Apresentação da obra «QUEM MANDA?…» – NACIONAL-SALAZARISMO E ESTADO NOVO, de Fernando Pereira Marques por Luís Farinha

Apresentação da obra «QUEM MANDA?…» – NACIONAL-SALAZARISMO E ESTADO NOVO, de Fernando Pereira Marques

por Luís Farinha

 

«QUEM MANDA?…»

Fernando Pereira Marques

A «Utopia Reacionária», numa feliz expressão do autor, é o que ocupa as quase 600 páginas dos dois volumes já publicados, sob o título genérico “Quem manda?…”. Neste segundo volume, agora dado à estampa com o subtítulo “Nacional-Salazarismo e Estado Novo” é dos apoios institucionais à Ditadura que o autor trata – o “pilar teocrático” e o “pilar castrense”.

Seguem algumas palavras – breves, para não maçar -, sobre a Obra, o Autor, as considerações que apresenta sobre os dois pilares que sustentaram a “longa noite” e as conclusões que Pereira Marques elegeu como fundamentais para fazer deste um volume indispensável à economia geral da obra e uma antecâmara da última parte que aí vem.

A OBRA –

Trata-se de uma obra de que ainda sairá um terceiro volume. No primeiro volume explica-se como funciona o Estado Novo – um sistema jurídico-burocrático com um desígnio claro, embora escondido, a despolitização dos portuguese, uma “Utopia Reacionária”, na expressão do autor. A Constituição, as eleições realizadas com regularidade sagrada, a Assembleia Nacional dos representantes eleitos (?) funcionaram sempre como mera fachada da “democracia orgânica» que a Ditadura implantou para durar por meio século. Uma coisa natural para a esmagadora maioria do povo português e até perfeita para alguns arautos da intelectualidade portuguesa reacionária e dos seus congéneres europeus. No segundo volume, Pereira Marques questiona a forma como se adequam mutuamente o país e o regime e as razões que podem explicar a sua duração, por quase cinco décadas. Quem o apoia? E a resposta não a encontra o autor na habilidade e na virulência (violência) da Ditadura (ou só aí). Se violência houve sobre a cidadania livre, ela é mais profunda do que a dos “safanões” da polícia, é orgânica e estrutural, como considera Eduardo Lourenço, um autor chamado a dar o seu contributo neste volume. A violência é “orgânica” e sustenta-se sobre os dois pilares mais fortes da sociedade, autoritária e conservadora: o pilar teocrático e o pilar castrense. A terceira parte, diz o autor que será sobre a sociedade, assunto já apresentado nos dois primeiros volumes, mas que ali terá um tratamento mais específico e completo.

O AUTOR

A natureza da Obra é a de ser um trabalho de sociologia histórica. E também de sociologia política, como convém ao trabalho de um sociólogo. Estamos a falar de um regime político situado num tempo longo – meio século – , com manifestas fases evolutivas. A abordagem sociológica privilegia uma perspetiva estrutural, onde as “permanências” se impõem ao devir temporal, entrecortado por sobressaltos. A História aqui estaria mais interessada em antever as “ruturas”, a “queda iminente” do regime, os “anos decisivos” – tudo expressões ingénuas (?) dos historiadores para assinalar o que muda, o que vai mudando, embora lentamente. Quando, na verdade, se acumulam as permanências. E nisto tem razão o sociólogo, mesmo que o seu “presente” se situe num passado aparentemente morto. Não é verdade que só correu uma rutura em 1974? Também é verdade que foram ensaiadas várias ruturas e que o “25 de Abril” nunca teria acontecido se não tivessem ocorrido mudanças significativas em períodos anteriores. A exemplo, vale a pena lembrar as diferenças entre a visão inquieta do padre Abel Varzim (anos 40) e o “progressismo” de D. António, Bispo do Porto (anos 60). O sociólogo terá tendência para assimilar estes dois momentos, como a expressão do pensamento católico heterodoxo, vinculado à raiz cristiânica, embora em rutura com a matriz dominante. Mas este trabalho, sendo metodologicamente de abordagem sociológica, não ignora as mudanças que a sociologia histórica sabe ter que incluir no seu trabalho. Não há sociologia sem perspetiva histórica assim como não há história sem perspetiva sociológica? Parece ser uma verdade incontestável, a que esta obra de Pereira Marques faz jus.

