Espuma dos dias — O rapto de Mahmoud Khalil . Por Wadie E. Said

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

7 min de leitura

O rapto de Mahmoud Khalil

 

Se o Secretário de Estado pode simplesmente declarar deportável um residente permanente legal com base nas suas atividades constitucionalmente protegidas, a Primeira Emenda deixa de se aplicar aos não cidadãos.

 Por Wadie E. Said

Publicado por  em 14 de Março de 2025 (original aqui)

 

Apoiantes de Mahmoud Khalil em New York City em 12 de março (Spencer Platt/Getty Images)

 

Embora a detenção de Mahmoud Khalil tenha sido objeto de ampla cobertura, não deixa de chocar. Residente permanente legal nos Estados Unidos, Khalil regressava ao seu apartamento na Universidade de Columbia com a sua mulher grávida (cidadã americana) quando foi abordado por agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (ICE) que pretendiam prendê-lo por causa do seu papel de manifestante estudantil proeminente no campus. Todo o caso tinha um carácter de desleixo: os agentes do ICE alegaram que estavam a revogar o seu visto de estudante, mas foram informados de que ele tinha um “green card”, o que gerou confusão. O agente principal, que tinha sido homenageado por Donald Trump durante a sua primeira presidência, falou então com o advogado de Khalil ao telefone, mas desligou imediatamente quando o advogado pediu uma cópia do mandado que o agente alegava ter na sua posse.

Depois de Khalil ter sido preso e levado, o seu advogado entrou com um pedido de habeas para que ele fosse libertado. Isto faz todo o sentido. Numa ação de deportação, os não-cidadãos qualificados geralmente não são detidos, a menos que haja ureceio de que eles fujam ou representem um perigo para a comunidade. Neste caso, não se verifica nenhum dos dois casos, já que a esposa de Khalil está aqui, e ele não foi acusado de nenhum crime. No que parece ser uma retaliação por ter entrado com a ação de habeas, as autoridades de imigração transferiram Khalil para um centro de detenção na Louisiana. Este movimento também funciona como uma tentativa de torná-lo sujeito aos juízes do Distrito Ocidental da Louisiana, uma região muito mais conservadora do igualmente conservador Tribunal de Apelações dos Estados Unidos para o Quinto Circuito.

A natureza vil desse movimento – levando Khalil a mais de 1.000 milhas de distância da sua esposa grávida – não poderia ser mais óbvia. O texto oficial da conta X da Casa Branca anunciando a ordem de Trump para colocar Khalil em processo de deportação começou com uma provocação “Shalom, Mahmoud!” E os documentos que sustentam a sua petição de habeas citaram um caso recente do Segundo Circuito que considerou inconstitucional impor consequências punitivas relacionadas com a imigração em retaliação a um não-cidadão que exerce seus direitos de expressão e defesa protegidos.

A detenção de Mahmoud Khalil é uma nova iteração de uma velha prática: usar um palestiniano para quebrar proteções constitucionais e aumentar o poder do governo. Neste caso, o alvo são os direitos de liberdade de expressão de todos os não-cidadãos. Mas devemos estar avisados de que, se o governo chegar até aqui, os direitos de expressão dos cidadãos estarão na sua mira.

Durante décadas, os palestinianos estiveram sujeitos a excessos governamentais em detrimento dos direitos constitucionais de uma forma mais ampla. Os exemplos da história recente são muitos. Na sequência do ataque do grupo setembro Negro ao complexo da equipa olímpica israelita durante os Jogos Olímpicos de Munique de 1972, a administração Nixon criou o Comité do Gabinete de Combate ao Terrorismo (CCCT), que encarregou o FBI, o Serviço de Imigração e Naturalização (INS, o precursor do ICE) e o Departamento de Estado de monitorizar e vigiar os não-cidadãos árabes e os cidadãos americanos de origem árabe. O programa invasivo e de maior visibilidade do CCCT, a Operação Boulder, envolveu revisões de vistos para todos os não-cidadãos árabes. Apesar do programa ter processado cerca de 150.000 pessoas, o que resultou em algumas centenas de exclusões e deportações, foi descontinuado em 1975 porque, na opinião do governo, não produziu resultados. Esta é outra forma de afirmar que a população árabe deste país, nomeadamente os palestinianos, não era a ameaça terrorista que o Governo acreditava ser. Um efeito não intencional do aumento da vigilância foi tornar a comunidade árabe do país, até então politicamente retirada, muito mais mobilizada para enfrentar a ameaça da repressão do governo.

