CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE JOÃO VILLARET – I – por Álvaro José Ferreira

Nota prévia:

Tendo entretanto surgido a oportunidade de facultar a audição de duas edições especiais do programa “Agora… Acontece!”, de Carlos Pinto Coelho, dedicadas a João Villaret, não quis deixar de a aproveitar. Além de conterem informação adicional sobre o insigne actor e recitador, por ele próprio (em entrevista a Igrejas Caeiro) e pelo seu biógrafo António Carlos Carvalho, assim como vários espécimes poéticos e poético-musicais (vide alinhamentos abaixo), as duas edições do “Agora… Acontece!” têm o mérito acrescido de servirem para evocar dois distintos entrevistadores e homens da rádio portuguesa – Francisco Igrejas Caeiro e Carlos Pinto Coelho.

Para as ouvir há que aceder à página http://nossaradio.blogspot.pt/2013/05/joao-villaret-centenario-do-nascimento.html e clicar nos respectivos “play áudio”.

É serviço público que o blogue “A Nossa Rádio” se orgulha de prestar aos seus leitores, designadamente aos que sendo ouvintes da Antena 1 se sentiram defraudados – e com inteira razão – por a sua rádio (sua porque a pagam) ter – inexplicavelmente – ficado alheada da efeméride.

10 Maio 2013 – João Villaret: centenário do nascimento

Imagem1

Filho do médico Frederico Villaret e de D. Josefina Gouveia da Silva Pereira, João Henrique Pereira Villaret nasceu em Lisboa (no n.º 69 da rua da Boavista, freguesia de São Paulo), a 10 de Maio de 1913.

A vocação artística manifestou-se nele em tenra idade, mas não sem se deparar com algumas incompreensões e contrariedades. Primeiro foi a família que não levava a sério as suas exibições baléticas privadas, embora lhes achasse graça. Depois foi Miss Price, directora do Anglo-Portuguese College (à Calçada Marquês de Abrantes), que resolveu excluí-lo, à última hora, de uma récita escolar por alegada falta de jeito para representar o papel que lhe fora atribuído. Mas o triste episódio, em vez de o derrotar, teve o condão de reforçar a confiança em si mesmo, avivando-lhe o desejo de se tornar actor. Ele tinha de provar à professora e aos colegas que troçavam dele que sabia representar, e que fora uma injustiça a sua exclusão.

Concluída a instrução primária, ingressou no Liceu Passos Manuel, calhando-lhe em sorte uma professora, Amália de seu nome, que não demorará a devotar-lhe uma grande e incondicional admiração. Chamava-lhe, com muita ternura, “Frei João sem cuidados”. E talvez por essa empatia, por esse reconhecimento das suas potencialidades, Villaret lia de tal maneira “Os Lusíadas” que a docente ficava rendida e nem se atrevia a sugerir qualquer alteração. Pelo precoce entendimento que tinha da poesia, e por se considerar a sua leitura tão exemplar, o jovem era enviado para as salas do 7.º ano (actual 11.º ano de escolaridade) a ensinar os colegas mais velhos como se devia ler o nosso grande épico.

Em 1928, ainda antes de completar quinze anos de idade, tomou a decisão de concorrer ao curso de representação dramática do Conservatório Nacional de Lisboa. Nas provas de admissão, recitou dois vilancetes e um soneto de Luís de Camões. «Recitei-os como eu os sentia e, no fim, o mestre, que era professor conceituado da casa, olhou-me com severidade e disse: “O menino tem boa voz, mas os versos não se dizem assim, mas como se fossem prosa”. E eu, muito pespinete, nervoso e irritado, respondi: “Então por que é que são versos?” E o mestre: “O menino é insolente mas inteligente, está admitido.”». Decorridos três anos, na noite de 16 de Outubro de 1931, João Villaret vem a estrear-se profissionalmente no Teatro Nacional D. Maria II, integrado na Companhia Amélia Rey Colaço/Robles Monteiro, interpretando a figura de Fernão Lopes na peça “Leonor Teles”, de Marcelino Mesquita. Assim se iniciava a gloriosa carreira do actor que, no entanto, não se confinaria ao drama e à alta comédia (Gil Vicente, Shakespeare, Molière, Almeida Garrett, Bernard Shaw, Eugene O’Neill, etc.). Villaret também nutria um especial apreço pelo teatro de revista, onde se veio a estrear em 1941, suscitando o escândalo daqueles que consideravam o género uma arte menor. Em 1947, para a revista “‘Tá Bem ou Não ‘Tá?”, Aníbal Nazaré, Nelson de Barros e António Ascensão Barbosa (também conhecido por António Porto) escrevem-lhe o “Fado Falado” (sobre música de Francisco Paulo Menano), verdadeira peça de antologia da história da música e do teatro popular portugueses. Um recitativo sobre uma melodia de fado onde a letra, que jogava habilmente com a mitologia do género, era não cantada mas verdadeiramente “representada” por Villaret, que assim juntou ao cânone da música portuguesa mais um clássico. Outros êxitos vieram depois, como “Esta Vida É Um Corridinho” (1952, na revista “Lisboa Nova”), “Procissão” (1955, na revista “Melodias de Lisboa”), “Rosa Araújo” e “Santo António”, os dois últimos criados na revista “Não Faças Ondas!” (1956).

