ARGUMENTOS FAVORÁVEIS AO ACORDO ORTOGRÁFICO – D’Silvas Filho

Com os nossos agradecimentos, transcrevemos este artigo de D´Silvas Filho Consultor do Ciberdúvidas, membro do Conselho Científico da Sociedade da Língua Portuguesa e autor do Prontuário Universal, Erros Corrigidos de Português, da Texto Editora.

As pessoas que se opõem ao novo acordo insistem em argumentos novos, alguns sem grande justificação ou nos quais há nítida intolerância.

Neste artigo procura-se rebater esses argumentos.

1 – Esclarecimento prévio

1.1 Defensor do novo acordo, isso não significa que o considere absolutamente perfeito. Penso que, quando se altera a língua, a mudança deve ser profunda (como a de 1911), para evitar novos ajustamentos a curto prazo (o que aconteceu logo em 1971 depois do acordo de 1945, mudança que obrigou na mesma à alteração das impressões).

Nesta ideia, alinho com o ilustre linguista brasileiro Evanildo Bechara. Eu preferiria que tivesse ido avante o projecto de 1986, que era radical por exemplo nos acentos (acabava com as diferenças António/Antônio) e nas regras do hífen. Lembra-me que, depois de ter lido todo o longo preâmbulo desse projecto, só no fim reparei que estava escrito com a nova norma proposta, o que demonstra bem como é muitas vezes desnecessária a grande complicação da norma ortográfica que ainda nos rege.

A língua precisa de ser simplificada. Sem abandonar a sua matriz etimológica, para que se adapte às várias pronúncias, deve, no entanto, expurgar-se de elementos presentemente inúteis, só mantidos para conservar a história das palavras, defendida teimosamente pelos eruditos do grego e do latim (por exemplo, teimam que em baptistério se exige um p, porque a palavra vem do grego βαπτιστήριον, pelo latim `baptisteriu-´…; mas há muito que a pronúncia da palavra eliminou o p, letra que, assim, só serve agora para complicar a escrita). Uma coisa é o respeito pelo passado, outra é o sacrifício do presente a um passado obsoleto.

As novas gerações da informática, porque sentem a língua inutilizável tal e qual é nos processos expeditos da comunicação actual, estão, por isso, a dar-lhe uma faceta de simplificação excessiva, o que também é mau.

O novo acordo simplifica alguma coisa, não o suficiente. Defendo-o porque traz a outra vantagem que há muito os especialistas de boa-fé de Portugal e Brasil perseguem: a unificação duma língua portuguesa no universo da lusofonia. Foi a unificação fraca possível, depois da rejeição do projecto de 1986.

Repito que o Brasil considera a sua língua como sendo de Machado de Assis, mas que também a considera de Camões. Não está nos seus propósitos designá-la por brasileira. Só que essa emergência pode ser natural e inelutável, se o Brasil se vir obrigado avançar sem Portugal para o novo acordo, como já pode, com Cabo Verde e são Tomé, e, logo a seguir, com Angola, que parece estar receptiva à mudança.

1.2) Que fique bem claro que, no espírito com que estudo a língua, as pessoas que se opõem ao novo acordo e que lhe apontam defeitos me merecem o maior respeito. Não quero duvidar das suas boas intenções na defesa da língua, segundo os princípios em que acreditam. Algumas, porém, usam argumentos que podem iludir as pessoas mais mal informadas, e daí eu ter sentido necessidade de voltar ao assunto.

2 – Novas objecções

2.1 Defeitos científicos

Diz-se que o acordo de 1990 apresenta os mesmos defeitos científicos que o projecto de 1986. Ora o argumento não é válido na comparação, pois um motivo (além do horror ao cágado sem acento, como lembro sempre) por que o projecto de 1986 foi abandonado era justamente ter soluções inaceitáveis nos poucos casos em que a procura da simplicidade foi imponderada (ex.: *bemaventurado, com possibilidade de retorno da grafia sobre a fonia). Isto não se verifica no acordo de 1990

Quanto ao aspecto científico na generalidade, os detractores do novo acordo sabem bem que há especialistas idóneos a afirmar que este acordo não tem problemas linguísticos. Os detractores invocam outros linguistas (que se debruçaram sobre o de 1986…) para apresentarem opinião contrária. Repete-se que a ortografia de 1990 é meramente um acordo entre pátrias, com o objectivo de terem uma “comum língua”, planetária.