Na década de 1980, a administração Reagan voltou a visar imigrantes palestinianos para deportação. Numa ação supervisionada pelo então procurador-geral adjunto John Bolton, o Governo tentou afastar Fouad Rafeedie, um residente permanente legal de origem palestiniana do Ohio, com base na sua alegada pertença à Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), designada como um grupo terrorista pelo Governo, depois de ter participado numa conferência na Síria. Ele havia recebido autorização para entrar e sair dos Estados Unidos e completou a sua viagem em duas semanas. Quando regressou, ele e os seus companheiros foram mandados parar  e questionados no aeroporto sobre a viagem. Com base em informações confidenciais, o governo tentou colocar Rafeedie num processo sumário de exclusão. A exclusão difere da deportação na medida em que o governo pode recusar um não-cidadão na fronteira sem uma audiência ou qualquer direito de recurso. Todos os tribunais federais que analisaram o seu caso consideraram que Rafeedie tinha direito ao devido processo; como residente permanente legal, não podia ser sumariamente excluído. O governo acabou por desistir das suas tentativas de remover Rafeedie, mas a questão era clara: o governo não tinha medo de usar os palestinianos para tentar expandir os seus poderes, mesmo perante os óbvios limites constitucionais.

Em 1987, agentes do INS prenderam sete imigrantes palestinianos e um cidadão queniano (o L.A. 8) sob a acusação de serem membros da FPLP. O governo suspeitava deles com base nas suas atividades no sul da Califórnia, o que envolvia a distribuição de literatura e a realização de eventos em torno da causa palestiniana. Embora tenham sido visados pelas suas opiniões políticas, alguns foram acusados de infrações menores, como exceder o prazo de validade de um visto de estudante ou trabalhar sem autorização. Como a FPLP era um grupo marxista-leninista, eles foram acusados de serem removíveis com base na pertença a uma organização comunista sob a Lei McCarran-Walter, que acabou por ser declarada inconstitucional e mais tarde revogada pelo Congresso. A acusação de L.A. 8 foi uma saga de vinte anos de acusações de deportação rejeitadas e novas acusações a serem apresentadas à medida que a lei de imigração mudava. O seu caso foi finalmente arquivado em 2007, depois de o governo não ter apresentado as provas reais que demonstravam que eram, de facto, membros da FPLP.

Num artigo que escrevi com Anthony O’Rourke no final de 2023 na Dissent, criticámos o apelo da Liga Antidifamação (ADL) para que o FBI investigue estudantes que protestam contra a campanha genocida dos militares israelitas por alegadamente fornecerem apoio material ao Hamas, designada como uma Organização Terrorista Estrangeira (FTO). Nunca pareceu haver uma ligação entre os manifestantes, que representavam todas as esferas da vida americana, e qualquer FTO, muito menos o Hamas. O FBI, com os seus enormes poderes de investigação, certamente sabia disso. O crime de fornecer apoio material a uma FTO sob a forma de discurso requer trabalhar em coordenação ou sob a direção da própria FTO – algo que os manifestantes claramente não estavam a fazer. A defesa independente de uma FTO continua a ser um discurso protegido, mesmo para um não-cidadão. Mas os factos e a lógica nunca vencem quando a questão é defender os direitos dos palestinianos nos Estados Unidos.

