DYLAN THOMAS – 2 – por Rachel Gutiérrez

Imagem1

(Continuação)

No começo eu quis escrever poesia porque me apaixonei pelas palavras.

Enamorado delas, o menino busca rimas e assonâncias nas palavras antes mesmo de poder lê-las ou escrevê-las. Contudo, não será um bom aluno. Desde a escola da Sra. Hole, só o que realmente lhe interessa é a língua inglesa, e jamais vai receber, como Rimbaud, nove prêmios de uma vez. Com apenas dez anos, porém, já então na Grammar School, onde seu pai é o venerado professor de literatura, seus poemas começam a fazer sucesso. Mas nem a presença do pai consegue retê-lo por muito tempo nos estudos que abandona, para sempre, aos dezesseis.

A infância, fonte inesgotável de sonhos e de poesia, se alonga em Dylan Thomas. As paisagens de Gales povoam seus contos e seus poemas. Fernhill, o sítio da tia Ann, ora aparece como Gorsehill, como em “Os pêssegos”, ora como Fern Hill, como no belo poema “Colina das samambaias”, cujo título em inglês, assim separado – Fern… hill – produz ressonâncias da língua alemã (fern: longe), a colina distante, distante no espaço, distante no tempo. E a figura proustiana da tia Ann toma proporções aterradoras no impressionante poema “Depois do funeral”.

Her fist of a face died clenched on a round pain;

An sculptured Ann is seventy years of stone.

E que, ao morrer, o punho de seu rosto se contraiu numa dor

redonda;

Eis Ann esculpida, setenta anos de pedra.

A infância é também o espaço dos horrores. Há séculos, Gales é habitado por fantasmas. Atormentado por terrores noturnos, o menino, depois o rapaz e até o homem, muitas vezes só conseguirá dormir de manhã. O que o salva é a leitura. Lê tudo o que lhe cai nas mãos e principalmente, é claro, os poetas, esses magos. É guiado por um verso de John Donne: “Vai e agarra uma estrela cadente”!

É extraordinário o conhecimento que Dylan Thomas já possui, aos quinze anos, da moderna poesia de seu tempo. Num artigo escrito em 1929, para a revista da Swansea Grammar School, ele revela sua intimidade com quase toda a criação poética européia até aquele período. O artigo não é o de um rapaz, mas de um crítico lúcido e seguro de suas opiniões. Já é trabalho de um profissional. E nisso consiste, especificamente, o prodígio de Dylan Thomas. Por mais que a vida tenha corrido desregrada e turbulenta, por mais que, trágica e profundamente, mais tarde as marcas do alcoolismo o tenham deformado, Dylan sempre foi apaixonado por seu métier, um estudioso, um artesão obstinado, um artista extremamente severo em seu ofício.

In my craft or sullen art

Exercised in the still night

Em meu ofício ou arte taciturna

Exercido na noite silenciosa

Ele mesmo declarou que gostava de tratar as palavras como um artesão faz com a madeira ou com a pedra: moldando, burilando, esculpindo, polindo, aplainando, e assim expressar algum impulso lírico, alguma dúvida ou convicção espiritual, alguma verdade vaga e obscuramente compreendida. Mas o sentido vinha em segundo lugar. Desde o primeiro deslumbramento infantil, o seu mundo era o das palavras se organizando em poesia. Para dominá-las, copiava outros poetas, imitava, estudava, treinava. Cada palavra devia viver para sempre em seu próprio deleite e glória, em sua obscuridade ou em sua luz. Picasso disse certa vez que a primeira pincelada era dele, mas a segunda já era do quadro. Em Dylan, a segunda palavra já era do poema.

Em termos de originalidade, o ambiente literário e artístico de Swansea foi especialmente propício à formação do jovem poeta. Ele é o caçula de uma geração rica de artistas, da qual citam-se os pintores, que são muitos: Walters, Richards, Janes, Stanley Spencer e David Jones; Daniel Jones é o músico; Harry Secombe destaca-se no teatro; Wynford Vaughan Thomas é um radialista que escreve boa prosa; e na poesia Vernon Watkins, o amigo da vida toda, e o próprio Dylan. Longe de Londres o bastante para não se deixarem influenciar pelos modismos da grande cidade, mas perto o suficiente para ouvir os ecos das importantes inovações artísti cas, esses jovens intelectuais, como disse Constantine Fitzgibbon, o biógrafo e amigo do poeta, permaneceram protegidos para explorar a própria imaginação e o próprio talento.

Se quisermos depreender uma visão-de-mundo do poeta antes da primeira viagem a Londres, diremos que na boa tradição celta ele é um panteísta que se identifica com “a força que impele a flor” e com “a força que impele a água através das rochas”.

And I am dumb to mouth unto my veins

How at the mountain spring the same mouth sucks.

