Carta do Rio – 98 por Rachel Gutiérrez

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Hoje quero lembrar meu amigo Marco Aurélio Matos, sobre quem já escrevi aqui na data aniversário do poeta Paulo Mendes Campos, que lhe foi muito chegado.

Contei que Marco Aurélio costumava receber aos sábados, no Leblon, para o que ele mesmo talvez considerasse, com irônica alegria, “saraus lítero-musicais”. Também mencionei sua única coletânea de contos publicada pela Editora Codecri, em 1982. E é dessa pequena grande obra que desejo falar agora. O difícil é resistir à tentação de transcrever contos inteiros de uma joia de realismo fantástico e de humor altamente sofisticado, que parece beirar o nonsense, mas que se impõe com uma lógica absurda, implacável, irresistível.

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O título do primeiro conto e do livro – AS MAGNÓLIAS DO PARAÍSO – já está “explicado” nesta epígrafe geral de mineirice deliciosa:

Vou repetir para vocês o que ouvi de meu avô, – há muitos anos, homem sábio – ele dizia para nós, lá em casa, que os humanos no Paraíso (acho que Adão e Eva) foram arrastados à árvore da ciência do Bem e do Mal por causa das magnólias que havia lá, um bosque bonito, com um cheiro bonito, que levava as pessoas mais para o exterior…

(Trecho de conversa de fim de noite, ouvida na povoada solidão de Minas Gerais, há algumas décadas atrás.)

Quebrando todas as regras, o conto começa com parágrafos numerados como se fosse o tratado científico de um conhecido filósofo.

 Vejamos alguns exemplos:

  1. Uma das grandes falhas da física moderna é proclamar a versatilidade da matéria sem levar em conta a velocidade média do vento.

(…)

  1. A valsa vienense do tempo de Francisco José I é, indubitavelmente, a precursora da oratória dos parlamentos do Ocidente.

Perdoem-me, mas não posso deixar de reproduzir também o quarto parágrafo porque este trata de personagem por demais caro ao mineiro de Cordisburgo, o autor genial de Grande Sertão; veredas, nosso mestre Guimarães Rosa. Continuemos, portanto, com meu amigo mineiro, de Itaúna:

  1. O demônio foi visto, certa vez, na Baixa Morávia: vestia-se de amarelo, trazia um losango verde no peito e carregava nas mãos brancamente enluvaradas um tratado sobre construção de pontes. Abandonado ao relento, ensopava-se até os chifres, com a chuva que ali caía.

O camponês que assim o viu afirmou, mais tarde, perante o Conselho Municipal, que o demônio tinha um ar ligeiramente distraído e que se negara, terminantemente, a permitir que o informante acendesse o charuto em sua chama nasal.

E assim continua Marco Aurélio, sempre surpreendente, original, delirante e maroto. O livro tem 18 contos, uns bem curtos, outros um pouco mais longos, todos fascinantes e hilariantes. Em Nossa vizinha da mala, ele conta a história de uma senhora que não parava de viajar e com cuja mala, por obra de um acaso feliz, ele se depara e se espanta:

Pois a mala não parecia ser o que realmente era. Era assim: tinha três andares, a distâncias regulares, o de baixo infinitamente mais amplo que o de cima, já que guardava, sem sombra de dúvida, relacionamentos funcionais e matemáticos. Pelos cantos, ligando-os em fluxo contínuo, passava uma avenida que percorria as áreas laterais em sentido sul-noroeste, seguindo vertiginoso traçado, harmoniosamente desenvolvido; esta avenida, de largura contínua e uniforme, servia, ao que me pareceu, para a guarda de instrumentos pérfuro-cortantes: pentes de tamanho variado, chicotes hípicos, sombrinhas japonesas, mudas de girassóis e outras coisas do gênero; (…)

E ele continua cada vez mais delirante, descrevendo a mala que era quase uma cidade… E tudo isso com aparência de grande clareza e precisão, fazendo do absurdo e do inaudito o plausível.

