Our Economy Was Just Blasted Years Into the Future, por Steve LeVine
Marker.Medium,com, 26 de Maio de 2020
Selecção, tradução, montagem e adaptação de Júlio Marques Mota
Ilustração de: Félix Decombat
A crise está a comprimir e a acelerar tendências que teriam levado décadas para se concretizarem
Em 2010, dois antigos investidores de fundos de cobertura de Nova Iorque pagaram 5,8 milhões de dólares para comprarem a Clear, uma empresa de identificação biométrica que tinha falido devido a ter-se perdido um computador portátil que continha os dados pessoais não encriptados de 33.000 pessoas. Caryn Seidman Becker e Ken Cornick tinham a certeza de que poderiam reavivar a sorte da empresa e ganhar montes de dinheiro revistando as pessoas que, pelo agravamento das condições de segurança nos aeroportos, estarão em longas filas de espera utilizando para o efeito as tecnologias da inteligência artificial sem contacto, ou seja, com base na digitalização das íris e impressões digitais dos passageiros .
Até certo ponto, eles tinham razão. Apenas dois anos mais tarde, o Departamento de Segurança Interna reconheceu-os como uma empresa “anti-terrorista qualificada” e quadruplicou a sua clientela, expandindo-se esta para a segurança, juntamente com a certificação de idade dos compradores de cerveja em grandes eventos desportivos. A empresa Clear diz que tem vindo a dar lucro desde 2017.
Mas isso foi tudo antes do Covid-19.
Na semana passada, Seidman Becker lançou o Clear num novo espaço digital – “tecnologia “sem contacto””, uma peça construída em torno do medo de que o coronavírus possa estar à espreita em qualquer superfície, em qualquer lugar. Contra esta ameaça, os aeroportos estão a implementar um novo nível de segurança, incluindo câmaras térmicas, sendo certo que com o agravamento das condições de segurança nos aeroportos haverá filas de espera excepcionalmente longas quando as pessoas voltarem a voar. Seidman Becker está a responder com navegação mãos-livres: Clear irá carregar os resultados dos testes Covid-19 dos passageiros, ID, bilhetes de avião, cartão de crédito e questionário de saúde. Isto, juntamente com os exames da íris e do rosto, permitir-lhes-á passar mais rapidamente pela controlo.
Para companhias como Clear e as empresas de segurança suas concorrentes é um acontecimento muito marcante, pouco usual, que acontece uma vez na vida, reformularem-se (NR: “rebranding” no original) enquanto se tornam uma resposta para companhias, escritórios e agências por todo o lado, a procurarem perceber como poderão reabrir em segurança.
O conceito está agora a difundir-se muito para além dos aeroportos. A Clear, juntamente com a Swiftlane e a Envoy, estão entre as empresas que começaram a oferecer serviços semelhantes aos edifícios de escritórios. Dizem que a tecnologia é utilizável em qualquer lugar onde alguém precise provar a sua identidade ou tirar a carteira para pagar, levantando o espectro da entrada biométrica em muitos ou em quase todos os lugares que as pessoas frequentam. As possibilidades são ilimitadas.
Antes do coronavírus, o capitalismo de vigilância já era uma grande preocupação – as grandes empresas de tecnologia estavam a aspirar dados de computadores portáteis, portas de entrada, electrodomésticos, cozinhas, salas de estar e smartphones e a vender comercialmente as informações obtidas por centenas de milhares de milhões de dólares por ano. Agora, a tecnologia “sem contacto” sugere uma nova frente na era da vigilância comercializada 24 horas por dia, pirateável pelo Irão, China, Coreia do Norte, Rússia, ou qualquer número de actores privados, bem ou mal intencionados. Trata-se de um acontecimento invulgar, único no seu género e sobrefaturando para Clear e para os seus rivais que se reposicionam eles próprios enquanto se tornam uma resposta para empresas, escritórios e agências em todo o lado a pensar como desconfinar em segurança.
Num webcast patrocinado pela Axios, na semana passada, Seidman Becker não disse quantas pessoas se tinham inscrito no Health Pass – como a Clear chama ao seu novo produto – e a empresa não respondeu aos e-mails. Mas a reformulação também deixa a indústria mascarar as tonalidades orwellianas criadas por empresas como a chinesa Megvii Tech, um unicórnio I.A. cujas câmaras de reconhecimento facial ajudou a passarem em revista os membros da minoria Uighures. Faz parecer que não se trata de presunções odiosas do Big Brother , mas sim de segurança social. Nesta transformação, a expressão ““sem contacto”” torna-se mais ou menos como tecnologia “sem fios”, uma denominação benigna destinada a servir o espirito do tempo.
