Panamá Papers – um reflexo do modelo neoliberal | 11. Como Ganhar Milhões a Vender a Guerra – por Ken Silverstein I

Falareconomia1

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

 

Panamá Papers – um reflexo do modelo neoliberal

 

Panamá Papers – em forma de conclusão

Com o presente texto acabamos a série Panamá Papers. Não era sem tempo. Este texto aparece, aparentemente, desligado dos textos de Panamá Papers, mas só aparentemente. E a razão é simples, descreve-nos um mundo sujo, muito sujo mesmo, o das influências políticas, por onde passam muitos milhões e destes muitos vão parar, depois, aos Paraísos Fiscais gerando os Panamá Papers. Entretanto, entre um momento e outro, morrem centenas de milhares de pessoas por causa destes vendedores de guerras e países inteiros são destruídos. E o quadro de valores apresentados são supostamente os da Democracia. Veja-se por exemplo o que se passa com a Administração Obama.

Isto mostra que a resolução dos Panamá Papers exige muito mais que a simples condenação fiscal dos envolvidos nestes documentos. A solução passa pela construção da Democracia real e não pela mistificação desta, como se faz hoje. Repare-se: 8 anos depois da crise ter rebentado encontramo-nos todos muito pior do que quando esta crise rebentou. Não é pois por acaso.

 

Coimbra 29 de Abril de 2016.

Júlio Marques Mota

Fim-Como Ganhar Milhões a Vender a Guerra*

Ken Silverstein

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Presidente Interino da Geórgia Nino Burjanadze, à direita e o Presidente do comité americano na Nato , , Bruce Jackson, falam à imprensa numa conferência conjunta depois da sua reunião em Tbilisi em Novembro de 2003. Photo by BESO GULASHVILI/AFP/Getty Images

Em Setembro passado, um homem chamado Bruce Jackson organizou uma festa para apresentar os seus vinhos da colheita de 2014, no seu Chateau Les Conseillants do século XVIII, situado nas colinas de Bordéus. À tarde, antes da festa, levou alguns dos seus convidados, entre eles um documentarista e um antigo colega meu, numa excursão pelos terrenos da sua propriedade, vestindo um fato azul suave que combinava com a sua personalidade levemente monótona. Com o seu cabelo curto de tom acinzentado grisalho, cuidadosamente penteado, parece-se com o jornalista conservador George Will ou qualquer outra pessoa que frequente os círculos sociais dos think-tankers da política externa americana, dos meios empresariais ligados à defesa ou dos lobistas, que são na realidade os exactos círculos em que ele se movimenta perfeitamente.

Havia um cheiro no ar de ervas, lilases e videiras da vinha de Jackson, que inclui um lote de Merlot, datando de antes de 1953. Uma grande parte do castelo foi construído nos anos de 1700, mas agora abriga um mobiliário alta burguesia com uma cozinha de 2.000 pés quadrados (com lava-louças novos em aço e torneiras suecas, tudo da mais alta qualidade). A propriedade inclui um pinhal e uma piscina impecável cuja água tem um tom de azul escuro, quente.

Para os hóspedes daquela noite o jantar tinha como pratos um confit de pato, canapés de lagosta e um trio de banda de jaz.

“Eu gosto do silêncio de Bordéus e do ritmo de crescimento da vinha,” disse Jackson quando o questionaram acerca do seu novo hobby, enquanto se passeava através da propriedade de US $ 4 milhões, que é rodeada de nascentes e matas que estão na lista da França como zonas ecologicamente protegidas (ele comprou esta herdade em 2011). “É um ambiente de ritmos muito calmos e onde realmente se está muitíssimo bem. É bom para reflectir. ”

O meu antigo colega, esperando conduzir calmamente Jackson para a política externa, virou a conversa para o problema do Iraque em que, naquele mesmo dia, 17 pessoas tinham sido mortas por bombas em atentados e tiroteios, e em que tinha sido descoberta uma vala comum contendo os corpos de 15 motoristas de camiões. Esse tipo de dia horrível tem sido terrivelmente comum desde que as tropas norte-americanas depuseram Saddam Hussein em 2003, com o estado islâmico agora a decapitar jornalistas americanos, a realizar execuções em massa de soldados iraquianos e a atrair recrutas de todo o Ocidente com vídeos de horrível propaganda.

