FERNANDA REIS, um conto de Rachel Gutiérrez

FERNANDA REIS

um conto de Rachel Guttiérrez

 

                  “…Escuta-as um momento,                

                 A voz das águas, o rumor do vento…”

Mário Quintana

 

Sua aparição ocorreu no bairro do Leblon, numa noite de tempestade, quando a luz apagou e Camila, sozinha em seu apartamento da rua Gal….., ouviu, estremecendo, vigorosas batidas na porta. Notívaga e boêmia, costumava receber visitas tardias, mas àquela hora – já passava da meia-noite – entre relâmpagos e trovões! Só conseguiu murmurar um tímido Quem é quando um novo relâmpago revelou um vulto miúdo de mulher, no corredor envidraçado, no outro lado do olho-mágico.

– É a poeta Camila Bandeira? – Fernanda Reis, de Portugal.

– Um momento.

Camila tateava no escuro, onde diabos estaria a lanterna, mas ah! Já sei, há uma vela numa gaveta, esquisito, não é muito europeu chegar assim sem se anunciar. Quando finalmente abriu a porta, a outra já se desvencilhava da capa, que lhe entregou com o guarda-chuva, sorrindo acanhada.

Com seus lindos olhos mouros, que agora a vela iluminava, Fernanda disse descender, pelo lado materno, de Gonçalo Mendes Ramires, o que a situava na mais antiga fidalguia portuguesa e, pelo lado paterno, vinha a ser sobrinha bisneta de Ricardo Reis.

A luz voltou.

Fernanda Reis viera participar do Encontro Mulher e Literatura e acreditava que sua própria poesia tinha muitas afinidades com a de Camila, cujos versos começavam a fazer sucesso em Lisboa. Foi uma amizade instantânea. Amavam os mesmos poetas ingleses, os compositores franceses e, na pintura, os expressionistas alemães. Lá, Eça e Pessoa; cá, Rosa e Graciliano. Se Camila recitava um esquecido soneto da grande Cecília, Fernanda revidava com um poema menos conhecido da também grande Florbela. Para coroar tantas afinidades, eram ambas feministas, pacifistas e verdes.

O congresso acabou e a portuguesa, convidada a fazer uma série de conferências, instalou-se no apartamento da amiga brasileira. Certa noite, cansadas de ler e trabalhar, ligaram a TV e pegaram, no meio, a entrevista de um escritor que acabava de lançar um novo romance.

– É bem apessoado, charmoso. E fala bem! Disse Fernanda, enfática.

– Conheço-o. É casado e pai de filhos, comentou Camila como quem não quer nada quando detectou um brilho diferente no olhar da amiga. E justamente o que Camila menos gostava do romancista – sua voz aguda e esganiçada, Fernanda achou envolvente, sensual!

Avistaram-no, dias mais tarde, num camarote do Teatro Municipal, na noite de estreia de Tristão e Isolda enquanto ocupavam seus lugares mais modestos do balcão simples, ao som do segundo toque da campainha. No intervalo, Fernanda insistiu com Camila para que a apresentasse ao escritor, o que esta, tomada por um estranho pressentimento, só concedeu em fazer, relutando ainda, entre o 2º e o 3º atos. E não lhe passou desapercebido que no Liebestod, Fernanda já não olhava para o palco.

Duas semanas depois, abrindo a caixa do correio, Camila encontrou um cartão dirigido à Fernanda. Era dele! Respondia, com vagos elogios, ao pedido de opinião da poeta, que lhe enviara versos. Fernanda corou violentamente. E no cartão apenas gentil, descobriu entrelinhas que Camila não pôde enxergar. Iniciava-se assim o que a brasileira apelidou de “respondência” porque enquanto a portuguesa escrevia longas cartas com inteligentes comentários e minuciosas críticas sobre o trabalho do escritor, ele, alegando sempre falta de tempo, respondia com cartões ou bilhetes lacônicos, que acabavam com um invariável “cordial abraço”.

As conferências programadas foram feitas com o mais sério rigor europeu, e quando os mestrandos de Letras da P U C a chamaram, foi sobre o romantismo na literatura de seu país que Fernanda aceitou falar. Jamais fora tão brilhante, pensou Camila com inquieto carinho. No entanto, no mês de fevereiro, quando as duas amigas subiram para Petrópolis, para fugir do calor e do Carnaval, ou o interesse da portuguesa pelo “belo brasileiro” arrefecera ou permanecia em surdina, pois ela não voltou a tocar no assunto. A velha casa ampla e fresca, herdada por Camila, tinha os quartos decorados à moda bávara, com cortinas de renda e gerânios nas janelas, paredes forradas de madeira e altas estantes pesadas de livros. Foi então que Fernanda revelou que costumava alugar, no verão europeu, uma casita, menor que a da amiga, mas muito parecida, junto a um lago da Baviera, a poucos quilômetros de Munique. Deveriam visita-la no mês de julho, pois! Camila entusiasmou-se: revisitar Munique significava perambular até o Schwabing, o antigo bairro boêmio onde permanecia de pé a casa em que o jovem Rilke visitou Lou Andreas-Salomé pela primeira vez; rever os lagos com seus olmos, pinheiros e ciprestes. E os cisnes prateados! Estava decidido. Companheiras perfeitas, haveriam de produzir muito naquela atmosfera mágica.