Nesta objecção, estamos na esfera das opiniões e não das fundamentações, válidas num universo científico.

2.2 A barafunda das duplas grafias

Insiste-se no inconveniente de haver duplas grafias no novo acordo.

Em primeiro lugar, argumenta-se que depois será necessário nos textos oficiais escrever, por exemplo, caracteres/carateres, pois que as duas variantes passam a ser possíveis. O argumento, contudo, não é válido, pois ninguém nos obriga presentemente a escrever herbanário/ervanário, lá porque existe esta dupla grafia no léxico. Dá a impressão de que alguns argumentos só aparecem por distracção.

Para mostrar essa vantagem do novo acordo, basta lembrar que no Brasil, não obstante a grafia oficial ser Antônio, há regiões que pronunciam António como em Portugal; e, então, segundo o novo acordo, passará a ser legal, nomeadamente no Brasil, escrever-se duma maneira ou de outra, como se entender (e não absurdamente a mesma palavra com as duas grafias). O argumento de que «assim lá se vai o acordo» também não é válido, pois é justamente o novo acordo que permite esta facilidade.

Insiste-se igualmente no inconveniente de passar a haver muitas palavras que se poderão escrever de duas maneiras. Ignora-se ou esquece-se que o léxico está repleto de duplas grafias.

Num Prontuário do mercado, com um vocabulário de cerca de 28 000 entradas, e só para a letra A, foram encontradas as seguintes duplas grafias: abscesso/abcesso, abrótega/abrótea, agrafo/agrafe, agridoce/agrodoce, álcali/alcali, Alcorão/o Corão, aliciamento/aliciação, aloés/aloé, alvoroçar/alvoraçar, ameixa/amêixoa, ameixeira/ameixoeira, amolgadela/amolgadura, andebol/handebol, anfitrioa/anfitriã, antigás/antigásico, aquicultura/aquacultura, aspirante/aspiranta, assassínio/assassinato, assimptota/assímptota, assobio/assovio, asteróide/astróide. Ora como esta parte do Vocabulário do citado Prontuário só tem 1500 entradas, uma extrapolação, primeiro para o Vocabulário inteiro e depois para um outro com, por exemplo, 350 000 entradas, dá presentemente muitos milhares de duplas grafias na língua (veja-se o Vocabulário da Academia Brasileira de Letras).

Este argumento contra o acordo não é decisivo, porque não levanta um precedente.

A dupla grafia sempre se considerou estilisticamente uma riqueza da língua, pois permite mudar a palavra num texto, para fugir às repetições. As duplas grafias propostas no novo acordo são igualmente uma riqueza da língua no seu aspecto universal; não propriamente na ideia de mistura num mesmo texto, mas no facto de que estabelece, em todos os países da lusofonia, a legalidade das variantes da `comum língua´, sem necessidade de usar textos diferenciados.

2.3 H inicial e h interior.

As regras defendidas no novo acordo são iguais às que presentemente nos regem. Não se percebe a argumentação na comparação com a supressão das consoantes mudas. Entre baptistério e batistério, por exemplo, ou entre accionar e acionar não se põe o mesmo problema de rejeição que haveria nas grafias *oje ou *ora em relação a hoje ou hora, que estão já assim fixadas na memória visual.

Este argumento contra o novo acordo não é válido.

2.3 Vocabulário comum

A necessidade do vocabulário comum não passou nada a ser ignorada. No preâmbulo do acordo de 1990, o que se previa era que dois anos antes do acordo entrar em vigor seria necessário um vocabulário comum. Ora, mesmo que o novo acordo entre em vigor daqui a 4/5 anos (2012/2013, como algumas editoras importantes já aceitam), o vocabulário comum será indispensável lá para 2010/2011, a fim de, depois, se ir elaborando a impressão dos textos que terão obrigatoriamente a nova grafia. A questão agora é unicamente Portugal aceitar que vai mesmo pôr o novo acordo em vigor, lá mais para diante.

Mas se o Vocabulário comum estiver acessível antes, isso seria vantajoso, também para a elaboração atempada de correctores de texto, por exemplo.

Volta a lembrar-se que já existe um Vocabulário completo e actualizado, o da Academia Brasileira de Letras, de 1998, que existe também um vocabulário completo da Academia das Ciências de Lisboa, de 1940, e que os responsáveis dizem que elaboram um vocabulário actualizado satisfatório para Portugal em poucos meses.