Jackson sabe mais de história sobre o Iraque do que sabem em média os ricos e diletantes produtores de vinhos de topo de gama. No ano anterior à invasão dos EUA, Jackson — então um executivo da Lockheed Martin — fundou, incentivado por altos funcionários da Casa Branca, um grupo chamado Comité para a Libertação do Iraque, que ajudou a defender e a justificar a guerra contra o Iraque. Ele aceitou ser o Presidente do Conselho de Administração do Comité, mesmo que tenha reconhecido mais tarde, numa entrevista à Playboy em 2007, que “naquele tempo não sabia nada do Iraque”

Na preparação para a Guerra do Iraque, os principais defensores previram que no Iraque a solução seria muito simples e seria até uma brincadeira que se faria com prazer, e juravam alto e bom som que estavam apenas motivados por um desejo sincero de aliviar o sofrimento do povo iraquiano. O derrube de Saddam Hussein seria apenas um primeiro passo na “reconstrução da economia [do Iraque] e do estabelecimento do pluralismo político, das instituições democráticas e de um Estado de Direito”, testemunhou Jackson no dia em que o Comité foi anunciado, no final de 2002.

Naquela tarde, quando questionado sobre o resultado da invasão americana, Jackson reconheceu que a fatídica incursão da América tinha sido “simplesmente um completo falhanço” e pôs as culpas nos altos funcionários da Administração Bush. “O maior erro foi deixar [Donald] Rumsfeld dirigir esta maldita coisa”, disse ele. “Ele não falou com ninguém, não falou com os nossos aliados sequer.”

Ao contrário de Rumsfeld, George W. Bush, Dick Cheney e outros altos funcionários que têm sido responsabilizados pelo desastre da Guerra do Iraque, ninguém protestou contra Jackson. Existem poucas fotos dele on-line e quase ninguém fora dos corredores em DC parece ter-lhe dado muita atenção. Mas este homem teve uma longa e confortável carreira circulando pelos corredores do poder, tocando os tambores da guerra, lucrando com as aventuras estrangeiras e desempenhando um papel-chave em ONGs que lhe pagaram, a si e aos seus entes queridos, generosos salários. Ele é uma espécie de neocon Forest Gump que tem vivido junto dos círculos governamentais ao longo de décadas, que tem ajudado à expansão do complexo industrial militar cada vez maior, enquanto que vai acumulando o tipo de fortuna que lhe permite comprar um vinhedo em França e manter uma propriedade em Washington DC .

Ele não é apenas rico, ou apenas poderoso, ou simplesmente mal visto pelos padrões da multidão com quem lida, mas é interessante olhar para a vida e para a época de Bruce Jackson para ver como se mantém o poder em Washington e o que é que se faz com esse mesmo poder.

O pai de Bruce Jackson era um banqueiro de investimento e um alto funcionário da CIA que se especializou na guerra psicológica; a sua mãe era uma socialite que se casaria mais tarde com um senador norte-americano. Jackson cresceu num castelo dourado e atingiu a maioridade na era Reagan. Em 1986, ele era um oficial da inteligência militar do Pentágono trabalhando sobre a política de armas nucleares e alugava um apartamento modesto em 1711 Massachusetts Avenue NW, segundo os registos públicos e os anuários de telefones. Quatro anos depois deixou este emprego no governo e foi trabalhar para Nova York com o Lehman Brothers, onde foi um estratega sobre os investimentos em propriedades. (Basicamente, esta é a prática sombra em que frequentemente um banco ou uma instituição financeira negoceia ou especula por conta própria ou dinheiro e não por conta dos clientes.)