AS TESES

À pergunta sobre se o regime foi obra do talento de meia dúzia de mal-intencionados (ou de um homem?) que, por astúcia e malvadez, com recurso à violência e ao poder ilegítimo, se impuseram durante cinquenta anos a uma nação completa, o autor tem, muito naturalmente, uma resposta negativa. Não ignora a habilidade e o pragmatismo do conservadorismo e do reacionarismo da “Escola de Coimbra” – de que Salazar é um dos mais abonados arautos  e atores -, mas segue em frente, procurando outras razões para tão longa permanência política. Normalmente, como bem avisa Fernando Pereira Marques, a ascensão dos extremismos políticos antidemocráticos é que é consequência de um sentimento popular de cansaço e de descrença das regras do jogo democrático, seja por falência do Estado de direito, por eleições fraudulentas ou pela ausência de liberdade de expressão e de associação.

A este título, o autor, não ignorando o papel das oposições políticas ao regime, de algum modo o menoriza (designadamente o papel da oposição comunista) que, apesar do sacrifício da clandestinidade, da repressão e da morte, não logrou inverter o curso dos acontecimentos. De igual modo secundariza o papel da violência e da repressão, embora não o ignore nem o esconda. Reconhece nessa violência um forte fator dissuasor e desmobilizador. Também o Ditador lhe surge com uma dimensão mais “humana” e vulgar – o de alguém doutrinariamente conservador e muito pragmaticamente empenhado no “regresso” do país ao “bom caminho”.

Pelo contrário, valoriza o papel central dos bastiões tradicionais do poder no país – a Igreja Católica e as Forças Armadas. São elas que vão “inventar” Salazar, sendo este um fiel instrumento dos seus desígnios maioritariamente conservadores e anti-democráticos. Num país castigado pela Guerra e amedrontado com o vislumbre da Modernidade anunciada pela República, não foi difícil retomar o curso tradicional dos acontecimentos. Mesmo que para isso fosse necessário estender uma rede totalitária sobre as instituições e as pessoas. Um totalitarismo político ao serviço do Nacional-Salazarismo e do conservadorismo nacionalista. A contra-revolução conservadora assente em dois pilares: o pilar teocrático e o pilar castrense.

Este é o cerne do livro. A análise do fenómeno da “recristianização” do país, ocorrida sob a égide de Salazar e de Cerejeira a partir dos anos 30, foi o início de um processo de travagem e de retrocesso, com efeitos demolidores sobre a sociedade, mesmo sobre aquela que partilhava já valores modernos. Para esses setores, a “política do espírito” impôs-lhes uma modernidade domesticada – também normalizadora dos novos cânones. Através de mecanismos tão eficazes como a “presença da Igreja no sistema de ensino”, o “associativismo católico”, “a teocratização da Legião Portuguesa, da Mocidade Portuguesa, da OMEN” (Organização de Mulheres), a “sacralização dos atos públicos”, o “controlo dos media”, a Igreja Católica retomou o poder político que antes detinha sobre as instituições e a sociedade. Nesta medida, a Igreja surge para Pereira Marques como o “intelectual coletivo”, gramsciano.

Em segundo lugar, o autor analisa o papel do Exército como suporte institucional e político indispensável, especialmente a partir das reformas político-militares de 1937-1938 que, mais do que permitir a condução política do Exército por Salazar, consolidaram as funções centrais de umas Forças Armadas num regime ditatorial – o de suporte indispensável da Ditadura. O que aconteceu em 1937-1938 foi o triunfo do Exército conservador e o afastamento definitivo dos democratas ainda existentes na instituição militar, reservando para os primeiros os cargos de chefia e a condução política conservadora e autoritária. De facto, o Exército que chamou Salazar de Coimbra e o manteve incólume no poder por quatro décadas, foi sempre uma instituição com que a Ditadura contou para impor a “utopia reacionária”. Os militares desempenharam um papel fulcral na nova burocracia do Estado Ditatorial (como censores, administradores, governadores, políticos em cargos variados). E também em funções estritamente militares, ao serviço da política indiscutida do Estado ditatorial. Um braço armado capaz de contrariar a reposição do Estado Democrático em múltiplos momentos: na implantação da Ditadura Militar, na reorganização política do pós-guerra ou nos momentos decisivos da reorganização e defesa do Império. Umas Forças Armadas recapturadas através das ideias de “Ressurgimento”, de “Rearmamento”, de “Dignificação” e de “Ordem”.