Este argumento contra o acordo não é significativo, embora se reconheça que o Vocabulário já devia estar feito, se tivesse havido responsabilidade portuguesa como houve brasileira.

2.4 Nomes das letras

A norma actual também não impede que ao w uns chamem dâblio, outros dáblio, outros ainda dublo v; ao m uns chamem eme, outros mê (na iniciação às letras), etc., etc.

Este argumento contra o acordo não é consistente.

2.5 História das palavras e dicionários com divergências

O problema poderá ser resolvido com o Vocabulário comum oficial, que servirá de modelo depois para os lexicógrafos.

Este argumento é importante e deve ser ponderado na elaboração do Vocabulário

2.6 bainha, moinho, rainha

O texto da norma actual efectivamente não diz que i «constitui sílaba com nh», mas simplesmente «que está seguida de nh». Repare-se, porém, que se pode defender que a nasalação de nh tem influência especificamente na pronúncia nasalada do i anterior, e é essa ligação que justifica a dispensa de acento no i  para converter a semivogal em vogal (como acontece por exemplo em sairdes).

Este argumento é um pormenor técnico da descrição, que não é significativo para se recusar o novo acordo. A regra estabelecida não é alterada pelo facto de se dizer de uma maneira ou de outra, significando que o i está antes de nh.

2.7 Sufixos -zinho e -zito

Será em rigor como se argumenta. A verdade é que, por exemplo, a idónea obra de Celso Cunha e Lindley Cintra regista -zinho como sufixo. Estes ilustres linguistas resolveram aceitar a designação usual, sem entrarem em preciosismos eruditos.

Este argumento impede a ratificação do acordo? Claro que não.

2.8 Baía de Todos-os-Santos e Todos os Santos.

São nomes de natureza diferente. Baía de Todos-os-Santos é um topónimo, e, como tal, obedece às regras dos topónimos. Todos os Santos é uma festividade, e como tal, é dispensada de hífenes no novo acordo.

De acordo que há incoerência; mas também na norma actual se podem encontrar incoerências.

Esta incoerência não é decisiva para se recusar o novo acordo.

2.9 Hífen em hão-no

Deve ter havido confusão na comparação que foi feita, pois no caso de `hei de´ estamos em presença da regência do verbo haver com a preposição `de´, onde o hífen pode ser dispensado, ao passo que em `hão-no´ estamos na conjugação pronominal, que obedece às regras da Base XVII, 1.º

Este argumento não é consistente.

2.10 “Ou sejam” e “diagramas”

É óbvio que há gralhas nas grafias. A este nível de sabedoria não podemos pensar que os linguistas do acordo ignoravam que um dígrafo é a mesma coisa que um digrama (não diagrama). Dá vontade de parafrasear as palavras bíblicas: quem nunca teve gralhas nos seus trabalhos que atire a primeira pedra (eu não atiraria…).

3 – A unidade na língua

Repito mais uma vez que a unidade da língua portuguesa na lusofonia é obtida no novo acordo com facto de a unificação permitir que, assim, seja aceitável a existência de um único dicionário no universo da língua. E repare-se que há manifesta incoerência nas pessoas que reclamam contra as duplas grafias e que depois aceitariam um dicionário que contivesse todas as numerosíssimas grafias diferentes nas variantes europeia e brasileira actuais, com ou sem as consoantes mudas.

22/02/2008

texto inserto na página pessoal do autor
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5 Comments

