CRISE DO COVID 19 E A INCAPACIDADE DAS SOCIEDADES NEOLIBERAIS EM LHE DAREM RESPOSTA – XXXIX – O INIMIGO INVISÍVEL AVANÇA, por VICTOR HILL

The invisible enemy advances, por Victor Hill

Masterinvestor, 3 de Abril de 2020

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

 

 

– TS Eliot (1888-1965), The Waste Land (1922)

 

Por enquanto, o Covid-19 está a ganhar contra a raça humana à medida que os casos e as fatalidades aumentam exponencialmente. Vamos vencê-lo – eventualmente. E, atravessando a crise, sairemos do  outro lado, mais pobres mas também mais sábios, escreve Victor Hill.

April is the cruellest month, breeding

Lilacs out of the dead land, mixing

Memory and desire, stirring

– TS Eliot (1888-1965), The Waste Land (1922)

 

Abril trará números deprimentes

Abril de 2020 será um mês sombrio no Reino Unido e, na verdade, em todo o mundo. O número de novos casos diagnosticados com Covid-19 e de mortes causadas pelo vírus está a aumentar exponencialmente a algo como 15% por dia. Mais preocupante ainda é o facto de a taxa de mortalidade continuar, de facto, a aumentar.

Como escrevo (quinta-feira), os países mais atingidos até agora, para além da China (3.318 mortes), foram a Itália (13.155), Espanha (10.003) e os Estados Unidos (5.112), embora as suas taxas de mortalidade tenham sido muito diferentes. Nos Estados Unidos, o Estado de Nova Iorque tem sido um ponto quente de referência  especial.

Todos os países desenvolvidos, com algumas exceções, como a Suécia, adotaram uma estratégia de bloqueio nacional bastante semelhante, com diferentes graus de severidade. O debate político – que agiu com maior eficácia e celeridade – durará, sem dúvida, anos a fio. E ainda não sabemos qual tem sido a eficácia da estratégia de encerramento ou quanto tempo terá de durar. Hoje, quero apenas examinar a natureza do inimigo invisível.

Epidemiologia para os mortos

Matt (Lord) Ridley é um escritor científico (entre outras coisas) que ganhou a reputação por causa do seu ceticismo científico. Ele acha que devemos procurar reduzir as  alterações climáticas, a queda do número de  espermatozóides e a acidificação dos oceanos… Mas quanto ao coronavírus, ele tem-nos  alertado que as dificuldades que temos pela frente não têm nenhum paralelo com o que até agora conhecemos… [i]

O problema é que nos permitimos imaginar que doenças infeciosas – peste bubónica, varíola, cólera, febre tifoide, sarampo, poliomielite, tosse convulsa e outras – tinham sido derrotadas. Sabíamos que havia novas estirpes de vírus derivados de animais em geral – Hanta, Marburg, SARS, MERS, Ebola, gripe suína, gripe das aves e Zika – mas pensámos, com base na experiência recente, que eram controláveis. Sim, o VIH/SIDA tornou-se global durante cerca de 20 anos: mas, no início deste século, estava mais ou menos sob controlo graças às medidas profiláticas e aos medicamentos antivirais.

Depois pensámos que a nossa capacidade muito recentemente adquirida de descodificar os genomas de todos os agentes patogénicos nos protegeria para sempre. Mas a Mãe Natureza, em toda a sua glória, inventou um assassino particularmente subtil. O que é tão nefasto no Covid-19 é que (a) é altamente contagioso com um valor R0 muitas vezes superior ao da gripe sazonal; (b) a maioria dos portadores são assintomáticos – nem sabem que o têm, por isso circulam normalmente; e (c) tem uma taxa de mortalidade significativa, especialmente para aqueles – sobretudo os mais idosos – com os sistemas imunitário e respiratório comprometidos. Os primeiros indícios da Islândia sugerem que 50% de todas as infeções são completamente assintomáticas.

O número de casos fora da China aumentou dez vezes desde o início de Fevereiro, aproximadamente a cada dez dias. Se continuar a este ritmo, então 100 milhões de pessoas em todo o mundo terão sido infetadas até meados de Maio.