Uma das representações bem paradigmáticas da sua enorme versatilidade e que mais fascinou o público foi, sem dúvida alguma, a peça “Esta Noite Choveu Prata”, do brasileiro Pedro Bloch, levada à cena, em 1954, no Teatro Avenida. Aí desempenhou três papéis distintos (um em cada acto): Francisco Rodrigues – comerciante português; Pietro Bonardi – músico italiano; e Camilo – actor brasileiro. O crítico Fernando Fragoso afirmou a propósito desta extraordinária criação: «É de tal forma brilhante que os outros valores do espectáculo – embora para ele concorram – se diluem na sombra.».

Na sétima arte, participou nos seguintes filmes: “Bocage” (1936), de José Leitão de Barros, onde encarnou o príncipe regente D. João (futuro rei D. João VI); “O Pai Tirano” (1941), de António Lopes Ribeiro, numa breve aparição como pedinte mudo; “O Violino do João” (1944), de José Braz Alves, no papel do russo Pedro Derminova; “Inês de Castro” (1945), de José Leitão de Barros, onde fez o bobo Martim; “Camões” (1946), também de Leitão de Barros, onde desempenhou o papel de D. João III; “Três Espelhos” (1947), co-produção luso-espanhola realizada por Ladisdao Vadja, como Inspector Moisés; “Frei Luís de Sousa” (1950), de António Lopes Ribeiro, onde encarnou o aio Telmo Pais, talvez o seu desempenho mais sublime no cinema; “A Garça e a Serpente” (1952), de Arthur Duarte, como Cristóvão de Miranda; e “O Primo Basílio” (1959), de António Lopes Ribeiro, no papel do bom Sebastião. No documentário “Mar Português” (1950), de João Mendes, recitou (em voz off) poemas de Luís de Camões, António Nobre, Guerra Junqueiro, Fernando Pessoa e Alberto Rebelo de Almeida.

Com uma sensibilidade invulgar e dotado de uma notável intensidade expressiva aliada a um inexcedível poder de comunicação, reabilitou a difícil arte de recitar poesia, prendendo a atenção do expectador, quer em sessões ao vivo (uma que realizou no Teatro de São Luiz seria editada em disco), quer através da televisão (aí se acompanhando, ao piano, pelo irmão Carlos Villaret). «Não digo versos; procuro reproduzir o momento de angústia, de alegria, de revolta que o poeta sentiu ao escrever o seu poema. Recitando, encontro a plena libertação, pois dou-me esse infinito gosto de interpretar aquilo que amo e que me tocou profundamente.» E Miguel Torga referiu-se-lhe nestes termos: «Nunca é demais agradecer a Villaret o que ele tem feito pela poesia. Os poetas devem-lhe uma espécie de requintada edição oral de alguns dos seus melhores versos; o público, esse resgata-se a ouvi-lo da preguiça que o afastava tragicamente dum convívio que nenhum oiro da terra pode suprir.»

O falecimento prematuro de João Villaret, no auge da glória, vítima de diabetes, a 21 de Janeiro de 1961, causou imensa consternação no país, de tal forma que, durante alguns anos, os lisboetas assinalavam o dia da sua morte com um recital de poesia no Cinema São Jorge, onde a sua voz se ouvia num palco vazio iluminado apenas por um foco de luz. Em sua homenagem, Raul Solnado deu ao teatro que, em 1965, abriu no n.º 30-A da Avenida Fontes Pereira de Melo (às Picoas) o nome de Teatro Villaret.
Não sendo muita extensa, a discografia que nos legou constitui um precioso testemunho da sua inigualável arte de dar voz (e alma) às palavras. Aqui se apresentam dois magníficos espécimes: o poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, e a cantiga “Santo António” (letra de Fernando Santos e música de João Nobre).
Antes, e evocando na mesma assentada dois eméritos entrevistadores e homens da rádio – Francisco Igrejas Caeiro e Carlos Pinto Coelho –, resgata-se a memória do programa “Agora… Acontece!” com duas edições exclusivamente consagradas a João Villaret.

(Continua)

 

Leave a Reply