ABIC – PARECER DA ASSOCIAÇÃO DOS BOLSEIROS DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA (ABIC) SOBRE O PROJETO DE DECRETO DE LEI SOBRE O EMPREGO CIENTÍFICO

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Dando resposta ao pedido do Senhor Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do passado dia 17 de Junho, a direção da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica, vem por este meio dar o seu parecer sobre o projeto de diploma de estímulo ao emprego científico.

A ABIC considera que o emprego científico e a promoção do vínculo laboral dos investigadores se deve constituir como uma prioridade na política de ciência e tecnologia (C&T) em Portugal. Por um lado, parece-nos incomportável e injusta a precariedade a que têm sido votados os trabalhadores em ciência em Portugal, ignorando em grande parte os princípios da Carta Europeia do Investigador. Por outro, julgamos que este modelo de produção científica, baseado no trabalho precário dos bolseiros, está condenado ao fracasso e à falta de competitividade. Assim, parece-nos crucial que sejam tomadas medidas de estímulo ao emprego científico, baseadas numa reflexão global sobre o sistema de C&T. Consideramos desejável que as soluções apresentadas sejam pensadas a curto, médio e longo prazo, de modo a criar um sistema de C&T com uma estrutura estável e de qualidade.

Assim, consideramos à partida que a existência de um vínculo laboral para todos os trabalhadores científicos poderia contribuir para reverter o processo de degradação do sistema científico nacional, que se caracteriza atualmente por situações de incerteza, precariedade, instabilidade, privação de direitos e dignidade dos trabalhadores científicos.

Antes de nos pronunciarmos diretamente sobre o projeto de diploma em causa, gostaríamos de fazer breves considerações sobre questões que temos vindo a sublinhar ao longo da nossa atuação como associação.

Em primeiro lugar, grande parte da produção científica nacional é feita por bolseiros precários que, para além de não terem quaisquer direitos laborais, não veem os valores das bolsas de investigação revistos desde 2001. Adicionalmente, verificamos que tem havido um movimento crescente de substituição de contratos de trabalho por bolsas ao abrigo do Estatuto do Bolseiro de Investigação (EBI). São comuns os anúncios de bolsas para trabalhos de secretaria e administração, ou até mesmo para ofícios de jardineiro e pedreiro. Cabe-nos ainda referir que o EBI tem ainda dado provimento a situações de atribuição de bolsas que se destinam apenas para pagamento de propinas de estudo, que exigem exclusividade e trabalho de docência gratuito. Temos tido conhecimento e temos acompanhado estes casos que devem suscitar a reflexão sobre a atuação das instituições de ensino e investigação, mas também sobre o próprio conteúdo do EBI que tem sido usado como base para todo este tipo de situações abusivas e inaceitáveis.

Uma outra preocupação com que ficamos após a leitura desta proposta é a questão do programa de trabalhos e da independência do investigador. É aconselhável que a instituição contratante não interfira no direito à liberdade de investigação nem afunile as potencialidades criativas do sistema.

A impossibilidade de os trabalhadores científicos, atualmente com estatuto de bolseiros, muitas vezes por vários anos ou até décadas, terem acesso a um contrato de trabalho impede o acesso à segurança social, não contemplando a possibilidade de atribuição de subsídio de desemprego, nem a proteção social compatível com o nível e remuneração real da função desempenhada.

A ABIC considera que o projeto de diploma de estímulo ao emprego científico é uma iniciativa legislativa de mérito pelo facto de constituir um primeiro passo no reconhecimento das necessidades dos trabalhadores científicos mas também de todo o sistema de C&T, que se encontra em estado de profunda desorganização e degradação, tendo perdido grande parte da sua atratividade e inclusivamente capital humano absolutamente imprescindível para a construção de um campo científico de qualidade e competitivo a nível internacional. Todavia, e apesar do mérito do presente projeto de diploma, consideramos que o mesmo pode ser significativamente melhorado. Neste sentido, vimos fazer algumas sugestões e propor alterações ao projeto.

Antes de mais, parece-nos que o presente projeto de diploma deveria refletir uma visão global e estruturada do sistema de C&T que incluísse uma estratégia de fundo consistente na conceção e planeamento de uma carreira de investigação. Planear a contratação temporária de atuais bolseiros que não terão qualquer perspetiva laboral de médio ou longo prazo, nem serão integrados em carreira alguma, parece-nos mais uma solução paliativa do que uma verdadeira resolução do problema de base do sistema de C&T.

Por um lado, o documento reconhece que o investigador doutorado merece ser reconhecido profissionalmente através de um vínculo jurídico-laboral; por outro lado mantém-se a figura do bolseiro de pós-doutoramento. Não nos parece que esta discriminação entre doutorados a nível da sua relação jurídico-laboral seja justa e resolva o problema da precariedade na investigação. Além disso, não está claro se um bolseiro doutorado a trabalhar num projeto poderá ter um contrato de trabalho.

Parece-nos que excluir os bolseiros candidatos a doutoramento, assim como outros bolseiros, como os que trabalham no âmbito de projetos de investigação, constitui uma insuficiência desta proposta. Pensamos que haverá que pensar no enquadramento laboral destes trabalhadores de ciência no âmbito de uma carreira estruturada.