A epidemiologia tem sobretudo a ver com modelos estatísticos (modelos de folha de cálculo, em grande parte, em vez de supercomputadores), que é, de qualquer forma, o que os economistas fazem. É verdade que existem dados sobre a forma como a patologia se desenvolve, para a qual estamos dependentes dos homens e mulheres de casacos brancos. Mas há muitos dados por aí para os não-médicos analisarem. De facto, nunca uma pandemia foi tão fácil de analisar em tempo real, nem uma peste foi tão bem documentada.

O que é evidente até agora é que os países asiáticos têm tido muito mais êxito na contenção do vírus do que a Europa e a América do Norte. E há enormes variações nas taxas de mortalidade – de quase 12% em Itália para cerca de 1% na Alemanha, apesar de ambos serem países quase vizinhos com níveis de vida equivalentes. (Os italianos vivem mais tempo do que os alemães [ii] e – sem dúvida – gozam de uma qualidade de vida mais elevada).

Esta enorme variação deixou-me muito perplexo; e, como explicarei em breve, há muita coisa a acontecer dentro dos dados. Para hoje, gostaria apenas de partilhar as seguintes observações – que são tão importantes para os investidores como para os milhões de auto-isoladores  que andam ou estão  por aí.

A taxa de morte – ou, como eu prefiro, a taxa de mortalidade (embora o termo médico seja Taxa de Casos de Fatalidade- Case Fatality Rate ou CFR) – é determinada pelo rácio do número de pessoas que comprovadamente tiveram o vírus  a dividir  pelo número de pessoas que efetivamente morreram devido a ele. Este último é  conhecido – normalmente podemos contar os mortos. Mas a primeira é muito mais difusa porque não temos a menor ideia de quantas pessoas contactaram o vírus em primeiro lugar. Só o saberíamos com certeza se fizéssemos testes contínuos a todos, o que não é praticável neste momento.

Mas parece certo que o número combinado de pessoas que ou tiveram o vírus e se recuperaram, ou que o têm e que não apresentam sintomas, é muito mais elevado do que o número de casos registados. No caso do Reino Unido, a única coorte que tem sido amplamente testada até à data é a que está internada no hospital com sintomas graves. E todos ouvimos falar episodicamente de amigos e familiares que sofreram em casa sem recorrer a um hospital.

Como referi na semana passada, um relatório assinado por Sunetra Gupta,, professora de Epidemiologia Teórica na Universidade de Oxford [iii] afirma que o vírus chegou à Europa muito mais cedo do que se pensava e que poderia já ter infetado metade da população do Reino Unido. Portanto, pode já existir um grau de imunidade  efetiva (embora a imunidade  efetiva total exija mais de dois terços de uma população para ter desenvolvido o antigénio). Simplesmente não sabemos.

Um outro modelo construído pela Edge Health no mês passado mostrou que, embora houvesse apenas pouco menos de 10 000 casos confirmados em Inglaterra em 26 de Março, o número de infeções até essa data era de pelo menos 1,6 milhões. Este modelo funciona partindo  de uma taxa de mortalidade assumida de 0,07 por cento em Londres e 0,9 por cento fora da capital (porque a população é mais velha).

Ao escrever este texto,  o Reino Unido registava 29.474 casos, dos quais 2.352 morreram. Isto produz uma taxa de mortalidade implícita de 7,98 por cento – um valor que tem vindo a aumentar regularmente (era de 3,64 por cento em 17 de março). Isto é frequentemente contrastado com a taxa de mortalidade da gripe sazonal, que geralmente se pensa ser de cerca de 0,1% (ou seja, um em mil). Mas isso seria enganador porque podemos estar razoavelmente confiantes de que há centenas de vezes mais pessoas infetadas pelo CV-19, mas que continuam por testar. Assim, em última análise, a taxa de mortalidade do Covid-19 poderá revelar-se semelhante à da gripe sazonal.

Há outro problema que é a forma como as mortes são registadas – e isto varia muito de um país para outro. Como o Dr. John Lee escreveu na semana passada [iv], se alguém morre de uma infeção respiratória no Reino Unido, a causa específica da infeção não é normalmente registada, a menos que a doença em questão seja uma doença notificável.

