Tempo fora do tempo – por Adão Cruz

Um Café na Internet

 

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Ilustração: Reprodução de quadro de Adão Cruz

O verão entra hoje, lembrou a velha a comer um pedaço de pão. à porta da padaria.

Meio triste por vir tão cedo, meio contente por vir tão tarde, já que a primavera o deixa de mãos a abanar com este tempo sem tempo. Ainda agora caiu um aguaceiro que fez as gaivotas encolherem-se e o rio cobrir-se de um espesso véu.

O verão está à porta como a velha na padaria. Nem entra nem sai.

 Também à porta passa o eléctrico na sua lenta e gemida marcha de outros tempos, que nada tem a ver com as velocidades de hoje. O tempo fora do tempo.

 O homem do lado de lá da rua, sentado num monte de redes ainda com algas, sacudiu o casaco molhado e praguejou. Um menino brincava a seu lado, com uma laranja espetada num pau.

 As gaivotas espanejaram as asas quando a chuva parou, como fazem no inverno.

 Pelo retrovisor, não me apercebi de que alguém fora atropelado, mas pareceu-me ver um gatito a espernear na valeta.

 O verão entra hoje mas não parece verão, lamentou a mulher de preto à porta da padaria, a comer um pedaço de pão. É mesmo um tempo fora do tempo.

 Já o eléctrico dava a curva, quando um homem saltou, bem inclinado para trás, como se fazia no tempo dos eléctricos. Trazia na mão um vaso com manjerico, este sim, deste e de outros tempos.

 Não havia vento. Se vento houvesse, os barcos baloiçavam, mas os barcos mantinham-se serenos e dolentes. Apenas uma brisa quente e salgada cheirava a peixe.

 O homem sentado nas redes procurava atiçar as teimosas brasas de um fogareiro, ainda sem tempo de serem brasas de assar.

 Balões de muitas cores pendiam das árvores a pingar, lembrando o S. João seco de outros tempos, ou apenas orvalhado.

 A velha que comia um pedaço de pão gritava de longe ao velho do fogareiro para que cobrisse as sardinhas por causa dos gatos. Pouca sorte a do gatito escorraçado, assim morrendo fora do tempo.

 As nuvens teimavam em gotejar e o homem das sardinhas praguejou de novo, cobrindo as brasas com as mãos e com palavrões mais assanhados, deste e de outros tempos.

 Uma pequena lufada de vento errante fez os balões brincar, e um deles rebentou, para nunca mais ser balão de S. João. Outro desprendeu-se e voou, subindo quase até ao avião que atravessava o rio. O menino com a laranja espetada num pau correu, correu atrás dele e caiu.

 A velha de negro, achando que era o tempo de sair da porta da padaria, atravessou a rua ao jeito das artroses, numa corrida fora de tempo, e foi levantar o menino que chorava. Deu-lhe um beijo de avó e levou-o ao velho do fogareiro. O pescador largou as brasas que já faziam chiar meia dúzia de sardinhas e pegou nele ao colo. Uma gaivota atrevida e cansada de esperar tanto tempo achou que era tempo de pifar uma sardinha.

 Apareceram mais dois a tempo, um dentro do tempo, vermelho e corcunda e outro fora do tempo, pálido e esguio como vela de cera, falando ambos “dos” diabetes e deitando o rabo do olho a um rabito de sardinha.

 Podem ficar. O meu genro está a chegar do mar com mais e bem fresquinhas, disse a velha fora de tempo, dado que o cérebro de cada um já impusera, uns segundos antes, o tempo de se sentarem no caixote mais á mão.

 Entra hoje o verão. Mas que verão! Não há nada mais triste do que o tempo fora do tempo.

 Deixe lá, Tia Maria, que estas sardinhinhas vieram mesmo a tempo.

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