25 de Abril de 2016. São 42 anos da Revolução dos Cravos que se completam hoje e é tempo de comemorar, de recordar, de refletir, de festejar. Os editores de A Viagem dos Argonautas convidaram os viajantes a fazê-lo. E eu junto-me, com gosto, correspondendo ao apelo, mas optando por uma colaboração algo heterodoxa, trazendo aqui uma homenagem simples a uma personalidade de Abril, mas que também o é de forma heterodoxa.
De João Paulo Varela Gomes foi publicada uma biografia por António Louçã[1], cuja apresentação ocorreu no passado dia 21 no auditório do Liceu Camões, marcado pela ausência do biografado que a debilitada saúde aconselhou a ficar em casa. Evidentemente que Varela Gomes protagonizou o evento, esteve omnipresente, mas a sua ausência física foi sentida.
Não vou fazer aqui o resumo do livro, nem mesmo a sua recensão, pois ainda nem sequer pude acabar de o ler, apesar de para ele ter contribuído com muita honra. Não deixo de dizer, no entanto, que considero o livro justo – salienta, a propósito, que talvez de todos os revolucionários de Abril tenha sido Varela Gomes o mais “injustiçado”, que considero o livro oportuno – ainda que o autor o não faça justifica-se incluir o ato nas comemorações do 25 de Abril e que, pela parte que já li, considero o livro um trabalho honesto e rigoroso – recusa ser uma peça laudatória e o próprio autor frisa que, apesar da camaradagem e comunhão de convicções com o biografado, não é uma biografia autorizada e Varela Gomes só verá o texto final depois de impresso. Registo estas minhas palavras com uma reserva: ainda vou na página 140 das 350 que a obra comporta e, portanto, mal entrei Na Revolução e ainda só li A Militância Revolucionária.
Na verdade Varela Gomes, mais do que um militar de Abril, é um revolucionário e isso António Louçã faz questão de sublinhar. Na Associação 25 de Abril não temos dúvidas em considerá-lo um capitão de Abril. E na euforia inicial do derrube da ditadura Varela Gomes também não terá tido dúvidas porque, afinal, revia-se naqueles jovens capitães aos quais logo se juntou nas ruas, os que corresponderam ao apelo (ainda que dele não tivessem conhecimento) com que dez anos antes encerrara, provocatoriamente como é seu timbre, as alegações finais no seu julgamento no Tribunal Plenário, donde saiu condenado a 6 anos de prisão: «Outros triunfem onde nós fomos vencidos.» E Varela Gomes entregou-se ao processo revolucionário saído do 25 de Abril, de alma e corpo inteiros, porque inteiro se entregou a tudo em que se envolveu.
O MFA era um grupo heterogéneo onde várias tendências convergiram para derrubar a ditadura. Da mesma maneira que convergiam na sociedade portuguesa diferentes perspetivas democráticas e antifascistas. E, também como nesta, no MFA vieram a divergir e a confrontar-se quando a revolução ganhou asas e surgiam projetos generosos para edificação de um Portugal novo. O que o golpe de estado unia a revolução dividia. Varela Gomes não tardou a entrar em confronto com um poder já, ele próprio, disperso por vários centros de decisão, porque ele era, porque ele é, no essencial, um homem de contra-poder.
Das quatro tendências que fragmentaram o MFA designadas pelas suas figuras de referência, spionolistas, otelistas, gonçalvistas, meloantunistas, Varela Gomes não esteve verdadeiramente com nenhuma, se bem que frontalmente mais se tenha oposto à primeira e à última. Viria ele próprio a liderar um grupo que assumiu protagonismo na agudização do processo revolucionário, a 5.ª Divisão, mas que nunca foi identificado com o nome do seu líder.
Diz Louçã, em Nota Prévia a abrir o seu livro, que Raul Zagalo, um dos seus companheiros de Beja, a frustrada tentativa da madrugada de 1 de Janeiro de 1962 para derrubar a ditadura, afirmou que Varela Gomes deveria ser considerado o primeiro capitão de Abril, definição esta que «[…] não passaria certamente sem um protesto do próprio se fosse agora retomada exatamente nos mesmos termos por este autor.» (pp. 11 e 12) E isto porque, para Varela Gomes «Alguns dos vencedores de Abril são a antítese absoluta dos insurretos de Beja.» (p. 12) É verdade que Varela Gomes logo se sentiu intrigado com algumas figuras militares que se destacaram no 25 de Abril, nomeadamente na Junta de Salvação Nacional. Mas os seus companheiros de Beja, que ele liderara juntamente com Manuel Serra, também não constituíam um grupo homogéneo e vários, militares e civis, vieram depois a alinhar, no processo revolucionário de Abril, com setores que Varela Gomes classificaria de contra-revolucionários. Se o levantamento de Beja tivesse triunfado e o poder tivesse sido assumido por Humberto Delgado, que para isso estava preparado, há muitas dúvidas que o entendimento conspirativo entre Delgado, Manuel Serra e Varela Gomes tivesse resistido aos compromissos que o poder imporia.
Varela Gomes é assim e é isso que também nele é fascinante, é um radical, intransigente, incorruptível. Nem a idade, nem o bafo da morte que sentiu tão perto, nem a prisão e os isolamentos, nem as dificuldades materiais que ele e o seu agregado familiar tiveram de enfrentar, nem o exílio (este posterior ao 25 de Novembro de 1975), vergaram o seu caráter rebelde. Quando li alguma coisa sobre a Comuna de Paris a ideia que me ficou foi a de que João Paulo Varela Gomes era o Louis Auguste Blanqui da revolução portuguesa.
Poderia escrever muito mais sobre Varela Gomes. De como com ele entrei na conspiração e no MMI (Movimento Militar Independente) que juntou os capitães de Delgado, e do que se seguiu, antes e depois do 25 de Abril. Não faltarão oportunidades.
Por agora, apenas a minha convicção de que, queira ele ou não, é um genuíno capitão de Abril, um heróico precursor do 25 de Abril, por quem nutro uma grande amizade, um enorme respeito e uma absoluta solidariedade, que alguns desencontros de percurso e confrontos com a sua irreverência e cáustica ironia, nunca puseram minimamente em causa.
No Dia da Liberdade de 2016
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[1] Varela Gomes, “Que outros triunfem onde nós fomos vencidos”, Parsifal, Lisboa, 2016
MUITO OBRIGADA AOS MILITARES DE ABRIL!