ANTÓNIO JOSÉ FORTE
TESES SOBRE A VISITA DO PAPA
MAIO 1982
1
Ó ESTADO, mais uma vez podes limpar as mãos à parede do cu do papa, ficarás com as mãos mais brancas para os teus crimes. Ó partidos, da esquerda* e da direita, mais uma vez podeis beijar os pés do papa, ficareis com a boca abençoada para mentir melhor. Explorados, escolhei o crime, escolhei a mentira. Sois livres. Tu, poeta, range os dentes e indigna-te.
2
Que o Estado venere Deus na figura do papa, que os partidos venerem o Estado na figura do papa; que os explorados venerem Deus, o Estado, o Partido – a trindade omnipotente. Enfim, o poder temporal subordinado ao poder sobrenatural. Nem Deus nem senhor? Maldita incurável doença infantil do comunismo.
3
O Estado que se submete é republicano e reverencia a Igreja, o Partido em que militas é marxista e felicita o papa, o Sindicato onde estás inscrito é revolucionário e saúda a reacção. A greve geral é uma arma que não deve ferir o papa. Nada contra o obscurantismo. Paz ao inimigo. Quem disse que a religião é o ópio do povo? Explorados, que escolheis?
4
Sobretudo, nada de escândalo. Uma pedra branca sobre o crime, uma pedra negra sobre a crítica. Ecrasez l’infâme, dizia Voltaire. Uma pedra negra sobre Voltaire. O silêncio dos ateus é ouro do Vaticano. Explorado, escolhe a pedra para a tua cabeça.
5
Conquistar a liberdade de expressão para não usar a liberdade de expressão. Não denunciar o opressor, não ousar atirar-lhe à cara a revolta, sequer na forma de um cravo. Ver, ouvir, receber o papa com o medo de 24 de Abril. Explorado, porque não vomitas?
6
Explorado, sê manso e obedece. Pode ser que entres no reino dos céus, de camelo ou às costas de um rico. Obedece. Pode ser que vás para aa cama com a Pátria. Obedece. Pode ser que o teu cadáver ainda venha a ser o estandarte glorioso do Partido. Nunca percas a esperança, explorado, jamais.
7
Abaixo a união livre. Viva a coexistência pacífica. O casamento do capital e do trabalho vai ser o grande casamento do século. Não haverá oposição dos pais nem da polícia. Sobretudo, tudo menos a erotização do proletariado. Felicidades, explorado.
8
Ouvi falar da luta de classes e da revolução e do mundo que o proletariado tem a ganhar e nada a perder. Ouvi falar em transformar o mundo e mudar de vida. Ouvi falar de que enquanto um homem, um só que seja, e ainda que seja o Último, existir desfigurado, não haverá figura humana sobre a terra. Nunca tinha ouvido uma sereia assim. Ouviste, explorado?
9
O diálogo? Que diálogo pode haver entre o condenado à morte e o carrasco que o conduz ao patíbulo? O diálogo é entre amantes, entre amigos, entre camaradas. Fora disso não há diálaogo. Tens a palavra, explorado.
Lisboa, 25 de Maio de 1982
*Excepto a UDP, apenas no que se refere à visita do papa. Citações evidentes de: Lenine, K.Marx, Manifesto Comunista, Rimbaud e Cesariny. Entregue a Baptista-Bastos com a devida antecedência, exactamente no dia 27 de Maio, que me garantiu a sua publicação, em O Ponto, as Tese que não foram afinal incluídas naquele semanário, de 3 de Junho, por não haver página de Opinião, e não serão publicadas futuramente por entretanto terem perdido a actualidade, segundo informação do mesmo jornalista.
(Comp. e imp. Na Tipografia Freitas Brito, Lda. Tiraram-se 500 exemplares, para distribuição gratuita.)
NOTA BIOGRÁFICA
António José Forte (1931-1988), o «mano Forte», como Luiz Pacheco o apelidava, é um dos mais admirados poetas portugueses. Integrou, nos anos 50 e 60, com Mário Cesariny, Herberto Helder e outros, o chamado grupo do Café Gelo. Ligado ao movimento surrealista, traçou contudo um percurso singular, obstinado, aproximando-se das ideias situacionistas e afastando-se de convicções partidárias.
Durante os mais de 20 anos em que foi Encarregado das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, transportando-se numa Citroën abastecida de livros, levou a cultura e o prazer da leitura a regiões isoladas do país. A sua obra, breve mas poderosa, foi publicada em vários jornais, revistas e antologias, edições originais (de que se destaca Uma Faca nos Dentes, de 1983, que dá nome a este livro) e duas colectâneas póstumas com textos dispersos e inéditos.
O seu livro “Uma Faca Nos Dentes”, com a sua obra completa, foi reeditada em 2017 pela Antígona.
Este blogue tem publicado muitas das suas poesias.