Falemos de Ana Margarida de Carvalho. Com Que Importa a Fúria do Mar e Não Se Pode Morar nos Olhos de Um Gato, venceu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, em 2013 e 2017. Recebeu, também, os prémios Gazeta Revelação do Clube de Jornalistas de Lisboa, o do Clube de Jornalistas do Porto e o da Casa de Imprensa.
Debrucemo-nos, agora, sobre o seu livro de contos, Pequenos Delírios Domésticos,título “roubado” a um poema de Sérgio Godinho e publicado em 2017.
Abrimos o livro e deparamos com Chão Zero, chora a perda da casa de seus avós. É uma pérola de concisão na descrição da História destro da história de cada um. Neste caso, da sua família. Fiquei completamente subjugada. É a sua reacção à devastação dos incêndios de Outubro de 2017. “A minha infância é um esgoto atravancado de detritos.”[…] “Tenho de reportar a minha infância ardida e dão-me um formulário da Protecção Civil”.[…] Neste andar de cego, os passos não me obedecem, faltam-me as esquinas, os pontos de referência, os desvãos, as passadeiras, as maçanetas de portas ausentes…”
São contos desnorteantes como o que dá o título ao livro, Pequenos Delírios Domésticos, onde a narradora descobre que a governanta da sua casa de infância escondera durante toda a sua vida dois refugiados judeus da segunda guerra mundial no sótão.
Em A Troca, Manuel, ou Man-hu-el é um rapaz que se tornar terrorista por lhe parecer uma boa solução para virar costas à disfunção familiar.
O nome que te deram antes de nasceres é uma sátira deliciosa à filosofia do empreendedorismo e à religião.
“Ninguém é profeta na sua terra. Salvo seja e reticências…Francisco seguia a eito na rua principal, de Vespa. Nenhum tráfego, nenhum transeunte, via desimpedida. E no entanto, conduzia tenso, agora desconfio, agora acerto, agora vejo, agora desvario… E se lhe perguntassem, como no soneto de Camões, porque assim andava em estado incerto, respondo que não sei: porém, suspeito, que só porque vos vi, Minha Senhora. Apenas em Fátima, soneto lírico renascentista convertido em anúncio de aparição. A mãe tinha-o emoldurado, e posto à venda para peregrinos, artigo exclusivo da loja, inebriada a clientela com os ardores do poeta, adorador da Nossa Senhora, fazendo por descrer no anacronismo.”
Depois de ter ido para o Arizona ser CIO por ter inventado uma aplicação que consistia em atribuir a cada angústia “a melhor divindade de entre todas as religiões, crenças, igrejas, cultos, devoções, búzios, xamãs e orixás do planeta”, tem que regressar a Fátima após a morte da sua mãe, tem de cuidar da irmã mais nova que, portadora de uma deficiência cognitiva, e que apenas é capaz de exclamar “Nossa Senhora!” E acaba num negócio florescente em que a polícia tem que vedar a rua para controlar os peregrinos que se atropelam para comprar os seus produtos milagrosos.
Não sei se crentes na aparição da Senhora de Fátima apreciarão este conto. Gente inteligente perceberá a metáfora à sociedade em geral.