  1. Assevero que não pretendo ofender ninguém. Mas é-me difícil perceber as razões pelas quais este senhor é membro do Conselho Científico da SLP. Já me é mais fácil admitir a sua condição de consultor do Ciberdúvidas – entusiástico apoiante de primeira hora do AO -, onde uma vez deparei com a espantosa “explicação” de outro consultor (ratificada pela coordenação do sítio) sobre a razão de não haver “ano zero” no Calendário Gregoriano (nem em nenhum outro, digo eu!), nem mais nem menos a de que o “zero” não era conhecido pelos romanos!
    Que fique claro que também eu não duvido das boas intenções do autor deste artigo. Do que duvido é das bases científicas dos seus argumentos e da sua coerência.
    Não vou remoer argumentos que já utilizei. Vou apontar algumas (e só algumas, que o tempo é escasso e o cansaço cresce) das fragilidades deste texto.
    D’Silvas começa por nos tirar qualquer dúvida sobre as consequências de “acordos” destes, ao desvendar, logo de entrada (e ir espalhando pelo texto umas quantas variações sobre o “tema”) ao que vem o AO, escrevendo: “quando se altera uma língua”… Pois é disso mesmo que se vem tratando: da perversão congénita de um “acordo”, que se pretende ORTOGRÁFICO, cometer o abuso de “alterar a língua”, não de harmonia com a sua evolução natural, mas com a violência de uma intrusão que lhe é alheia! Creio que todos os opositores do AO agradecem a franqueza do esclarecimento.
    Ficamos, pois, desde as primeiras linhas, entendidos, no que se refere ao que está, efectivamente, em causa.
    Mas devo salientar algumas “variações” e dissonâncias mais agrestes, de tom e timbre.
    Tomemos uma das mais interessantes: “A língua precisa de ser simplificada”. Palavra?! Que descanse o senhor conselheiro: a LÍNGUA está a simplificar-se, vertiginosa e assustadoramente, devido a diversos factores, desde as poupanças governamentais no ensino público e alterações taralhoucas aos programas escolares de português e literatura, até ao simplismo da linguagem usada nos “media”. Por este caminho, a pobre da língua não tardará a regredir a uns escassos e primitivos sons inarticulados, o que dispensará o estabelecimento de qualquer norma ortográfica, para sossego de académicos de curta andadura.
    Uma curiosa dissonância surge quando o autor pretende abordar as “duplas grafias” que encontra num “Prontuário do mercado”, produzindo uma interessantíssima lista onde o que eu encontro – com uma excepção, se bem medi – são pares de palavras ou expressões (Alcorão/o Corão), mais ou menos aproximadas, mas que representam, na verdade, sinónimos: “aliciamento” e “aliciação” são dos exemplos mais claros de sinónimos que não se podem confundir com grafias diferentes de uma mesma palavra; se, no Prontuário, coexistem “abscesso” e “abcesso”, “abrótega” e “abrótea”, “amolgadela” e “amolgadura”, etc… é porque ambas as palavras de cada um desses “pares” são utilizadas, ou na linguagem corrente, ou uma na linguagem corrente e outra na erudita, ou porque uma delas corresponde a um regionalismo (assovio), ou ainda porque o organizador do Prontuário acolhe como aceitáveis, pela sua integração na linguagem comum, estrangeirismos (assassinato) ou deturpações populares de certos termos (aspiranta, astróide). Onde o senhor conselheiro descobre duplas grafias aos milhares, eu encontro milhares, sim, mas… de sinónimos. Confundir estes exemplos de sinonímia – com a única excepção, que revela, aliás, um Prontuário algo vetusto ou descuidado na elaboração ou actualização, de “andebol/handebol”, as únicas com idêntica pronúncia – com diferentes ortografias de uma mesma palavra em nada contribui para avalizar o rigor científico desta elucubração do conselheiro D’Silvas…
    Acrescendo a referida confusão contumaz entre língua e ortografia, terei de me render à evidência de que a fiabilidade do restante deste esforço explicativo se aproxima da derrocada. Digamos que estes pecados mortais contra uma conceptualização bem definida e o rigor científico cortam cerce qualquer apetência de leitura mais alongada do texto, que de imediato se antecipa como uma perda de tempo. Conclusão talvez por alguns entendida como demasiado severa, mas que só por desonestidade (que não é de meu uso) esconderia em mortalha de mais amena expressão. Se alguma dúvida restasse, bastaria topar com a dureza de ouvido (sendo a capacidade auditiva uma das mais preciosas ferramentas do linguista) que leva o autor a não descortinar a diferença melódica, traduzida pelo hífen ou pela sua ausência, entre o “há-de” de Portugal e o “há de” do mais velho dos nossos países-irmãos.
    Quanto a essa mítica unidade eterna de uma língua, passível de ser garantida por acordos ortográficos, seria outra conversa, com muito para pensar e dizer. Faço apenas o reparo de que parece haver demasiada (e erudita!) gente a esquecer-se de que já ninguém fala ou escreve latim (e esse, de morto, já não muda), a não ser no seio de algumas igrejas cristãs, com particular relevo para a Católica Apostólica Romana. Mas será, talvez, bizantinice minha, que tenho a tineta de não deixar bósforos por atravessar…

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