E perco a voz para dizer às minhas veias

Como a mesma boca suga as fontes da montanha.

Voz musical que nem mesmo em outra língua tão distante, como a portuguesa, perde a sonoridade. E é interessante lembrar que em certa ocasião, escutando a Oitava Sinfonia de Beeethoven com Fitzgibbon, Dylan confessou que podia compreender todas as formas de expressão artística exceto a música, porque não entendia que alguém pudesse guardar tantos sons e tantas formas na cabeça ao mesmo tempo. No começo e sempre para ele, a música era o Verbo, o som do Verbo. Sua identificação com a natureza só se realiza mediatizada pelas palavras, as sagradas palavras-forma, palavras-som. Assim, deitado sobre a relva, fundido com a terra e com os insetos, com flores e frutos integrado, despede-se da adolescência enquanto espera o temporal.

I with the wooden insect in the tree of nettles,

In the glass bed of grapes with snail and flower,

Hearing the weather fall.

Eu, com o inseto de madeira nos pés de urtiga,

No leito de vidro das uvas com a flor e o caracol,

Ouço cair os temporais.

Enquanto a chuva não chega, porém, como alguém que em rilkeana despedida voltasse o olhar, mais uma vez, do alto da colina para o vale que está abandonando, precisamos rever, com Fitzgibbon, os múltiplos significados dessa terra para Dylan Thomas. Afinal, foi na pequena Swansea que o poeta passou mais da metade de sua vida, os primeiros vinte anos. Uma fronteira em três sentidos: geograficamente porque é um porto de mar, onde o mar limita e expande a terra ao mesmo tempo; cultural e lingüisticamente, onde a Inglaterra encontra Gales, a língua inglesa encontra o Welsh. Por isso Dylan falava no “mar de duas línguas”. Em terceiro lugar, porque são muito diferentes os habitantes das fazendas solitárias dos que povoam os vales de carvão, com vida própria e vibrante. Sem esquecermos que nas duas culturas confrontam-se o espírito cristão e o paganismo celta. Por tudo isso, Dylan dizia que todas as divisões passavam por seu próprio corpo.4

Ele é um dilacerado: é acima de tudo um galês, mas é um poeta inglês que nem sequer fala o gaélico; é um homem da cidade, mas seu instinto, sua imaginação e sua inspiração são campestres; não sabe nadar, mas jamais saberá viver longe do mar; detesta os nacionalismos, essas limitações beligerantes e perigosas, mas Gales é, de forma incontestável, o seu lar, onde estão os amigos de verdade. É um poeta difícil mas, como diz G. S. Fraser, um de seus primeiros críticos, há uma força emocional em seus poemas de tal magnitude que é possível ser tocado por eles sem compreendê-los completamente. Com isso concorda Elder Olson, conhecido scholar da Universidade de Chicago, também pioneiro no reconhecimento do gênio do galês. E ele disse:

O extraordinário da poesia de Thomas é que ela produzia seu efeito mesmo antes de ter sido compreendida. O mais mínimo efeito, além disso, deixava o leitor com a impressão de que um poeta com um extraordinário senso da língua e do ritmo estava dizendo algo importante sobre temas de importância; na pior das hipóteses, ele se tornava convincente pela violência e pela obscuridade.5

Segundo Fraser e Olson, o Dylan Thomas que chega a Londres em 1934, é um galês típico: alia a uma atitude religiosa diante da vida, uma rebeldia desafiadora em face dos valores burgueses e de seus representantes da classe média. É irreverente no modo de falar, usa um vocabulário exagerado mas na verdade não passa de um ingênuo, totalmente desprovido de malícia. Destemido para algumas coisas, tem, no entanto, um medo infantil de vampiros e de duendes, pois eles sempre podem aparecer à noite. No ano anterior, visitara a cidade durante alguns dias mas, por insegurança, não se afastaria muito dos arredores da estação ferroviária, de onde poderia voltar para Gales a qualquer momento. Agora, com recém-completos vinte anos, tem intenções de permanecer mais tempo. Sua bagagem de poeta já é respeitável: todos os versos de Eighteen Poems, muitos dos que vão parecer em Twenty-five Poems e esboços de vários outros que serão publicados bem mais tarde. Como criador, já sabe o que quer; sua poesia está chegando ao ápice da forma e do estilo. Contudo, embora orgulhoso de suas origens e confiante em seu próprio talento, ressente-se por ser da província e por não ter tido uma formação universitária, como a maioria dos intelectuais da capital. E porque é vulnerável demais, sensível demais, precisa de uma couraça, uma persona atrás da qual possa se sentir defendido, seguro. Passa então a representar o papel de poeta maldito, marginal, desregrado e beberrão e, como diria Fernando Pessoa, “quando quis tirar a máscara, estava colada à cara”.

(Continua)

Leave a Reply