Na sequência de textos anteriores sobre a problemática nuclear vejamos o seguinte:
1) O fornecimento de urânio enriquecido aos EUA
O 2021 Uranium Marketing Annual Report publicado pela US Energy Information Administration permite listar os seguintes fornecimentos de urânio natural aos grupos nucleares dos EUA por países de origem:
Cazaquistão – 35,4%, Canadá – 14,8%, Austrália – 14,4%, Rússia – 13,5%, Namíbia – 6,9%, EUA – 5,3%. O Uzbequistão foi fornecedor em 2021, mas o valor não aparece naquela publicação, pois respeita a uma única empresa fornecedora, e, nessa circunstância, ele não é publicado. Em 2020, consistiu em 8% do total dos EUA.
Confirma-se, pois, que os EUA dependem em cerca de 95% de urânio natural importado. Também se confirma que os EUA dependiam, em 2021, em mais de 50% de países da ex-União Soviética.
No que respeita ao urânio enriquecido utilizado por este país, de que não se tinha conseguido obter valores, daquela publicação retira-se:
Rússia – 28%, dos próprios EUA – 19%, Reino Unido – 17%, Alemanha – 13%, Países Baixos – 11%. Estes valores confirmam o que escrevi no texto “Estados Unidos e vários países europeus importam Urânio enriquecido da Rússia para as suas centrais nucleares“, com dados obtidos por outras vias. A diferença entre a % de urânio natural (13.5) e a % de urânio enriquecido (28) fornecidos pela Rússia, resulta de parte do urânio que provém doutros países ser enriquecido na Rússia.
Recordo que poucos países têm unidades industriais de enriquecimento de urânio, dado o muito alto investimento associado. O que nesta informação aparece como EUA, Reino Unido, Alemanha, Países Baixos corresponde a uma mesma empresa (URENCO) de que os três últimos países são associados, a qual dispõe de instalações fabris naqueles mesmos três países e nos EUA. Em França, existe uma fábrica Georges Besse 2, operada pela ORANO e participada pela URENCO, mas sendo este país, juntamente com os EUA, o Reino Unido e a Rússia (União Soviética), um dos que há mais anos trabalha neste domínio do enriquecimento na produção de armas nucleares. Sabemos que tem havido sempre promiscuidade entre o sector militar e o sector civil do nuclear.
Além dos países citados, a China também possui fábricas de enriquecimento, com uma capacidade inferior à Rússia, mas semelhante a França e à URENCO europeia.
Depois da escrita do texto atrás citado, soube, através de um técnico de uma empresa espanhola de energia eléctrica, que a Espanha está com dificuldades para deixar de ser dependente da Rússia na obtenção de urânio enriquecido (38,7% da Rússia, em 2020 e cerca de 1/3 em 2021).
De facto, embora haja neste momento um excesso de capacidade produtiva dos serviços de enriquecimento, sem a Rússia o mundo é deficitário, tornando difícil dela prescindir. Essa circunstância mantém os EUA e a União Europeia dependentes da Rússia neste domínio, mesmo a prazo. Por outro lado, o urânio natural proveniente da Rússia e fornecido aos EUA tem um preço inferior ao de outras origens em 34%, segundo a US Energy Information Administration. Se o custo de enriquecimento também for mais baixo ou mesmo igual, compreende-se a dificuldade das empresas de energia eléctrica espanholas. Por outro lado, os contratos têm a duração de 10 ou mais anos.
Recorde-se que a Ucrânia só em 24 de Junho se libertou da dependência russa neste domínio.
2) A ocupação pela Rússia da central ucraniana de Zapojijia tem continuado a pôr questões.
a)Zapojijia A
No meu texto intitulado “A guerra na Ucrânia, a comunicação social e as centrais nucleares” informava que, estando um grupo nuclear totalmente envolvido por um invólucro (contentor) em betão pré-esforçado com 1,3-15 metros, uma “pele” de aço forrando este e pela cuba de aço com cerca de 20-30 cm de espessura, as armas utilizadas nos combates que se verificavam junto da central não seriam capazes de furar esses componentes de modo a atingir o núcleo do reactor e libertar para o exterior os produtos altamente radioactivos através de uma explosão – a nossa comunicação social tem falado em granadas de 220 mm utilizadas nesses combates, mas tais dimensões não existem, o máximo das granadas da Ucrânia e da Rússia são 152 e 155 mm . Apenas explosivos e mísseis muito potentes o poderiam fazer e isso não é crível que os russos utilizem contra a central, que controlam, pois os produtos radioactivos resultantes de uma grande explosão iriam atingir a zona controlada pela Rússia e, talvez, a própria Rússia. E os ucranianos também não, porque o país seria atingido e a sua população ainda não terá perdido a memória do que aconteceu em Chernobyl.
