Seleção e tradução de Francisco Tavares
8 min de leitura
A falsa ética da ESG (meio ambiente, social e governação)
O homem de Davos tem uma nova ideia fixa
Publicado por em 24 de Janeiro de 2023 (original aqui)

Este ano em Davos, três letras estavam na ponta da língua de todas as pessoas, talvez o único acrónimo pronunciado com igual alegria por Greta Thunberg e pelo bilionário e CEO da BlackRock, Larry Fink. Essas letras são ESG, ou “Environment, Social and Governance” (meio ambiente, social e governação). Enquanto no ano passado, o mundo foi dominado pelo diktat da política de saúde pública relacionada com o Covid, hoje o acrónimo ESG eclipsou praticamente todos os outros quadros políticos, suscitando enorme controvérsia na sua esteira.
Tal como acontece com muitas destas super-políticas – incluindo a agora moribunda “globalização”, para a qual Davos 2023 serviu de velório de cinco dias, com urna aberta – as respostas relativas ao ESG foram dadas de cima antes de os mais afectados por ele alguma vez terem feito as perguntas. Estas são as noções básicas: o que é o ESG? O que é que significa para nós? E, guiado como está pela mão muito visível da elite de Davos, para onde nos leva?
O movimento ESG-Meio Ambiente, Social e Governação nasceu de uma abordagem dos finais do século XX que utilizava o capital como um meio de luta por causas sociais e morais. O boicote à África do Sul do Apartheid é frequentemente citado como um caso marcante, com empresas a retirarem-se do país em resposta às políticas brutais e racistas do regime – um antecessor da abordagem actual à Rússia. Mas o momento crítico para o ESG surgiu em 2004, quando uma iniciativa da ONU chamada Global Compact divulgou um relatório intitulado “Who Cares Wins“. Emitido por alguns dos maiores (e financeiramente mais agressivos) bancos do mundo, o relatório lançou as bases para a forma como o mundo financeiro pode “integrar questões ambientais, sociais e de governação na análise, gestão de activos e corretagem de títulos”.
Desde então, o ecossistema capitalista global tem sido capaz de “integrar” as questões do ESG até um ponto com que os fundadores do movimento não poderiam ter sonhado. Actualmente, o ESG é mais uma promessa de legitimidade empresarial do que um quadro de orientações éticas, com algumas das empresas mais corruptas, poluentes e abusivas do mundo a assumirem o padrão verde do movimento com uma alacridade que por vezes é enervante.
Hoje em dia, empresas desde a gigante do tabaco Philip Morris à BP – cuja plataforma Deepwater Horizon despejou 200 milhões de galões de petróleo no Golfo do México – não se limitam a apregoar os seus méritos em matéria de ESG, mas dedicam milhões em recursos cruciais ao empreendimento, criando departamentos empresariais inteiros para o efeito. Até mesmo a Gazprom, o gigante petrolífero russo que alimenta os cofres de Putin com petro-dólares, apresenta um impressionante “Relatório de Sustentabilidade” que regista o compromisso da empresa com o ESG. “Como empresa de energia globalmente significativa, a Gazprom conduz sempre os negócios de uma forma ponderada e responsável”, escreve o presidente da Gazprom, Alexey Miller, na mensagem introdutória do relatório.
Em nenhuma parte isto é mais evidente do que na conferência anual do Fórum Económico Mundial em Davos, ao qual assisti este ano não como membro do FEM, mas como convidado de um grupo de reflexão sediado em Nova Iorque. Em Davos, até mesmo pequenos peixes como eu podiam ouvir os murmúrios babados do ESG a correr através das correntes de poder. Estava em todo o lado – em todas as reuniões, em todos os jantares com vinho, e em cada trampolim através das ruas cobertas de neve em direcção ao evento seguinte.
Como muitas ideologias globais, a ESG tem um núcleo de verdade. Após testemunhar as depredações de sucessivos escândalos financeiros, a exploração de pessoas vulneráveis em fábricas clandestinas e a destruição maciça de ambientes naturais, é difícil argumentar que o capitalismo não precisa de um sistema mais amplo de controlos e contrapesos para controlar a tendência perene da humanidade para o excesso. Esta ideia tornou-se atrozmente evidente durante o início dos anos 2000, quando o neoliberalismo galopou por todo o mundo, explorando a mão-de-obra, sugando recursos, e geralmente semeando o caos económico, incluindo na Rússia cuja economia foi “privatizada” pelos cabeças de cartaz e favoritos do clube mundial de fãs do ESG, tais como o antigo secretário do Tesouro dos EUA, Larry Summers. Das cinzas dos “maus anos noventa” do neoliberalismo, surgiu um novo impulso para o capitalismo pôr em ordem os seus actos.
Mas a questão central que gira em torno do ESG é quem, exactamente, deve fazer a limpeza? O relatório “Who Cares Wins” foi publicado em 2004, poucos meses após o escândalo “Petróleo por alimentos” ter atingido a ONU, que viu milhares de milhões em financiamento humanitário ao Iraque serem desviados, utilizando a ONU como a (muito reutilizável) palhinha financeira. O escândalo foi tão gigantesco que atraiu para o Secretário-Geral da ONU, fundador do Pacto Global da ONU, a burocracia fundadora do movimento ESG. Na frente social, a ONU também foi confrontada com alegações horríveis de que alguns dos seus agentes de manutenção da paz dirigiam redes de sexo infantil e de tráfico sexual precisamente nos locais que deviam proteger.
Neste sentido, o ESG pode parecer mais uma treta; uma operação de relações públicas levadas ao paroxismo. Mas mesmo quando não está ligado a um escândalo financeiro que mancha a reputação, é precisamente o envolvimento de organizações globais supra-democráticas como a ONU e o FEM – que não são responsáveis perante nenhum círculo eleitoral – que põe as pessoas nervosas. Para aqueles que não conseguem gastar 250.000 dólares numa conferência de cinco dias, o ESG pode parecer uma rede de políticas interligadas que nunca são submetidas a uma votação democrática.
