O debate sempre salutar, quando realizado com honestidade intelectual, sobre a despenalização da eutanásia está na ordem do dia. Pela mão dos partidos políticos com assento parlamentar. Só que a mais do que previsível entrada de rompante no debate por parte da hierarquia católica e de alguns leigos católicos ricos levanta uma outra questão, qual é a de saber se é lícito matar um salutar debate como este com slogans, como ela e eles, em coro, estão a fazer por estes dias. Perante o que nos é dado ler, ver e ouvir, tenho que afirmar aqui que semelhante postura eclesiástica é moral e eticamente insustentável, embora rotineira nos países onde a igreja católica de Roma é estatisticamente maioritária, como é o caso de Portugal. Escrevo, Estatisticamente maioritária, já que, na prática de todos os dias, a esmagadora maioria da população portuguesa é o que com propriedade se pode chamar católica agnóstica ou ateia, uma espécie de pesado lastro sócio-cultural rasca que impede a sociedade de se desenvolver de dentro para fora em humano relacional, até se assumir e aos seus destinos com a saudável maturidade que só mesmo a liberdade promove, garante e alimenta.
Felizmente, a maioria dos deputados da AR já não respira os necrófilos ambientes das sacristias e dos templos, espaços de crime mental organizado, onde as populações, nos séculos de Cristandade, conheceram e ainda conhecem sucessivas lavagens ao cérebro, via baptismo imposto pouco depois de se nascer, catequeses e missas de crianças, de jovens e de famílias, totalmente despojadas de ciência e de bom-senso, de estética e de ética. Tudo nesse universo clerical e eclesiástico está exclusivamente em função de um conceito de deus distante dos seres humanos, intermediado pelos respectivos clérigos e sacerdotes, numa cadeia de poder onde não cabem os seres humanos com voz e vez, tratados todos como menores, eternos pagadores de promessas e portadores de endémicos medos que remontam aos primórdios da Humanidade.
Despenalizar a eutanásia. O objectivo da Lei em debate que se deseja ver aprovada e promulgada é extraordinariamente humanizador, já que se apresenta enriquecido de múltiplos dados científicos, os grandes aliados da Fé de Jesus, a única que nos dignifica, pois nos potencia, de dentro para fora, para vivermos na história como se Deus não existisse. O mesmo é dizer, Tudo o que tem a ver com o ser-viver humano na história é da nossa inteira e exclusiva responsabilidade. Pelo que invocar deus, por tudo e por nada, como faz por exemplo o papa Francisco nos seus twitter diários é ofender-nos a nós próprios e uns aos outros. Também no relacionado com a despenalização da eutanásia. Como já sucedeu, há não muitos anos, com a despenalização do aborto.
Uma coisa fica clara em todos os projectos que estão para debate na AR: a Lei que, no final, vier a ser aprovada por maioria não permite, muito menos manda matar as pessoas doentes em fase terminal, como sugerem os milhares de panfletos-slogans católicos espalhados pelo país. De resto, a decisão de recorrer à chamada morte assistida cabe exclusivamente a cada pessoa doente em fase terminal. Não se trata, obviamente, de uma lei fomentadora do suicídio. O que se pretende é que os clínicos que, a pedido da pessoa doente em fase terminal e clinicamente irreversível, se disponham a ajudá-la a bem morrer, não venham a ser depois penalizados pelos tribunais.
Entretanto, toda a nossa prática política há-de visar bons viveres históricos para todos, de modo que sejam viveres de qualidade e em abundância. Porque a dor e o sofrimento são sempre males a combater. E quando há bons viveres, morrer é tão natural como nascer, já que da arte de bem viver brota, como fruto maduro, a arte de bem morrer. Por isso, canto: E a Morte quando chegar /é bem-vinda. Sou Rio que chega ao Mar /Coisa linda!