O clima de Petrópolis convidava ao passeio e as amigas, ora separadas, ora juntas, davam longas e pensativas caminhadas. O que Camila não soube foi que Fernanda, quando sozinha, aproveitava para ir até o correio. No sábado de Carnaval, por volta das 3 da madrugada, a portuguesa despertou de um sonho vertiginoso em que voava nos braços do escritor: Estou apaixonada! Teve ímpetos de ir bater à porta da amiga, mas controlou-se. Saboreou o sonho e a delícia de continuar sonhando acordada, como uma adolescente. E já a caneta deslizava célere sobre o papel onde anotou rimas, versos desconexos, palavras e mais palavras, imagens de castelos e catedrais que comporiam, mais tarde, seu mais emocionado poema.

Fevereiro acabou. Março já avançava em meados de seus idos. Voltaram. Camila tinha aulas a dar e participou, com Fernanda, de alguns debates e seminários. Observou que a poesia da amiga não evocava mais a epopeia lusitana nem expressava a angústia metafísica à Álvaro de Campos que tanto as aproximara. Fernanda estava agora numa fase apenas lírica e intimista. E o escritor, que passara um mês na América Central, respondeu às três últimas cartas da poeta só no fim de maio, com mais um cartão. Mas desta vez convidava-a para almoçar.

O alvoroço de Fernanda foi enorme. Comprou roupas novas, um outro perfume, fez um corte mais moderno no cabelo.

– Você parece uma noiva! brincou Camila, sem ironia, preocupada.

O almoço foi como os cartões: cordial. Que Camila soubesse, não mais se encontraram. Mas certa noite, quase às vésperas da viagem, exclamou bem no estilo do romance que estava lendo na sala do Leblon: Esta paixão está se transformando num tumor maligno! pois vira, com o rabo do olho, Fernanda recortando uma fotografia do escritor, de um Jornal de Letras.

Chegou a hora do avião, que é muito rápido, mas não enquanto dura a infinita travessia. Para matar o tempo e o desconforto, tomaram um pilequinho. Fernanda enxugava discretas lágrimas e Camila, dormitando pensava: vai passar. Eram ambas descasadas, com algumas aventuras e uniões mais ou menos duradouras em suas respectivas bagagens. Afinal, Fernanda não era uma adolescente!

Estiveram primeiro em Dublin, na Irlanda mítica, onde 2000 mulheres se reuniam num Congresso, colorindo a milenar cidade com suas roupas africanas, indianas, misturadas às mais sóbrias europeias, todas brilhantes, porém, em seus ensaios e papers. Depois, passaram uns dias na majestosa Londres, extraordinariamente clara e alegre naquele verão. Paris, enlouquecida no 14 juillet, voltou a ser chuvosa mas não as desanimou: flanaram, encantadas, de bistrot em bistrot . De cada lugar, Fernanda enviava o mais belo cartão para o “seu” brasileiro.

Chegaram, finalmente, à casita da Baviera. Foram recebidas pela proprietária, a simpática Frau Hilde Becker, cujos sorrisos amenizavam o pesado dialeto. O lago, sereníssimo, margeado de juncos, vestia-se de prata ao fim da tarde. Compraram máquinas portáteis em Munique e, cada uma em seu quarto reiniciou, reanimada, a penosa luta com as palavras.

O tempo passou depressa. O último livro de Camila saía do prelo para as livrarias. Seus editores a chamaram para as noites de autógrafo em várias cidades do Brasil. Preparou as malas em agosto. Fernanda esperou o dia da partida da amiga para mostrar-lhe, com aparente displicência, uma carta do escritor, que interrompia “o agradável convívio epistolar” para consagrar-se inteiramente a um novo romance histórico. Com muitas desculpas, despedia-se “com um afetuoso abraço”. Os lindos olhos mouros de Fernanda estavam fundos e misteriosos.

De novo no avião, Camila bebeu todos os drinques que lhe ofereceram e mais alguns, que pagou separadamente. Custara-lhe a separação. Fernanda era agora uma irmã, um alter-ego. Para vencer o mau pressentimento que não a deixava dormir, rememorava os projetos da portuguesa: tinha a montagem de uma peça em Lisboa, palestras em Coimbra, um roteiro para um filme espanhol. Não. Nada de mau iria acontecer. Chegou ao Rio com uma tremenda ressaca.

Entre uma viagem e outra, a caixa do correio, no Leblon, só tinha de Fernanda os mais tristes versos, com muita saudade, sim, muito carinho e muita saudade. Mas em dezembro, com mãos trêmulas, Camila rasgou o envelope de uma longa carta da boa Frau Hilde Becker. Pôde ver como num filme: a noite chegou mais cedo, anunciando o inverno com seus olmos amarelecidos e os juncos, murchos, na beira do lago. Fernanda, com um pesado casaco e pesadas botas, foi entrando na água lentamente. A água cresceu, chegou aos joelhos, à cintura, ao peito dilacerado.

Antes de desaparecer no fundo do lago, Fernanda Reis olhou mais uma vez o céu cheio de estrelas, para onde subia, suave, a bruma.

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