A Covid-19 é agora uma doença notificável no Reino Unido – juntamente com a varíola (que está extinta de qualquer forma), a peste e a raiva, etc. Mas a gripe não é – por isso o número de mortes causadas pela gripe é subdeclarado. Pelo contrário, há uma diferença entre a Covid-19 que causa a morte e o facto de ser encontrada em alguém que realmente morreu de outra coisa. E, no entanto, sabemos que o número esmagador de pessoas que morrem de Covid-19 tem pelo menos uma doença crónica subjacente. Toby Young salienta que a idade média de todas as pessoas no Reino Unido que morreram até quarta-feira foi de 79,5 anos – contra uma esperança média de vida no Reino Unido de 81 [[v] . Em Itália, a idade média das vítimas mortais é de 78,5 anos.

Parece muito provável que haja uma correlação entre os níveis de tabagismo e a morbilidade do CV-19. O facto de os homens fumarem mais do que as mulheres explica, de certo modo, por que razão os homens são responsáveis por cerca de dois terços das mortes no CV-19 a nível mundial. (Os homens também geram menos imunoglobulina G do que as mulheres – um anticorpo-chave.) Foi também sugerido que a elevada taxa de mortalidade em Itália pode estar relacionada com uma taxa de vacinação relativamente baixa, em parte devido a um forte movimento anti-vacinação.

Nos Estados Unidos, onde o número de mortes por coronavírus duplicou em três dias para 5 112, os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos mostram que, neste último Inverno, desde Setembro de 2019, a gripe infetou 38 milhões de americanos, hospitalizou 390 000 e matou 23 000. Quando estive na Florida, em janeiro, a gripe foi um tema de conversa importante. Mas não se falava em encerrar as portas, por isso.

Uma possível explicação para a baixíssima taxa de mortalidade na Alemanha é tripla. Em primeiro lugar, a coorte inicial de doentes alemães era jovem – muitos deles contraíram o vírus em viagens de esqui a Itália. Em segundo lugar, a Alemanha testou mais pessoas do que qualquer outro país da Europa. Em terceiro lugar, há relatos de que os médicos alemães certificam a causa de morte como sendo a infeção secundária ou subjacente e não o CV-19. Mas esta semana, o número de mortes na Alemanha aumentou (179 novas mortes na quarta-feira) e pode muito bem acontecer que a taxa de mortalidade regresse à média ao longo do tempo

É certo que nenhum país viu um aumento percetível da taxa global de mortalidade acima do que seria considerado “normal” até agora (600.000 por ano no Reino Unido) – embora isso possa mudar. Daqui a cerca de um ano, poderemos considerar que o mundo desenvolvido exagerou (embora eu esteja muito preocupado com o efeito potencial da pandemia em África, que está muito atrás da curva). As implicações políticas serão, sem dúvida, objeto de debate nos próximos anos.

A segunda vaga

A maioria dos virologistas pensa que o encerramento pan-nacional será eficaz a curto prazo. Mas, quando abrandarmos o bloqueio, o número de novos casos começará a aumentar novamente.

A médio prazo, teremos (a) uma vacina eficaz; (b) medicamentos antivirais eficazes; e (c) um melhor tratamento para aqueles que sucumbem à falha respiratória – o sintoma mais letal. Assim, ultrapassaremos esta situação – e sairemos mais sábios do outro lado. Esta pandemia vai ser de magnitude menos letal do que a Peste Negra (1340) ou a Gripe Espanhola (1918-20): mas ainda assim vai custar imenso em termos humanos e económicos.

Uma coisa que aprendemos é que o desenvolvimento de vacinas abrandou. Trata-se de um processo laborioso e dispendioso, que não está a melhorar tão rapidamente  quanto nós necessitamos.

O Teste de Testes

A chave para conter o vírus e, assim, pôr fim ao confinamento, residirá nos testes. Até à data, o Reino Unido testou uma percentagem da população semelhante à dos EUA e da França, mas muito menos pessoas do que na Alemanha e na Coreia do Sul. Atualmente, o Reino Unido está a testar cerca de 8.000 por dia, mas é provável que esse número aumente para 25.000 por dia até ao final de Abril. Verifica-se uma escassez de zaragatoas, compressas   e de agentes químicos.

Os testes aos coronavírus são de dois tipos. Existem testes que detetam a presença de antigénios do vírus (ou seja, os que estão infetados) e testes que detetam anticorpos produzidos em resposta à infeção (ou seja, os que se recuperaram e são imunes). Vamos precisar de ambos os testes em grande número para realizar o trabalho.