A própria aprovação da lei do apoio material em 1996 baseou-se no que eu considerava ser uma falsa premissa – que os grupos terroristas estrangeiros estavam a angariar fundos para atividades violentas sob o disfarce de organizações de caridade. Nunca foi apresentada qualquer prova de que isso fosse verdade. Mas isso não impediu o Congresso de aprovar a lei, para a qual a ADL e vários outros grupos pró-Israel fizeram lobby.

No mundo pós-11 de setembro, a crença paranoica de que os terroristas espreitavam entre nós, enganando americanos bem intencionados e desviando o seu dinheiro para financiar a violência, levou à condenação de cinco palestinianos americanos em 2008, acusados de apoiar materialmente o Hamas através da Holy Land Foundation for Relief and Development, na altura a maior instituição de caridade muçulmana do país. O governo nunca contestou que o dinheiro que os Cinco da Terra Santa angariavam ia para pessoas necessitadas e que não tinham ligações com qualquer atividade violenta – apenas que a ajuda reforçava a legitimidade do Hamas aos olhos dos palestinianos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Isto estava muito longe de ser angariar dinheiro para a violência através da caridade, mas não impediu a acusação de produzir sentenças de até sessenta e cinco anos de prisão federal pelas atividades humanitárias não violentas dos arguidos. O resultado travou gravemente as doações de caridade aos palestinianos necessitados, uma vez que os potenciais doadores nos Estados Unidos receavam estar do lado errado de uma investigação sobre terrorismo.

Sei que tenho de estar atento quando discuto a Palestina e a sua relação com o direito americano. Alegações não factuais e sensacionalistas estão na ordem do dia. É por isso que tive um sentimento incómodo ao ouvir Joe Biden e Trump condenarem repetidamente os protestos no campus em 2023 e 2024. Enquanto candidato, Trump ameaçou deportar os envolvidos caso fosse eleito. Ele cumpriu a sua promessa com duas ordens executivas que exigem uma repressão aos manifestantes pró-Palestina no campus, sob o pretexto de combater o antissemitismo. A primeira ordem, de 20 de janeiro, exige uma verificação reforçada do que considera ser a “ameaça terrorista estrangeira”, com base no pressuposto de que esses indivíduos já se encontram nos Estados Unidos ou tentam ativamente vir para cá, e devem ser deportados  ou excluídos, conforme o caso. A segunda ordem, emitida nove dias depois, apela à tomada de medidas contra aqueles que se dedicam ao antissemitismo, visando especificamente os manifestantes do campus e ligando-os diretamente aos ataques de 7 de outubro. Exorta a uma série de medidas, incluindo “encorajar” o Procurador-Geral a instaurar processos criminais contra aqueles que conspiram para negar aos estudantes judeus os seus direitos civis e constitucionais.

O caso de Khalil, que surge na sequência destas ordens executivas, representa uma tentativa de inovação jurídica tornada permissível pela sua identidade palestiniana. Apesar de algumas acusações fundamentalmente frágeis da sua atividade “alinhada com o Hamas”, ou da posse de panfletos de apoio ao Hamas – para as quais não apresentou provas – o governo admitiu finalmente o que considera serem os motivos de deportação. Não se estava a basear no conceito amplo e expansivo de apoio material ao Hamas, porque era evidente que ele não tinha dado nenhum. Em vez disso, o governo argumenta que ele é deportável como um “estrangeiro cuja presença ou atividades nos Estados Unidos o Secretário de Estado tem motivos razoáveis para acreditar que teria consequências adversas potencialmente graves para a política externa dos Estados Unidos”, uma disposição estatutária que foi declarada inconstitucional no único parecer jurídico que analisou a lei.