Segundo informam fontes independentes os russos terão instalado no interior da central, que não no interior do contentor, equipamento militar, procurando assim evitar que as forças ucranianas utilizem meios poderosos de ataque, tal como a Amnistia Internacional denunciou que a Ucrânia estava a instalar equipamento militar junto ou mesmo no interior de escolas, hospitais e áreas residenciais – embora as situações não sejam totalmente comparáveis e não seja aceitável usar-se uma central nuclear como escudo. Essa prática ucraniana denunciada pela Amnistia e quase ignorada pela nossa comunicação social, foi utilizada na guerra da Síria, por exemplo, pelos contingentes do Estado Islâmico (e em outras guerras outros actores). É provável que os meios de combate que os ucranianos utilizam na zona não conseguissem furar os invólucros citados, mas ficariam em maus lençóis perante a opinião pública mundial depois de terem feito tanto alarido quando a Rússia ocupou a central, se utilizassem meios muito mais poderosos.
Várias entidades, a Agência Internacional de Energia Atómica e o Secretário-Geral das Nações Unidas têm alertado para o perigo de acções militares junto da central. Pode haver algum exagero com intenção política, mas a preocupação resulta do reconhecimento que a designada “utilização pacífica da energia nuclear” é perigosa, fazendo que não se compreenda a insistência de alguns em retomar os programas nucleares interrompidos há muito, com o pretexto das alterações climáticas. Ou o prolongamento da vida de grupos nucleares que já ultrapassaram a sua validade, com o pretexto da necessidade de reduzir o uso de gás natural. Existe nas suas posições uma manifesta contradição.
Algumas dessas entidades têm chamado a atenção que a ocupação militar da central pode induzir nos trabalhadores, em especial nos que estão na sala de comando, um nervosismo que os leve a cometer erros fatais que desencadeiem um acidente grave. Os manuais de instrução prevêm várias situações a que pode ser necessário dar resposta e um trabalhador naquelas salas está sempre acompanhado por outros, vigiando-se mutuamente. No entanto, é legítimo pensar que um erro humano não detectado a tempo ou já de resultado incontrolável pode sempre acontecer. E já aconteceram várias situações que conduziram a acidentes, o mais grave dos quais se verificou em Chernobyl. Mas esta preocupação mostra, de novo, que quem defende a energia nuclear não confia assim tanto nela. De facto, trata-se de uma tecnologia perigosa e ainda com situações imprevisíveis, apesar da grande experiência acumulada. Se um erro humano pode desencadear um acidente grave apesar de todos os procedimentos estarem nos manuais de instrução, então um trabalhador afectado psicologicamente, mesmo numa central em ambiente tranquilo, poderá desencadear um acidente grave ou muito grave.
Certamente que os russos, que têm grande experiência na construção (recordar que os grupos ucranianos são de construção soviética) e condução de grupos nucleares, estão a substituir o pessoal ucraniano por pessoal da sua confiança. Todavia, não deixa de ser estranho que a empresa ucraniana Energoatom continue a operar a central .
b)Zapojijia B
Muitos meios de comunicação social e organizações várias afirmam que os russos estão a bombardear a central de Zaporijia. Ora se é verdade que a estão a ocupar, não é crível que a bombardeiem, pois dela necessitam e estariam a bombardear-se a si mesmos..
É interessante constatar que tropas russas ocuparam a central termoeléctrica de Novoluanske, a mina de carvão de Butkiva e uma albufeira perto de Kherson.
A barragem da albufeira, tem como os contentores dos grupos nucleares, paredes de betão de espessura semelhante a um grupo nuclear, razão pela qual também não é com equipamento militar de combate normal que poderá ser destruída. Igualmente, só com explosivos muito poderosos ou mísseis. No entanto, se for bombardeada e destruída, um desastre se verificaria, com a água libertada varrendo tudo na sua frente. Todavia, só a central nuclear tem originado receios, mostrando que a energia nuclear é indesejável e causa temor na opinião pública.
Julgo que ao ocuparem tais equipamentos (e outros de que não se falará) os russos estão a garantir o funcionamento futuro da zona da Ucrânia que querem controlar. E a energia eléctrica é fundamental. Mas sendo as três centrais referidas importantes no contexto ucraniano (Zaporijia, Novoluanske e a barragem) podem pretender em dada altura, desligando-as todas, deitar abaixo a rede eléctrica ucraniana, deixando os consumidores e as indústrias sem energia, embora a zona por si controlada também fosse afectada. A menos que liguem esta zona à rede russa, o que várias notícias indiciam que estão a fazer. Importa dizer que uma rede eléctrica só se mantém operacional se um certo nível de potência nela for injectada. Se o nível baixa muito a rede vai abaixo e deixa o país às escuras. Isso já aconteceu em Portugal há alguns anos.