Ilustração de: Félix Decombat
“É uma mudança única na tecnologia. Depois disto, vai ficar assim para sempre”, diz Saurabh Bajaj, CEO da Swiftlane, uma empresa de aplicação “sem contacto” no Sillicon Valley que utiliza o reconhecimento facial. Esta diz que o Covid-19 permitiu que a tecnologia saltasse para um futuro imediato de elevadores “sem contacto”, portas e caixotes do lixo. As barreiras, na sua maioria, desapareceram: “Iremos simplesmente avançar para este novo mundo”, é o que nos diz.
***
Ao longo da história, as pandemias têm deixado impactos variáveis, por vezes momentâneos, nas sociedades em que ocorreram. Nos séculos XVI e XVII, a varíola, o sarampo e outras doenças trazidas pelos espanhóis dizimaram até 90% da população da América do Sul e Central, transformando por completo a ordem histórica. Em contrapartida, a pandemia global de gripe de 1918 a 1919 não parece estabelecer novas normas, sugere o cientista político Joseph Nye, de Harvard. Pelo contrário, os cerca de 50 milhões de mortes por gripe pareciam misturar-se no massacre geral da Primeira Guerra Mundial e continuar a ser praticamente esquecidos até que os historiadores modernos começaram a escrever sobre a calamidade, nos anos 70.
Como catástrofe, a própria Covid-19 parece ser, até agora, um híbrido de impacto – acelerando em grande medida algumas tendências potentes e, ao mesmo tempo, dissipando rapidamente outras que as pessoas pensavam que estavam a acontecer mas que, na realidade, não estavam. Cliff Kupchan, presidente do Grupo Eurásia, diz que essa aceleração é um subproduto natural de crises como as pandemias, que “tendem a abalar o sistema actual”.
No contexto de um período de dois séculos de transformações cada vez mais rápidas, o coronavírus está a comprimir e a acelerar ainda mais o arco de acontecimentos.
“Há pressão sobre todas as tendências, e apenas as mais fortes e vibrantes continuam em curso”, diz ele. “Apenas os mais aptos sobrevivem. Está-se perante um momento darwiniano quanto a tendências”.
O que Kupchan está a descrever é uma máquina do tempo económica. No contexto de um período de dois séculos de transformações cada vez mais rápidas, o coronavírus está a comprimir e a acelerar ainda mais o arco de acontecimentos.
Considere a mudança para automóveis sem condutor, um dos acontecimentos mais previstos do nosso tempo. Na visão popular, repetida inúmeras vezes por Silicon Valley, Wall Street, Detroit, carissimos consultores, grupos de reflexão e pressão, ditos think tanks, e governos de todo o mundo, a espécie humana está rapidamente a mudar para um mundo de automóveis autónomos e partilhados. A partir do início da década de 2020, foi dito, as pessoas vão viajar em tais veículos, sem prestar atenção aos seus arredores, relaxando, trabalhando ou fazendo compras em metrópoles inteligentes que se assemelham substancialmente a Orbit City, a casa dos Jetsons, talvez até incluindo alguns carros voadores. Esta nova libertação do volante seria uma bonança tanto para os fabricantes de automóveis como para o Sillicon Valley, produzindo veículos carregados de tecnologia que sugariam um fluxo constante de dados lucrativos dos passageiros. Este futuro era tão certo que os grandes construtores de automóveis e os industriais de Silicon Valley se lançaram numa onda de despesas para o tornar realidade, investindo um montante conjunto de 16 mil milhões de dólares.
Isso foi assim. Mesmo antes do Covid-19, muitos construtores de automóveis já tinham expresso dúvidas em privado sobre a cronologia dos acontecimentos. Mas agora, a maioria dos mais conhecidos nomes de negócios deixou de fazer previsões sobre o que irão produzir e quando o irão produzir. A Ford adiou completamente a estreia em 2021 dos robotaxis e dos veículos de entrega sem condutor, dizendo que o vírus poderia ter um efeito desconhecido e a longo prazo no comportamento dos consumidores.
A BMW diz que as pessoas parecem não querer entrar no tipo de veículos partilhados e autónomos que tinha planeado, mas sim continuar a conduzir o seu próprio carro. A GM encerrou a Maven, o seu serviço de partilha de automóveis, e despediu 8% da mão-de-obra da Cruise, a sua divisão de veículos sem condutor.
Uma das razões para as dúvidas sobre o relançamento dos ganhos dos trabalhadores é mais um subproduto do coronavírus: uma automatização acelerada dos postos de trabalho.