Embora o caso tenha sido mais tarde arquivado por outros motivos, o tribunal observou que seria impossível saber de antemão como adaptar o seu discurso à natureza desconhecida e mutável da política externa dos EUA. Não há apoio material, não há motivos criminais – apenas a determinação do Secretário de Estado de que a presença de um palestiniano apátrida tem consequências adversas para a política externa, com base apenas no discurso e na associação protegidos pelo Primeiro Emenda. Nesta altura, podemos fazer uma pausa para colocar uma questão sobre a natureza substantiva das “consequências adversas para a política externa”. Durante os mais de dezassete meses que decorreram desde 7 de outubro, houve alguma claridade entre os Estados Unidos e Israel sobre a questão fundamental de negar aos palestinianos qualquer palavra sobre o seu futuro? Assistimos a um nível verdadeiramente sem precedentes de ajuda militar, diplomática e económica dos Estados Unidos ao governo israelita durante o que uma vasta rede de académicos individuais, grupos de defesa dos direitos humanos, organismos da ONU e várias nações soberanas classificam como um genocídio. E a ajuda não só nunca parou, como aumentou para além de qualquer racionalidade.

O estatuto federal de imigração que abrange a exclusão – um processo muito menos protetor dos não cidadãos do que a deportação – afirma que um não cidadão “não será excluído ou sujeito a restrições ou condições de entrada nos Estados Unidos ao abrigo da cláusula (i) devido às crenças, declarações ou associações passadas, actuais ou previstas do estrangeiro, se essas crenças, declarações ou associações forem lícitas nos Estados Unidos, a menos que o Secretário de Estado determine pessoalmente que a admissão do estrangeiro comprometeria um interesse imperioso da política externa dos Estados Unidos”. A mesma disposição também deixa claro que o Secretário de Estado tem de informar os chefes das comissões parlamentares do poder judicial e dos negócios estrangeiros se tenciona designar alguém ao abrigo desta parte do estatuto. A presunção é que os direitos de liberdade de expressão de um não-cidadão devem ser respeitados; dado que esta presunção existe no domínio muito menos protetor da exclusão, deveria funcionar como uma maior proteção nas audiências de deportação que Khalil enfrenta.

O verdadeiro perigo da proposta de deportação de Khalil não reside nestes pormenores processuais. O Supremo Tribunal deixou claro que a Primeira Emenda se aplica a todos nos Estados Unidos, cidadãos ou não, e independentemente do facto de o governo a considerar ofensiva. Se o Secretário de Estado pode simplesmente declarar um residente permanente legal deportável como uma ameaça à política externa com base nas suas atividades protegidas pela Primeira Emenda, esta deixa  de se aplicar aos não cidadãos dos Estados Unidos. Temos de encarar esta ação como parte integrante dos outros desafios da administração Trump ao que é o direito constitucional estabelecido, tal como a ordem executiva que pretende anular o direito de primogenitura.

Por outras palavras, a situação de Mahmoud Khalil constitui um teste à alteração da Constituição por ação executiva, sem as salvaguardas que tornam a alteração um processo tão difícil. Neste caso, o alvo a atingir é um palestiniano apátrida, visado na sua terra natal para ser exterminado e agora perseguido no seu suposto local de refúgio. A propensão americana para o tratamento injusto dos palestinianos continua a aumentar. Resta-nos esperar que os tribunais vejam esta tomada de poder inconstitucional pelo que ela é – mas a auto-justificação irada e irrefletida do executivo é um inimigo aterrador.

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Wadie E. Said é Professor de Direito e membro do corpo docente da Faculdade de Direito da Universidade do Colorado. Anteriormente, foi professor de Direito Miles e Ann Loadholt na Faculdade de Direito da Universidade da Carolina do Sul, bem como defensor público federal adjunto. Membro do American Law Insitute, Professor Said ministra cursos de Direito Penal e processual e Direitos Humanos, e é autor de Crimes de Terror: as implicações legais e políticas dos processos Federais de terrorismo (Oxford University Press), bem como de muitos outros trabalhos que tratam da intersecção do Direito Penal, do Direito Internacional, do direito de imigração e da política externa.

 

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