Quando se deu o acidente de Chernobyl, pretenderam os defensores do nuclear que tal se deveu a um deficiente projecto dos reactores., procurando, assim, diferenciar os dos seus países. Ora aconteceu que os técnicos soviéticos resolveram fazer um ensaio que nunca tinha sido realizado, testando o reactor. Terá sido cometido um erro humano e o reactor entrou num processo de descontrolo completo, apesar das várias tentativas para controlar a situação, as quais falharam, mostrando que, quando as ocorrências estão dentro do que é conhecido, ainda se pode controlar a situação, embora nem sempre sem evitar acidentes, mas quando se depara com o desconhecido nunca se sabe onde se vai parar.
Também na altura se argumentou que os técnicos soviéticos eram incompetentes. Mas, depois, verificou-se Fukushima, num país de tecnologias e técnicos muito avançados. Mais uma vez o problema estava na tecnologia nuclear!
Como em todos os grupos nucleares em todo o mundo, não existindo local central para armazenar os resíduos altamente radioactivos resultantes da fissão nuclear, uma vez retirados anualmente ou de 1,5 em 1,5 ano, os elementos de combustível são armazenados através de gruas em piscinas de arrefecimento em instalações que se situam na parte superior do reactor.
Nalgumas centrais com muitos anos de vida, a capacidade máxima dessas instalações já foi atingida. Então constroem-se, dentro do perímetro da central, mas fora do contentor de betão de qualquer grupo, instalações para armazenar esses resíduos, que, recorda-se, têm um tempo de semivida de 20.000-30.000 anos.
Na central nuclear de Almaraz com dois grupos, um dos quais com 41 anos e o outro 39, foi construído o que se designou por Armazém Temporário Individualizado (ATI) em 2016-2018, apresentado como destinado ao armazenamento provisório dos resíduos da central e, em 2021, foi decidido construir outro para armazenamento provisório dos resíduos de todas as centrais espanholas, enquanto não se construir um local de armazenamento definitivo. Ainda não existe qualquer local deste tipo em todo o mundo e continua a estudar-se o assunto há décadas.
Recorda-se que este ATI está Instalado junto à albufeira de Arrocampo, a qual lança água no Rio Tejo.
Não se conhece bem o desenho destas instalações – como acontece frequentemente na energia nuclear, domínio altamente opaco – mas parece adivinhar-se, num desenho divulgado, que a espessura das suas paredes é bastante inferior à do contentor.
Se assim for, e se em Zaporijia existir uma instalação deste tipo (recordar que os seus primeiros grupos têm 36 e 37 anos) já os combates junto dela podem constituir grande perigo, embora de efeito localizado e sem comparação com Chernobyl ou Fukushima.
Tem sido referido ultimamente que a central só tem 2 reactores em serviço (são 6), que foram desligados da rede há uns dias, mantendo-se os mesmos a trabalhar, isto é, continuando a reacção de fissão nuclear, o que constitui grave perigo, pois deixando de se fazer o arrefecimento dos núcleos através das bombas de água que estão ligadas à mesma rede, pode dar-se a fusão dos núcleos, acidente muito grave e que se verificou em Chernobyl e Fukushima e, parcialmente, em Three Mile Island, nos EUA.
Em primeiro lugar, os grupos desligados da rede não podem continuar a trabalhar, pois a energia eléctrica produzida não teria escoamento. O que deve ter acontecido é que os dois reactores foram parados, isto é, a reacção de fissão cessou, baixando-se as chamadas barras de controlo. Todavia, o núcleo continua quente, sem aumentar a temperatura, mas com necessidade de ser arrefecido. Se não for possível às bombas de circulação da água de arrefecimento, retirarem energia da própria central, podem ir buscá-la à central termoeléctrica que está próxima, ou, 3ª hipótese (mostrando as redundâncias existentes nestas centrais), podem ser accionadas bombas a diesel. Portanto, a situação não é de maneira nenhuma tão catastrófica como se pretende pintar. Em Fukushima as bombas falharam porque foram destruídas pelo maremoto.
Os russos vêm insistindo com a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) para fazer a inspecção da central, ao que esta se tem oposto. Só agora, por interferência da ONU, a visita de uma delegação se realizou. As imagens noticiosas mostram um elemento dessa delegação, que deve ser o seu chefe, a cumprimentar Zelenski com grande entusiasmo e sorrisos mútuos, o que contrasta com a imagem final da reunião de Guterres, Erdogan e Zelenski de caras fechadas. Este entusiasmo não é de bom augúrio!
A Agência Internacional de Energia Atómica faz visitas periódicas a todas as instalações nucleares do mundo (até no Irão o tem feito), excepto quando não é autorizada, procedendo ao inventário do combustível nuclear e dos resíduos, de modo a precaver o seu desvio para fins militares.