A estória, talvez uma lenda, aqui resumida, tirei-a de um dos escritos do filósofo e escritor Santiago Alba Rico; estória que conta a razão pela qual Jerónimo, o tradutor da Vulgata, na altura um monge eremita a viver numa comunidade no deserto, aparece acompanho por um leão, em todos os quadros que o representam.
Um dia, Jerónimo, numa das caminhadas que fazia nas areias do deserto, deu de caras com um leão que, a rugir bem alto, se aproximava dele, como se fosse para o atacar. Mas não, diz a lenda, não era a fome, mas a dor, pois o animal arrastava uma pata devido a um espinho que lá se tinha cravado. Jerónimo tirou-o com cuidado e o leão agradecido, seguiu atrás dele até à pequena comunidade que o monge dirigia.
O espanto e o medo levaram os outros monges a reclamar e, muito mais, quando além de dar abrigo ao leão na comunidade, o encarregou depois, de cuidar dos únicos recursos que eles possuíam, um burro e um cordeiro.
Assim, todos os dias –e contra a opinião e vontade dos outros monges– o leão levava os dois a pastar, até algum recanto de erva e trazia-os de volta à tarde, com os monges a dizer que algum dia o leão cederia à natureza e adeus à riqueza da comunidade. Passaram alguns anos e tudo corria bem, até que um dia os ladrões, aproveitando a fraqueza do leão, devido à idade, lhe roubaram o burro e o cordeiro.
No dia seguinte, de manhazinha, o leão também desapareceu e logo os outros monges atacaram Jerónimo, mas todos se calaram quando viram o leão regressar ao princípio da noite, cena que se repetiu, durante mais uns tempos, até que um dia, no alto de uma colina, o leão viu um grupo de homens, montando camelos e a arrastar um burro. Reconheceu o animal e, a rugir, foi até aos homens que apavorados desataram a fugir, abandonando os camelos, o burro e a carga.
O leão conduziu os camelos e o burro para a comunidade e os monges logo chamaram Jerónimo que só lhes pediu, ‘Tirem a carga aos camelos e ao burro, e esperam para ver o que Deus tinha em mente quando nos deu o leão’.
Quando os mercadores voltaram para reaver as suas coisas, pediram perdão pelo roubo e logo deixaram metade do óleo que levavam e alguns alimentos, a promessa de nada lhes faltar durante um ano e que filhos e netos seriam instruídos para nunca atacarem naquela comunidade –afinal seria isso o que Deus teria em mente quando levou o leão até Jerónimo–
Santiago Alba Rico escreve ainda que Jerónimo reformou depois o leão, deu-lhe abrigo debaixo da secretária, onde havia uma caveira como pisa papeis, enquanto ele com uma pena alta, escrevia em latim, a tradução da Bíblia.
Mas não deixa de chamar a atenção para as mensagens que esta estória carrega, dos espinhos que nos atravancam a vida, dos picos e das puas que enfrentamos todos os dias, desde o vergonhoso arame farpado a ‘legalizar’ tanta fronteira, as que esta globalização neoliberal, está a criar, desde o racismo às desigualdades e à fome.
Outra lição que daqui se pode tirar é a quantidade de espinhos que carregamos dentro e que só os amigos nos ajudam a tirar; Alba Rico escreve ainda, a terminar a estranha e bela estória de S. Jerónimo, ‘Uma rosa é um espinho, uma ferida e uma rosa. Sabemos que já levamos dentro pelo menos quatro: o amor, a vida, a morte, a realidade. Nesta mudança feroz de rosas vermelhas, passamos o tempo todo a cravar e a tirar espinhos. Por isso, amor, tira-me por favor, todos os espinhos que possas, menos esse que me acorrenta dolorosamente ao teu alívio’.
António M. Oliveira
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