Outras histórias são sobre “Um gato e sua cor”, sobre “Os segredos da matéria”, “O deserto do deserto”, “Shakespeare & Co.” etc., etc.  E um dos mais ousados, e ao mesmo tempo comovente, é o que ele chamou de  Ectomorfose –  uma espécie de avesso da Metamorfose, de Kafka.

Naquela bela manhã de abril, em casa do Conde ***, o enorme escaravelho que os franceses denominam Cerf-Volant (e que parece ser a espécie da ordem Lucanidae – Lucanus) acordou transformado num homem de estatura grande, meio alourado, em meio ao alarido da festa que se preparava para a chegada da filha do prestigioso nobre, de***.

Se no famoso conto de Franz Kafka, Gregório Samsa acorda transformado em barata, no conto de Marco Aurélio, o escaravelho acorda em pânico transformado em homem e logo passará a chamar-se Lucanus; será tratado como lacaio ( ou confundido com um deles )  no castelo de um certo Conde; e fará a descoberta das várias formas de expressão desse ser estranho que é o humano, ao percorrer os muitos salões do castelo.

A primeira tarefa que lhe dão é a de ir buscar espinafres na horta. Lá, o hortelão se encontrava nos seus afazeres regulares, falando sem cessar (aliás, a fala dos humanos, desencadeia a primeira perplexidade em Lucanos), e no momento concentrava-se na extinção de alguns escaravelhos que atrapalhavam o crescimento das couves mais tenras. Lucanus, à vista do espetáculo estacou estarrecido, não sabendo propriamente por quê.

Passemos aos salões do castelo: num deles, ele…

Ouviu primeiramente um sarau musical e foi aí que se maravilhou até o assombro total: nunca pensara que os tênues gemidos de um pobre violino que ouvira (quando ainda escaravelho) saía daquilo, daquela coisa manipulada pelo homem, que inundava a atmosfera de sonoridades por assim dizer sublimes; (…)

A seguir, nosso Lucanus, de salão em salão, vai descobrindo e se maravilhando com as artes e as ciências humanas, uma a uma. E no salão onde se recitava poesia, as emoções do ex-escaravelho são as que mais nos comovem:

Aqui, seu estarrecimento foi súbito e total: as pessoas se postavam, silenciosas, umas em roda das outras, e uma delas se adiantava e lia e falava em voz alta, ritmada ( isto é, com acentuações prosódicas sucessivas e simétricas a um padrão inicial ):  a palavra, assim expressa, foi para Lucanus um sinal quase de milagre, se este conceito lhe fosse familiar e funcional. A palavra, sozinha, desguarnecida de quaisquer outros amparos e artifícios, organizando a vida, isto é, dando formas e visibilidade ideal a sentimentos e a emoções que podiam captar-se pela capacidade da sensibilidade de cada um! O movimento elegante dos vocábulos e a sonoridade inegável das intensidades que se distribuíam pela coisa lida ou dita fizeram com que Lucanus – sem saber bem por quê – se surpreendesse com os olhos rasos d’água, e assim se encaminhou para a sala de pintura, onde quadros notáveis o iriam também comover.

– Estranho é o caminho do homem – pensou Lucanus, com a severidade dos antigos profetas. (…).

Assim escrevia Marco Aurélio Matos, meu querido e saudoso amigo. Seu livro não está nas livrarias, mas é possível encontrá-lo em sebos ou no sistema online.

3 Comments

  1. Parabéns, “fessôra”, quer pela lucidez e coerência do texto-como rotineiramente-, quer pela escolha do tema.

  2. Desejo deixar claro que o parágrafo de número 4, nas citações do conto As Magnólias do Paraíso termina em “…o charuto em sua chama”. E que o excerto do conto Nossa vizinha da mala deveria estar entre aspas ou em itálico. Falha minha.

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