Como já referimos, a contratação a termo resolutivo certo constitui uma medida paliativa, uma vez que findos os 3, 4 ou 5 anos de contrato, o investigador fica novamente sem trabalho e sem perspetiva de vida. Conhecemos as experiências com os contratos celebrados no âmbito de diferentes programas e que a FCT reconheceu na sua Carta de Princípios que não resolviam o problema estrutural da precariedade e do sistema de C&T em Portugal. Por todas estas razões, insistimos na integração destes trabalhadores na Carreira de Investigação Científica. De salientar que a contratação de doutorados por instituições que se regem pelo direito privado (contrato de trabalho a termo incerto), tal como é proposta neste documento, é uma variante avançada de precarização trabalhadores.

Relativamente ao processo de seleção dos candidatos, no ponto 5 do artigo 5º podemos ler o seguinte: “O processo de avaliação pode incluir uma sessão de apresentação ou demonstração pública pelos candidatos, ou por uma parte dos candidatos a selecionar pelo júri, dos resultados da sua investigação, na sequência da qual os membros do júri devem estimular um debate aberto sobre o seu conteúdo e caráter inovador”. Parece-nos que o processo de seleção deve ser claramente definido pelo diploma. Pela leitura deste artigo 5º, fica claro que o processo pode assumir diversos contornos, ora incluindo uma sessão de apresentação pública, ora dispensando essa apresentação. Do nosso ponto de vista, o processo de avaliação para um recrutamento a termo resolutivo deveria seguir os mesmos passos, seja qual for a instituição ou a área científica em causa. A melhor solução seria seguir o processo de atribuição de bolsas da FCT, avaliando-se o candidato pelo seu CV, fazendo-se posteriormente uma seleção. Seja como for, parece-nos claro que o processo deverá ser rigorosamente o mesmo em todos os casos, não deixando espaço para ambiguidades no texto do próprio decreto-lei.

Este documento, para além de não apresentar um plano de carreira, não estipula critérios objetivos relativamente à passagem de um escalão remuneratório para outro. Ou será o trabalhador remunerado consoante a sua experiência de trabalho após concluído o doutoramento? E à medida que vai completando anos de experiência, o seu salário será também atualizado? Qual a justificação para quatros níveis remuneratórios com diferentes níveis salariais? Notamos ainda que o nível salarial mínimo proposto (26) fica, em termos líquidos, abaixo do valor mensal de uma bolsa de pós-doutoramento.

No artº 23 relativo à “Norma transitória”, ponto 1, pode ler-se que “até ao final do ano de 2016, as instituições devem realizar procedimentos concursais para a contratação de doutorados, ao abrigo do presente decreto-lei, para o desempenho das funções realizadas por bolseiros […], e que desempenham, ininterruptamente e há mais de três anos, funções em instituições públicas, ou estejam a ser financiados por fundos públicos há mais de três anos”. Face a um concurso público, nunca se sabe quem irá ganhar o mesmo. Parece-nos perigoso o que é assumido neste ponto, pois os concursos públicos nunca poderão ser feitos “à medida” dos interesses destes bolseiros. Além disso, bolseiros que possam estar ao serviço de uma instituição há anos poderão igualmente ficar de fora nestes concursos devido a intervalos entre diferentes bolsas. A solução mais razoável, e que já foi previamente apontada pela ABIC, seria passar as bolsas a contrato no período em que ainda tivessem vigência.

No ponto 3 do mesmo artigo é dito “a remuneração a atribuir no âmbito das contratações previstas no presente artigo é fixada nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 14º” (relativos ao nível remuneratório). Para evitar engenharias financeiras por parte da entidade contratante, deveria ser dito explicitamente neste ponto que o nível remuneratório mínimo deve ser o número 2, pois os investigadores contratados têm experiência após o doutoramento (alínea a, ponto 1, artigo 14º), uma vez que esta norma se aplica a doutorados que desempenham funções em instituições públicas há mais de três anos.

Na norma transitória, estão representados os bolseiros que até ao final de 2016 tenham completado três anos de bolsa. Não entendemos por que razão os bolseiros que tenham menos de três anos de doutoramento acabem por ficar afastados da possibilidade de contratação. Se o número de bolsas de pós-doutoramento diminui e se estes investigadores recém-doutorados ou doutorados há vários anos não poderão ser contratados, coloca-se a questão de saber quais serão as possibilidades de trabalho científico para estes investigadores.

De um modo geral, parece-nos que este projeto de diploma pode ser um primeiro passo para repensar o sistema de C&T mas, como ficou patente ao longo da exposição, este projeto possui ainda várias fraquezas que devem ser eliminadas, do nosso ponto de vista.

Como associação que se dedica a defender os interesses dos bolseiros e se envolve diariamente pela melhoria do sistema de C&T em Portugal, estamos disponíveis para colaborar com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, na discussão destas e de outras soluções para o estado de degradação em que se encontra este sistema nos nossos dias.

Lisboa, 1 de julho de 2016

A Direção da Associação de Bolseiros de Investigação Científica.

Last Updated on Monday, 04 July 2016 16:46

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