A OPINIÃO DE DANIEL AARÃO REIS – “A dialética do terror”

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Alguém disse que os humanos são trágicos, não tristes. Mas as mortes de 17 pessoas, em Paris, entre os dias 7 e 9 deste mês, em circunstâncias trágicas, deixaram tristes os que aspiram a uma sociedade democrática.

Não há conjunção adversativa nem contextos históricos que relativizema barbárie dos assassinatos cometidos. Uma infâmia, como certeiramente os qualificou Michel Lowy.

Na aparência demencial destes crimes, seria possível distinguir alguma lógica?

Desejar-se-ia punir o duvidoso humor dos que se divertiam com as referências sagradas da religião islâmica? Se fosse este o caso, as ações foram inócuas, pois este tipo de humor não começou ontem, nem acabará amanhã. Além disso, não foram somente os humoristas que perderam a vida: o guarda-costas de um deles, já ferido, também foi liquidado, sem contar alguns assassinados apenas por serem de origem judaica.

Outro equívoco é o de analisar o episódio como expressão de uma suposta “guerra religiosa” entre cristãos e muçulmanos. A hipótese é de uma pobreza franciscana, pois se ela tivesse substância, seria incompreensível a condenação dos atentados por grande parte dos representantes dos muçulmanos franceses, assim como seria ininteligível a presença de líderes políticos e religiosos do mundo islâmico, de várias tendências, na grande manifestaçãode protesto, realizada na capital da França no dia 11 de janeiro.

Não há guerras religiosas à vista, basta ver a coalizão que se formou para derrotar Sadam Hussein. Ou a aliança para aniquilar o auto-denominado Estado Islâmico na Síria e no Iraque. Nos dois casos, foi e tem sido sólida a aliança entre cristãos e muçulmanos – de direita. Por outro lado, um mínimo de informação é suficiente para saber que a imensa maioria dos que morrem nas mãos deste tipo de assassinos são igualmente muçulmanos, estejam eles na Síria, no Iraque, na Somália, no Sudão, na República Centro-Africana ou na Nigéria.

Os humoristas atingidos e as outras pessoas assassinadas em Paris não passaram de pretextos para os que perpetraram os crimes.

Mas quais seriam, então, os objetivos dos criminosos?

O que eles desejamé incitar polarizações políticas radicais no mundo ocidental e entre os próprios muçulmanos. Pode-se dizer que têm alcançado estes objetivos.

Nos EUA, depois do ataque às torres gêmeas, em setembro de 2001, uma sociedade plural e diversa uniu-se, assustada, em torno da mediocridade de G.W. Bush, e aprovou a Lei Patriótica. Resultados? Restrição das liberdades, espionite, repressão, prisões e processos sumários, tortura como política de Estado. Consequências? Direitização do debate político, crescimento do Tea Party, de extrema direita, numa atmosfera envenenada pelo medo.

Na França, está ocorrendo processo análogo.

Também medíocres, o presidente F. Hollande, e seu primeiro-ministro, Manuel Valls, que de socialistas só conservam o nome, desacreditados e em declínio, no contexto de uma sociedade cada vez mais crítica, recuperam-se como lideranças da nação enlutada. Estamos em guerra! União sagrada! De olhos marejados de lágrimas, mãos no peito, os deputados e senadores franceses, cantando à capela o hino nacional, aprovam, por esmagadora maioria, pacotes de leis repressivas e de guerra.

A adoção do PNR (Passenger Name Record), proposta pelos EUA, já condenada pela Comissão de Liberdades Civis do Parlamento Europeu, e derrotada ano passado, vai novamente ser solicitada por Manuel Valls. Prevê a captura e a centralização de informações de todos os passageiros de viagens aéreas (nomes completos, datas, itinerários, cartões de créditos usados, etc.). Enquanto isto,   a ministra da Justiça expede instruções para procuradores e juízes serem severos, apliquem penas maiores, lancem mão de agravantes e procedimentos sumários. Uma deputada de direita, em surto de sincericídio, exclamou: “não é possível ter mais segurança sem renegar as liberdades”. Um policial clamou pela intervenção “indispensável” das forças armadas.

Era tudo o que desejavam os que mataram os humoristas. Eles não representam o Islã, assim como Bush e Hollande não representam a cristandade. São partidários de uma proposta política de direita, antimoderna, autoritária, machista e repressiva. E preferem como oponentes governos e partidos de direita, também autoritários e anti-democráticos, liderados por tipos como Bush, Valls ou, no limite, pelo Tea Party ou pelos fascistas europeus, cuja importância aumenta a cada atentado.

As guerras contra o Afganistão e o Iraque pareceram liquidar a Al-Qaeda, sobretudo após a prisão e morte de Bin Laden. Ledo engano. A mancha da direita islâmica só fez crescer e cresce cada vez mais. A cada bomba, mais um homem-bomba. A cada homem-bomba, mais bombas.

É a dialética do terror, a cultura da morte.

Se a opinião e as forças democráticas não lidarem com esta ameaça, teremos um sombrio século XXI.

Daniel Aarão Reis

Professor de História Contemporânea da UFF

Email: daniel.aaraoreis@gmail.com

 

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