CONCLUSÕES

Este é, pois, um livro que evidencia:

  1. A função da Igreja e das Forças Armadas na implantação de um regime político conservador – uma “utopia reacionária”;

  2. O papel de Salazar na implantação de um regime totalitário, no sentido da sua personificação como Chefe e do controlo total sobre a sociedade civil, manietada e despolitizada;

  3. A inexistência dessa sociedade civil, por natureza, por estado de desenvolvimento, mas também a reconstrução de uma “utopia reacionária”, em luta contra o tempo da modernidade (democrática, aberta e internacionalista);

  4. A lenta reação da sociedade e a sua adequação ao tempo depois da II Guerra Mundial, mas principalmente depois dos anos 60. Uma análise que fica patente, muito especialmente, no “progressismo” de alguns católicos;

  5. O pragmatismo político do Ditador, obrigado a abrir mão do isolacionismo depois da II Guerra Mundial. Mas não o suficiente para permitir a europeização da sociedade. Apenas o suficiente para não deixar cair o regime. Os exemplos da entrada na NATO, na ONU e na EFTA ao mesmo tempo que se negava perentoriamente qualquer solução negociada para as colónias, definem da melhor maneira o que foi o Salazarismo.

UMA ANÁLISE POUCO COMUM

A historiografia (e a sociologia) tem valorizado (e bem) o papel dos “Capitães de Abril” no derrube da Ditadura e na resolução do problema da Guerra Colonial. De igual modo, as mesmas disciplinas têm colocado na primeira linha da investigação a luta de alguns católicos (a que comumente se dá o nome de “progressistas”) na luta pela Paz, pelo fim da guerra e pela dignificação das populações colonizadas. Estas linhas de investigação – associadas a um debate científico pouco intenso e restringido a minorias – passam para o debate público (também ele encapelado por opinion makers isolados no seu casulo) numa dimensão porventura desmesurada. Sem esquecer nenhuma dessas dimensões – a dos “Militares de Abril” e da sua responsabilidade e coragem no derrube da Ditadura e dos “católicos progressistas” na defesa da Paz –, há igualmente que não esquecer (nem ignorar) o papel das duas instituições na implantação e manutenção do regime por quase meio século. Sem esse recurso, a explicação sobre a duração da Ditadura fica sem ser dada. Ou então, muito pior ainda, fica dependente da genialidade de Salazar.  Abundam por aí as obras sobre a genialidade de Salazar…umas a demonizá-lo, outras a exaltá-lo. Todas incapazes de explicar a realidade.

Vale ainda a pena valorizar um aspeto, aparentemente secundário, mas que não o é. O autor fornece abundantes e importantes informações num campo de NOTAS vasto. De uma importância enorme para a compreensão do tema. Mas notas colocadas no final, sem perturbar a leitura do texto corrido, mostrando assim ser uma boa solução editorial.

Apresentação feita na Feira do Livro de Lisboa, 9 de setembro de 2022

Luís Farinha

(Historiador, Investigador integrado no IHC da Universidade Nova de Lisboa, antigo director do Museu da Resistência e da Liberdade/Aljube)

-X-

A Administração do blogue agradece ao Professor Luís Farinha o ter-nos autorizado a publicação da apresentação que fez, na Feira do Livro em Lisboa, do 2.º volume da obra de Fernando Pereira Marques, «Quem Manda?…».
O nosso obrigado também ao Fernando Pereira Marques, que continuamos a contar como um dos nossos colaboradores.
A Administração de «aviagemdosargonautas.net»

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