Uma parte disto é a indústria automóvel estar a sentir de perto que é mortal: A Ford espera perder 5 mil milhões de dólares este trimestre após uma perda de 2 mil milhões de dólares nos primeiros três meses do ano. A Fiat Chrysler também perdeu pouco menos de 2 mil milhões de dólares no primeiro trimestre. A GM ganhou algum dinheiro – 294 milhões de dólares – mas isso representou uma queda de 86% em relação ao ano anterior. Tem sido o mesmo no estrangeiro: Os lucros da VW caíram 75% no primeiro trimestre, e a Toyota diz que espera que os lucros anuais desçam 80%.
Mas a indústria também perdeu a confiança de que um veículo totalmente autónomo, onde quer que seja, seja possível a qualquer momento. Numa reportagem do Wall Street Journal, em 18 de Maio, afirmava-se que a Uber – cujo modelo de negócio até há pouco tempo se centrava inteiramente no domínio da autonomia – estava a reavaliar a investigação sem condutor depois de ter queimado mais de mil milhões de dólares.
Foi uma notícia espantosa desde o ano passado, a unidade de autocondução de Uber foi avaliada em 7,25 mil milhões de dólares. Para além dos principais actores, dezenas de milhões de dólares de capital de risco foram investidos em inúmeras startups, entre elas a Argo AI, Zoox, Aurora e Voyage.
Ninguém está a desistir publicamente – isso seria uma concessão excessiva, dado o efeito que provavelmente sentiriam em Wall Street. Em vez de uma admissão de fracasso, estão a ver uma após outra passarem a defender uma autonomia menor e limitada, como a mudança de faixa, a condução em auto-estrada e o estacionamento automático.
***
Em 2019, um dos principais pontos altos da economia foi o facto do grupo de trabalhadores com salários mais baixos, ter visto os seus salários aumentarem drasticamente 4,5% , após décadas de contracção da sua parte na repartição do rendimento. As empresas estavam a apanhar alguns dos desempregados mais duros – entre eles os desempregados de longa duração, criminosos e toxicodependentes, o que foi necessário porque, com a taxa de desemprego em 3,6%, não havia mais ninguém para preencher os postos de trabalho.
O coronavírus apagou tudo isso, devolvendo a muitos dos trabalhadores recém-contratados o estatuto de desempregados e fazendo com que os aumentos salariais do ano anterior parecessem agora completamente ocos. Segundo um novo documento publicado pelo National Bureau of Economic Research,, 42% das pessoas despedidas não voltarão a recuperar os seus empregos. A forma como muitos poderão recuperar o que perderam não é clara, uma vez que a economia quase não lhes tinha dado nenhuma almofada, diz Rick Wartzman, diretor do Center for a Functioning Society at the Drucker Institute “O progresso que finalmente começava a ser feito na elevação de todos os barcos está agora a afundar mais rapidamente os barcos mais pequenos”, diz Josh Bolten, diretor da Business Round Table e antigo chefe de gabinete do Presidente George W. Bush.
Outra razão para que as dúvidas sobre o reaparecimento de ganhos para os trabalhadores sejam mais um subproduto do coronavírus: uma automatização acelerada dos postos de trabalho. Algumas partes do país há muito que receavam a possibilidade de os robots assumirem faixas da economia, e as empresas, os grandes consultores e os líderes do pensamento trabalharam horas extraordinárias para garantir às pessoas que a automatização ajudaria os trabalhadores, não os substituiria.
Mas o momento da verdade, forçado pelo vírus, tem visto os trabalhadores a serem substituidos pela automação, mesmo por empresas que anteriormente não se tinham voltado para os robôs. A tendência é mais pronunciada na China, onde o investimento em tecnologias de automação está a aumentar, mas as empresas americanas também estão a experimentar mais robôs. “Muitas empresas estão a experimentar a automação de formas que talvez hoje não adoptariam se não sentissem a necessidade – desde a I.A. à substituição dos call centers encerrados nas Filipinas e na Índia, passando pelos robôs que utilizam luz ultravioleta para desinfeções “, diz Karen Harris, directora-geral da Bain Macro Trends. “Como temos uma maior base instalada de automação, o custo diminuirá e o número de casos de utilização aumentará”.
Um dos principais compradores destes novos robôs são as lojas de retalho, que já estão entre os sectores mais perturbados do planeta. Desde 2015, cerca de 32.600 lojas fecharam nos EUA, à medida que o gosto dos consumidores se deslocava para as lojas na Internet. Desde o aparecimento do vírus, a implosão da indústria acelerou, com novos processos de falência este mês por J.C. Penney, Neiman Marcus e J.Crew, e previsões de mais de 100.000 encerramentos de lojas ao longo dos próximos cinco anos. As vendas combinadas de Março e Abril caíram 24%, um recorde.