Regressou a Washington em 1993 para trabalhar como um executivo em Martin Marietta que se fundiu com a Lockheed Corporation dois anos mais tarde e se transformou no gigante Lockheed Martin, empresa esta a trabalhar para o Ministério da Defesa. Em 1997, Jackson foi colocado como responsável pela pesquisa de mercados externos para os brinquedos militares da empresa.

Uma década mais tarde, não seria controverso argumentar que quer os E.U. quer o Iraque saíram como os vencidos na guerra, mas foi uma campanha altamente frutuosa para as duas partes, para Jackson e para a Lockheed.

Uma ferramenta útil foi a criação do Comité para o Alargamento da NATO, uma ONG que Jackson formou em 1996. Nunca divulgou quem o financiou – ele defendeu sempre que era ele próprio que pagou as contas, com o dinheiro que ganhou em Wall Street, mas alguns relatórios dizem-nos que eram os fabricantes de armas que financiavam a organização.

Que um executivo de um fabricante de armas esteja à frente deste Comité gerou algum cepticismo no congresso. O senador Tom Harkin de Iowa chamou à expansão da OTAN “ Plano Marshall para os fornecedores do Ministério da Defesa” e um assistente republicano no Capitólio gracejou que os negociantes de armas estavam tão empenhados na incitação para a expansão que, “nós provavelmente iremos dar à Hungria um novo navio quando este país não tem nenhum porto.”

O Senado aprovou a admissão da Polónia na NATO, da Hungria e da República Checa em 1998, e mais tarde admitiu outros dez estados que anteriormente pertenciam ao bloco soviético, exactamente como o grupo de Jackson tinha proposto. Isto foi provavelmente um dos maiores negócios de armas de todos os tempos, uma vez que os novos membros da NATO tinham necessidade de mandar para o lixo o seu velho equipamento militar soviético e substituí-lo por equipamento militar ocidental — como as armas que a Lockheed Martin está habituada a fazer.

Durante este tempo, Jackson defendia a guerra contra o Iraque na sua qualidade de director executivo do Projecto para um Novo Século Americano (PNAC), o centro de reflexão e de pressão neoconservador que foi criado em 1997, e que apelava por um retorno “a uma política reaganiana de aumento da força militar e de clareza moral “. Os seus outros membros incluíam altos funcionários do governo Bush, como Cheney e Rumsfeld, e falcões de guerra como William Kristol e Richard Perle. Em 1998 o PNAC escreveu uma carta ao Congresso pedindo o derrube de Hussein e expôs aquilo que se tornou o projecto para a sua concretização. Nove dias depois do 9/11, o grupo publicou uma carta aberta, dirigida ao presidente Bush, apelando a uma mudança de regime no Iraque – independentemente de se Saddam Hussein tinha alguma coisa ou não a ver com os ataques efectuados nos Estados Unidos.

No final de 2002, Jackson fundou o Comité para a Libertação do Iraque, a pedido do então conselheiro de segurança nacional, Stephen Hadley (que mais tarde, em 2014, foi o autor de um texto de opinião publicado por Wall Street Journal, onde afirmava : “Os americanos podem estar orgulhosos do que foi alcançado no Iraque “). A administração Bush já tinha decidido desencadear a guerra no Iraque, mas necessitava ainda de encontrar uma justificação perante a opinião pública, disse Hadley, de acordo com a revista Playboy.

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US Army personnel pose under the “Hands of Victory” in Baghdad in 2003. Photo via Wikimedia Commons

O resto é história, literalmente: a Casa Branca ganhou a luta contra a razão, a invasão foi lançada, os polacos enviaram 2.500 soldados, e em troca o ex-estado soviético podia comprar aviões Lockheed F-16 no valor de $ 5,5 biliões, naquilo que mais tarde o Euromoney revelou ser um “negócio fora do orçamento” organizado por JPMorgan e garantido pelo governo americano.

Uma década mais tarde, não seria controverso argumentar que ambos, os EUA e o Iraque, saíram como perdedores da guerra, guerra que para Jackson e para a Lockheed foi altamente frutuosa. O preço das ações da companhia mais do que dobrou nos primeiros cinco anos da invasão, e no verão de 2006, Jackson comprou uma propriedade em Northwest DC – avaliada em $ 1,95 milhões – com 5 quartos, lareira e uma plataforma para barco.

