro
Desenho de João Cutileiro

Portela (de Sacavém) 2021-01-11

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