CARTA DO RIO – 37 – por Rachel Gutiérrez

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Sempre que só provocam tristeza e desalento as notícias do mundo e as desta “pátria minha tão pobrinha”, como a cantou Vinicius, minha pequena amiga Esperança procura me consolar com coisas bonitas e me mostra um flamboyant florido, o nascer do sol ou o seu ocaso e lê, com voz aguda e clara, lindas palavras como as de Uma Carta do Porto, de José Magalhães, do dia 5 de fevereiro:

…perder o olhar no mar (…) e ver, nua e transparente, a beleza que a

vida nos pode dar.

Era o que fazia Clarice Lispector, quando morava no prédio vizinho ao meu de agora. Ia até a praia, sentava-se num banco de pedra e ali, diante do mar, permanecia longo tempo em calma contemplação. Quem olha o mar, como diz Borges, “o vê por vez primeira / Sempre…” A impermanente permanência, o Eterno em movimento.

Penso em Sophia de Mello Breyner Andresen, em toda a beleza marinha e grega que encontro em seus versos cheios de azul; penso em Hilda Hilst, nem sempre próxima do mar, mas de outras águas, onde há canoas e barcaças afundadas; penso no cais e em Fernando Pessoa, nas viagens de navio, na travessia da Mancha… Penso nos três mares da Sicília, cujos nomes custei tanto a aprender: Mediterrâneo, Jônio e Tirreno. E penso na cor de esmeralda “nua e transparente” do mar Mediterrâneo que banha a Sicília.

É doce morrer no mar…

nas ondas verdes do mar…

diz a canção de Dorival Caymmi e embala-nos, não para morrermos no mar, para cantarmos sua beleza, “a beleza que a vida nos pode dar”. Quando um poeta canta a morte, ainda assim canta a vida.

A vida, contudo, anda triste neste mundo com tantas mortes, assassinatos, crueldades inimagináveis, injustiças terríveis, conflitos intermináveis, desmandos e “malfeitos” – palavra que encobre em nosso país tanta falta de ética, a ponto de chegamos a nos envergonhar de sermos brasileiros, além da vergonha que sentimos por sermos humanos neste mundo de hoje.

Mas a menina Esperança insistiu: existe a poesia, existe a música, existe a beleza. Então lembrei uma carta de Leonardo da Vinci, que li há muitos anos num livro sobre os pensadores do Renascimento. Leonardo criticava uma bula papal de seu tempo, na qual o todo poderoso Pontífice, cujo nome não lembro, comparara os pecadores – nós, os seres humanos – a vermes desprezíveis. Sim, dizia o artista, podemos ser vermes miseráveis, mas fomos nós, os pecadores, que construímos as catedrais! E uma rajada de ar puro parece ter passado por mim, em frente ao mar, no mesmo banco, talvez, onde costumava sentar-se a nossa Clarice Lispector.

Então recito para mim mesma, este poema iluminado de Hilda Hilst:

 

Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia

Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível

Porque de barro e palha tem sido esta viagem

Que faço a sós comigo. Isenta de traçado

Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem

Hei de levar apenas a vertigem e a fé:

Para teu corpo de luz, dois fardos breves.

Deixarei palavras e cantigas. E movediças

Embaçadas vias de ilusão.

Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti

Pássaro-Poesia

E a paisagem limite: o fosso, o extremo

A convulsão do Homem.

Carrega-me contigo

No Amanhã.

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