Desde então, Jackson terá desempenhado um papel fundamental em três entidades, todas elas registadas no endereço da sua propriedade em DC: Bruce P. Jackson Consulting, o Project on Transitional Democracies – PTD- (o projecto sobre democracias em transição – e We Remember Foundation. É impossível saber muito sobre o que fez esta empresa privada de consultoria [a Consulting], mas as duas restantes organizações são organismos sem fim lucrativo e são, por isso mesmo, obrigadas a apresentar a sua declaração de IRS que nos dá algumas informações.

A missão de We Remember, que funcionou isenta de impostos, ao abrigo do 501c (3), entre 2002 e 2009 o que fazia era trabalhar pela “justiça” para os dissidentes desaparecidos e assassinados pelo governo da Bielorrússia, tal como o primeiro marido da segunda esposa de Jackson, Irina Krasovskaya, que foi a presidente do grupo.

O PTD afirmou que a sua missão tem sido a de promover ” a mudança democrática” nos governos Euro-Atlântico, principalmente no antigo bloco soviético. De acordo com as suas declarações de IRS de 2012, ” promoveu várias reuniões” na Rússia e na Europa Oriental para a Administração Obama, Casa Branca, Departamento de Estado e Conselho de segurança nacional, e Jackson reunira-se regularmente com altos funcionários estrangeiros nacionais. De acordo com a declaração de rendimentos para o ano de 2013, o grupo dedicou uma grande parte do seu tempo à Ucrânia e aparentemente preparou “numerosos documentos para reuniões políticas” no país.

As instituições de fins não lucrativos devem para fins de IRS ter Comités de avaliação e supervisão independentes que fazem a sua supervisão e certificam que estas não estão a desperdiçar o dinheiro que está livre de impostos. Mas Jackson estava nos Comités de avaliação de ambas as organizações sem fins lucrativos, e os outros membros eram ou seus amigos ou familiares próximos.

A Comissão de Avaliação e supervisão de PTD a partir de 2002 era composta por Jackson, Randy Scheunemann (um antigo conselheiro de Rumsfeld com quem Jackson fundou o Comitê para a Libertação do Iraque), e Julie Finley, uma grande angariadora de fundos para o partido republicano. Ela tinha sido um membro fundador do Comité dos Estados Unidos para a NATO em 2002, e ela e Jackson reuniram-se com um alto funcionário do Vaticano para lhe solicitar a aprovação do Papa quanto à expansão da NATO e quanto à criação do Comité para a Libertação do Iraque.

Estas organizações sem fins lucrativos angariaram em cash cerca de US $ 6 milhões para o PTD e US $ 500.000 para Remember. Desse total, Jackson viu cerca de US $ 1,2 milhões, e a sua esposa terá ficado com US $ 200.000. O PTD gastou quase US $ 2,6 milhões em viagens, de que grande parte parece ter sido utilizado para as viagens de Jackson, em primeira classe e a sua instalação em hotéis de luxo, enquanto ele fazia conferências, segundo fontes com conhecimento das suas actividades. Os seus destinos, nos últimos anos, terão incluído Montenegro, Alemanha, Bélgica, Polónia, Eslováquia, Inglaterra, Marrocos, País de Gales e Bordéus, a sua segunda casa, onde ele afirmava ter organizado um “seminário sobre a Geórgia.”

“Está-se perante uma pessoa influente que fundou uma organização sem fins lucrativos e alinha com amigos que tratam as organizações sem fins lucrativos como um fundo comum de despesas…” diz o Professor de direito de Notre Dame, Lloyd Hitoshi Mayer

 

(continua)

 

*Agradeço a F.T : a leitura atenta que fez deste texto, o mesmo é dizer, agradeço a revisão feita.

 

Ken Silverstein, How to Make Millions by Selling War.Texto disponível em :  http://www.vice.com/read/how-to-make-millions-by-selling-war-917

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