ANTÓNIO CÂNDIDO: “A LITERATURA É UM DIREITO E UMA NECESSIDADE DO SER HUMANO” por Clara Castilho

 

António Cândido, o sociólogo, crítico literário e professor universitário brasileiro, escreveu o ensaio “O direito à literatura”, onde explora o significado dos direitos humanos. Aí questiona se a literatura será um direito de todo ser humano. Mais, defende que ela é uma das necessidades do ser humano.

“….Por isso, a luta pelos direitos humanos pressupõe a consideração de tais problemas, e chegando mais perto do tema eu lembraria que são bens incompressíveis não apenas os que assegurem sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual.

São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o Direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura.

Mas a fruição da arte e da literatura estaria mesmo nesta categoria? Como noutros casos, a resposta só pode ser dada se pudermos responder a uma questão prévia, isto é, elas só poderão ser consideradas bens incompressíveis segundo uma organização justa da sociedade se corresponderem a necessidades profundas do ser humano, a necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos de frustração mutiladora. A nossa questão básica, portanto, é saber se a literatura é uma necessidade deste tipo. Só então estaremos em condições de concluir a respeito.

….. Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito.

… As produções literárias, de todos os tipos e todos os níveis, satisfazem necessidades básicas do ser humano, sobretudo através dessa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa visão do mundo. O que ilustrei por meio do provérbio e dos versos de Gonzaga ocorre em todo o campo da literatura e explica por que ela é uma necessidade universal imperiosa, e por que fruí-la é um direito das pessoas de qualquer sociedade, desde o índio que canta as suas proezas de caça ou evoca dançando a lua cheia até o mais requintado erudito que procura captar com sábias redes os sentidos flutuantes de um poema hermético. Em todos esses casos ocorrem humanização e enriquecimento, da personalidade e do grupo, por meio de conhecimento oriundo da expressão submetida a uma ordem redentora da confusão.

… Primeiro, verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos…..”

 

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