E os defensores corporativos e governamentais da ESG parecem estar a optimizá-la com um efeito surpreendente. Da mesma forma que o poder global organizado foi capaz de eludir o eleitorado da África do Sul do Apartheid, degradando o país através do poder económico até o governo se tornar insustentável, a mesma elite internacional está a aprender a fazer o mesmo ao nível do indivíduo. Assim, quando os camionistas canadianos protestaram em resposta a mandatos de vacina, não foi necessária uma acção legal para quebrar o protesto, mas sim uma acção económica concertada que simplesmente tornou a vida dos camionistas insustentável.
Enquanto os protestos dos camionistas pareciam alinhar-se no eixo do nacionalismo versus globalismo, a resposta – incluindo o encerramento de algumas das suas contas bancárias – foi uma jogada do manual ESG. Quando surgiu a questão dos mandatos de vacinas surgia nos EUA, o olhar da aplicação da lei passou do governo para os actores empresariais. Michael Peregrine, um advogado corporativo especializado em governação, escreveu na Forbes que: “se o governo, incluindo a liderança estatal e local, não puder ou não quiser adoptar tais medidas [como mandatos de vacina], o fardo pode recair sobre a empresa privada para intervir, como uma questão de responsabilidade social”.
Embora haja uma forte crítica ao capitalismo de mercado associado ao ESG, há também um eco ténue do seu princípio fundamental: que o capital deve reinar supremo. A diferença é que enquanto para o neoliberalismo, o capital era o fim a alcançar à custa de (quase) qualquer meio, para a ESG, o capital é o meio que se justifica por um fim moralista. Neste sentido, o termo mais destacado, é o da “governação”. No contexto do ESG, a governação é sobre a forma como as empresas são geridas. A noção aqui é simples: Enron – uma empresa americana de energia que praticava clientelismo e compadrio enquanto cometia fraude e acabou por falir – é a definição de mau; BlackRock – que impulsiona o lucro, uma vez que se compromete a investir apenas em causas acreditadas pela ESG – é boa.
Uma tal divisão maniqueísta, no entanto, obscurece o facto de que, por mais requintada que seja a fachada, as corporações não podem desempenhar o papel de especialista em ética, de sacerdote ou de profeta, e quanto mais tentam mais corremos o risco de corromper esses papéis essenciais. Não só isso, mas também põe em causa a avaliação das empresas a quem foi confiada uma responsabilidade fiduciária para com as suas partes interessadas, incluindo os empregados. “As contradições e a aparente hipocrisia das acções da BlackRock politizaram o debate da ESG”, escreveu Bluebell Capital Partners, um investidor activista da BlackRock, numa carta mordaz. “Os danos de reputação de ser arrastado para este debate politicamente carregado, na nossa opinião, são muito significativos porque põem em causa a independência da BlackRock como gestor de activos”. Bluebell observou que, apesar da sua grandeza retórica, a BlackRock ainda ganha muito dinheiro com os combustíveis fósseis, levantando questões legítimas sobre o “G” – a governação – em acção na mais ferverosa apoiante empresarial mundial da ESG.
A uma escala global, o termo fala muito mais daquilo que muitos consideram que o ESG tem como seu verdadeiro objectivo. Como o FEM o coloca de forma útil: “A governação global é um meio de gerir questões que atravessam as fronteiras nacionais – seja uma guerra, uma pandemia, uma crise financeira, alterações climáticas, ou uma disputa geoeconómica”. Neste sentido, a ESG preencheu rapidamente o vazio deixado pela morte da globalização. Se esta última era um imperativo para espalhar lateralmente o capitalismo pelo mundo, o ESG pode ser visto como um esforço para consolidar verticalmente o poder acumulado pelo globalismo, que está agora disponível – por um preço, isto é – para pesar nas nossas preocupações éticas, morais, e epistemológicas mais prementes. É o capitalismo não na sua vida, mas como a sua vida: Não pergunte o que o seu movimento de governação global pode fazer por si, mas o que pode você fazer pelo seu movimento de governação global.
Há poucas dúvidas de que a ESG é uma ferramenta da elite. Tem nominalmente como objectivo restringir os excessos do capitalismo globalizado, mas na realidade é igualmente um meio de enraizar esses excessos, codificando-os numa estrutura de poder moralista. Afinal de contas, quem decide o que são as boas práticas ambientais, sociais e de governação?
O que é certo é que a ESG veio para ficar. Em Davos este ano, talvez o segundo tema mais discutido tenha sido a grande transferência de riqueza que tem lugar em todo o mundo – ou seja, o dinheiro a passar da geração anterior de famílias cujo slogan era “preservar o capital” para a geração actual dos ultra-ricos cuja prioridade é “preservar o planeta”. Para esta nova geração de riqueza, bem como para os decisores cujas carreiras e políticas financiam, e para os activistas cujas mensagens transmitem, a ESG não é uma tendência passageira, mas muito mais o motor moral que impulsiona a ascensão de uma nova abordagem ao poder e à economia. O que isto significa para o resto de nós, porém, é decididamente menos certo.
____________
O autor: Ashley Rindsberg é um romancista, comentador mediático, ensaísta e jornalista americano com sedeado em Israel. Frequentou a Universidade de Cornell onde se formou em Filosofia e em Estudos de Ciência e Tecnologia. O seu livro mais recente é The Gray Lady Winked: Como os relatos errados, as distorções e as invenções do New York Times alteram radicalmente a História. (para mais detalhes ver wikipedia aqui).