No entanto, olhe mais de perto para os números: antes de Covid, apenas 15% das vendas a retalho foram feitas pela Internet. Agora, durante o coronavírus – com quase todas as lojas do país fechadas, à excepção de mercearias, farmácias e algumas outras lojas essenciais – o número subiu para 25%, disse a UBS. Ou seja, apesar de a maioria do país estar abrigada em casa, cativa dos seus computadores com todos esses sites na Internet, as lojas físicas ainda representavam três quartos de todas as vendas.
Ilustração de: Félix Decombat
O vírus mudou claramente o comportamento dos consumidores; em apenas algumas semanas, o comércio electrónico alcançou anos de crescimento. No entanto, a pandemia, pelo menos até agora, não conduziu a que a maioria dos compradores façam as suas compras pela internet. Isto pode tornar o comércio retalhista num outro grande problema em que o que pensávamos que estava a acontecer pode não o estar : Contra o bater dos tambores das previsões do desaparecimento das lojas físicas, as pessoas ainda as preferem – talvez não o número actual de lojas, mas mesmo assim as lojas físicas.
Se as consequências do Covid-19 sobre o comércio de retalho são perversamente positivas para alguém, esta é a oportunidade que a situação representa para as empresas financeiras abutres de investimento.
Como se quisesse sublinhar essa possibilidade, o Women’s Wear Daily noticiou na semana passada que a Amazon estava em conversações para adquirir a J.C. Penney. Ambas as empresas se recusaram a comentar, mas parece que o interesse do comércio electrónico pelo retalho físico não diminuiu.
***
Desde que tomou posse, o Presidente Donald Trump tem feito campanha para que as empresas americanas regressem às suas actividades de fabrico, naquilo a que os especialistas chamam uma “dissociação” entre as economias americana e chinesa. Até ao Covid-19, ele não teve muita sorte nesta frente – as grandes empresas tradicionalmente favorecem a globalização, já que uma presença em todo o lado pode significar um lucro mais forte. A maioria simplesmente recusava-se a assumir as apostas de Trump face à China.
Mas em entrevista à Fox News, no dia 14 de Maio, Trump renovou um apelo para que a Apple faça o iPhone inteiramente nos Estados Unidos. E ele levantou o espectro dramático de os EUA romperem “toda a relação” com Pequim.
Aquilo com que poderá contar a maior parte das grandes companhias americanas é com a sua própria sobrevivència
Essa pressão, combinada com as tarifas americanas e com o espectáculo do coronavírus que destrói as linhas de abastecimento das grandes empresas americanas, leva a que muitos CEO estejam agora rapidamente a definir estratégias para diversificar melhor as suas cadeias de abastecimento offshore, sugere David Dollar, um analista da Brookings Institution.
Empresas norte-americanas como a Apple e a Google estão a empreender, a contragosto, o que será um processo de um ano para encontrar e criar novas parcerias, de acordo com alguns relatórios já publicados. Mauro Guillén, um professor da Wharton que ensina uma nova disciplina Epidemics, Natural Disasters, and Geopolitics: Managing Global Business and Financial Uncertainty, diz que é provável que as empresas façam acordos com fontes de abastecimento em duplicado, aumentando os custos, mas resultando numa situação de compromisso: preços mais altos, mas uma cadeia de produção mais segura.
A maioria das maiores empresas americanas poderá contar é com a sua própria capacidade de sobrevivência. Durante anos, as tendências favoreceram as chamadas “super-estrelas”- as grandes empresas tecnológicas e outras mega-empresas que normalmente atraem os melhores talentos da investigação, compram as patentes mais valiosas e fazem os negócios mais vantajosos. A era Covid-19 está a consolidar o seu domínio, diz Tania Babina, uma professora da Universidade de Columbia.
Babina é co-autora de um novo artigo chamado “Crisis Innovation“, no qual descreve como, durante a Grande Depressão, as invenções mais importantes, independentemente do criador, acabaram também nas mãos das maiores empresas. Não de imediato, mas com o decorrer do tempo. Sob pressão, acontece que os futuros gigantes empresariais podem simplesmente ser versões mais rápidas e resistentes do que os atuais mastodontes.
Steve LeVine, Our Economy Was Just Blasted Years Into the Future-The crisis is compressing and accelerating trends that would have taken decades to play out, Publicado por Marker, sediado em Medium: https://marker.medium.com/our-economy-was-just-blasted-years-into-the-future-a591fbba2298, em 26 de Maio de 2020
Autor, Steve LeVine