O Sr. Farage (lembram-se dele?) publicou no sábado passado um vídeo no YouTube que, embora sem dúvida por motivos políticos (o que é se esperaria?), aborda algumas questões importantes em torno da resposta do Governo do Reino Unido à pandemia. Digam o que quiserem sobre ele, mas o senhor deputado Farage foi sempre um político bem informado – e tem boas informações sobre a Itália.

O SNS está a planear utilizar o sangue doado pelos doentes com CV-19 recuperados para transferir para casos graves no hospital, a fim de reforçar a imunidade… Mais uma vez, não temos ideia da diferença que isso fará.

Na próxima semana vou analisar a gama de medicamentos anti-virais já disponíveis e os seus fabricantes. Pode revelar-se que a cura para o CV-19 tem estado sempre connosco sob a forma de antimaláricos.

Prepararmo-nos  para um mundo diferente

Nós NÃO estamos condenados. Mas na história mundial e europeia, as pestilências (mesmo as relativamente menores) têm sempre um mau fim e um pior  – epílogo traumático, como a guerra. O poço das relações China-EUA foi envenenado com consequências temíveis, que irei discutir em breve. O movimento anti-globalização ganhará ímpeto. Enquanto muitos especialistas preveem um desvio para a esquerda, com impostos mais elevados, impostos sobre a riqueza e o inelutável avanço do Rendimento Básico Universal (UBI), eu prevejo o avanço de uma agenda mais “de direita” (embora deteste esse termo).

Isso implica resiliência nacional – para começar, cada país avançado necessita de recursos para fabricar vacinas e equipamento médico suficientes a nível interno. E qualquer país que entregue a sua indústria da Internet ou do aço aos chineses precisa que o seu governo  seja examinado. As fronteiras abertas, ou inexistentes, facilitam a propagação da infeção e devem ser postas em causa. Todos os imigrantes devem ser sujeitos a controlos sanitários: a prevalência da tuberculose no Reino Unido é um escândalo nacional inconfessado.

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Enquanto escrevi o texto acima,  mais de 500 dos meus compatriotas já morreram já deste vírus.

O poema de Eliot, cuja primeira linha usei como epígrafe para esta peça, é ricamente alusivo. Essa linha é uma referência à abertura de O Prólogo aos Contos de Canterbury de Geoffrey Chaucer (1342?-1400) – que também se pode dizer que é a linha de abertura da própria literatura inglesa:

Whan that Aprille with his shoures soote,
The droghte of March hath perced to the roote,
And bathed every veyne in swich licóur…
Thanne longen folk to goon on pilgrimages…

 

Tudo está ligado. E na verdade eu estava a planear a minha própria peregrinação na Semana Santa – a pé desde um pub em Southwark (a pousada Tabard em Chaucer, que hoje, incrivelmente, ainda existe na sua encarnação do século 17 como o George) até a cidade catedral de Canterbury – o epicentro do cristianismo na Inglaterra. O antigo Caminho dos Peregrinos foi, em grande parte, ressuscitado e marcado através de Kent na forma da North Downs Way – um trilho nacional, partes do qual já os percorri  muitas vezes.

Infelizmente, esta peregrinação não vai acontecer agora.

A Inglaterra com pubs e igrejas fechados, pelo menos por enquanto, está diminuída. Mas o vigário ainda difunde os seus sermões e orações em formato PDF para a multidão digital. A loja da aldeia ainda está aberta; os tratores ainda atravessam os campos…as aves estão a fazer ninhos febril.

E, às vezes, a quietude é quase palpável.

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[i] The Spectator, 21 March 2020. https://www.spectator.co.uk/article/we-are-about-to-find-out-how-robust-civilisation-is

[ii] See: https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_European_countries_by_life_expectancy

[iii] See: https://www.standard.co.uk/news/health/coronavirus-half-uk-population-oxford-university-study-finds-a4396721.html?fbclid=IwAR3RHZeSvxjjw198DatHQgtTH3VkYdBap1oPDdoTdDmmDHBGulMdJg8-hEU

[iv] The Spectator, 18 March 2020. https://www.spectator.co.uk/article/The-evidence-on-Covid-19-is-not-as-clear-as-we-think

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