A CIMEIRA DO SOL Y SOMBRERO — LIÇÕES DE ESTRATÉGIA NO CARIBE – por CARLOS MATOS GOMES

 

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A justificação oficial para a realização de cimeiras ibero-americanas é a de que os dois estados ibéricos, Portugal e Espanha, têm interesse em partilhar políticas com as suas antigas colónias americanas e constituir com elas um bloco com alguma autonomia e peso no mundo. É uma ideia louvável, mas que assenta na mesma lógica de realizar uma competição entre proprietários de Fiats 600 e de Porches, em que os donos destes, além dos carros ainda são os fornecedores do combustível, dos pneus e dos comissários de pista! A parte mais bizarra desta competição ocorre quando os donos dos Fiats transmitem aos seus povos que são livres, soberanos, e que a competição é de igual para igual! A multidão exulta de patriotismo!

Marcelo Rebelo de Sousa, que foi fazer um programa de vinte e quatro horas de stand up comedy e paleio de animador, disse e desdisse-se, falou de habitação, mas não dos bairros da lata do Estado Novo, nem do desordenamento do território, nem da especulação imobiliária, falou de custo de vida, mas não dos lucros dos distribuidores, e, para dar um ar de alta estratégia, fez a espantosa afirmação de que “há que recuperar o multilateralismo”(Jornal Público de26de Março)!

Apesar da complacência que o nosso sábio Merlin merece do povo (ele deve julgar que é respeito e admiração: é apenas indiferença), lê-se a afirmação e pensa-se agora é que o sol dos trópicos lhe queimou os últimos vestígios de vergonha. E não é tudo, o Comandante Supremo das Forças Armadas diz isto ao lado do ministro dos Negócios Estrangeiros, que já foi da Defesa e que acenou a cabeça, tomando a expressão inteligente do Mister ED, o protagonista de uma velha série em que um cavalo americano falava.

Resultado: nem o Comandante Supremo das Forças Armadas, nem o Ministro dos Negócios Estrangeiros e que já foi da Defesa parece ter conhecimento de noções elementares de Estratégia, da Teoria dos Grandes Espaços (Adriano Moreira). Falam destes assuntos como as senhoras consultant (está no currículo delas) herdeiras das do Movimento Nacional Feminino, que são chamadas à CNN para orações sobre a conversão da Rússia e a canonização do Zelenski, além de misseis que andam muito rápido (nas palavras técnicas de uma).

Portugal, este Presidente e o governo de que faz parte este ministro, são o Estado e os dirigentes mais submissos do poder unilateral dos EUA, talvez com exceção da Inglaterra e da Polónia. E, quanto a Portugal a fidelidade unipolar é doutrina estabelecida desde o final da II Guerra. Portugal foi submisso na crise Israel-Árabe, foi servil na invasão do Iraque, foi cúmplice nos crimes na Sérvia, foi cúmplice nas torturas e assassínios extrajudiciais de afegãos acusados sem qualquer prova. Portugal tem sido um tapete por onde todo o americano e inglês passa sem pedir licença e sem sequer limpar os pés. E agora, num fim de semana alargado no mar das Caraíbas, o presidente português solta o grito do Ipiranga: somos adeptos do multilateralismo, desde que seja os dos EUA!

A posição serpenteante de Marcelo Rebelo de Sousa não é uma vergonha de primeira instância: ela tem dois exemplos relativamente próximos, o Ultimato Inglês e a posição na I Grande Guerra. Resposta do Governo Português ao Ultimato Inglês: «Em presença duma rutura eminente das relações com a Grã-Bretanha e todas as consequências que poderiam dela derivar, o Governo resolve ‘ceder’ às exigências recentemente formuladas nos dois últimos memorandos.» Quanto à I Grande Guerra, enquanto a Inglaterra não aceitou admitir Portugal, o Estado Português, para gáudio geral, declarou-se “não beligerante e não neutral”! Marcelo é, tal como as figuras que fizeram estas figuras de sendeiros na monarquia e na República , um especialista na quadratura do círculo, o que é uma habilidade que só o responsabiliza a ele. Já colocar os portugueses a ridículo diz-nos respeito a todos! O sol na cuca de Marcelo fê-lo multilateralista, mas é só até ir ao beija-mão de Biden, ou o Cravinho ir a Bruxelas prometer Leopards, foguetes e balões de São João!

Mas Marcelo, com uma longa carreira de cátedra na Universidade, devia ter uma ideia de que nem todos os portugueses leram a História de Portugal pela cartilha do Estado Novo que ele tinha em casa. Existem versões fora da ideologia da epopeia. Basta ler António Sérgio. Ao longo da sua história o Estado Português nunca defendeu o multilateralismo, nem nenhum dos seus dirigentes o praticou: A independência de Portugal é devida à vitória da Inglaterra — um poder unipolar — contra o multilateralismo dos reinos ibéricos e de outros reinos europeus continentais, apenas federados pelo poder de Roma. O mesmo para Aljubarrota. Ou para a Restauração, ou para as Invasões Francesas. Portugal esteve sempre debaixo da asa do poder dominante, unipolar: caso da Inglaterra e depois dos EUA. Marcelo utiliza a ignorância dos portugueses para sacar os efeitos que lhe convêm. É snobismo intelectual, mas é sobretudo humilhar os portugueses perante quem sabe da realidade do “poder português” ao longo dos séculos. Portugal nunca defendeu princípios de política externa: sujeitou-se ao mais forte. Não é nenhuma desonra, mas não é motivo de exaltação e, menos de aproveitamento político, uma frase debitada, como tantas, para satisfação do auditório: a América do Sul tenta ganhar o maior grau de autonomia possível relativamente dos EUA e o multilateralismo agrada-lhe aos ouvidos. não devem é confiar em Marcelo para o defender e os defender.

Quanto à “escapadinha” dos dirigentes ibéricos à República Dominicana anunciada como momento de partilha de políticas e ação comum. (É claro que não podiam anunciar um programa de rumbas e escaldantes noites caribeñas.) Partilhar políticas implica a existência de políticas. O facto é que Portugal e Espanha têm hoje como única política: a política dos Estados Unidos, assim como todos os estados ibero-americanos, com a exceção do Brasil de Lula, do México de Obrador e da Venezuela de Maduro, além de Cuba, o estado que os Estados Unidos condenaram ao banimento. Tudo o resto faz parte do rebanho.

Quem determina a política dos estados reunidos na estância da Republica Dominicana são os Estados Unidos. É dos EUA que todos dependem económica e militarmente, os sul americanos e os ibéricos. A autonomia dos países caribeños relativamente aos EUA limita-se, como escreveu um escritor a decidirem a graduação alcoólica do Rum. Estão a tentar aliviar a canga do pescoço, mas será prudente não confiarem na solidariedade marcelista.

Além de anedotas de ocasião de que terão falado os senhoritos que surgem numa foto vestidos com uma opa da primeira comunhão? O Brasil de Lula tem uma política, a dos BRICs, que o vai levar à China com 300 empresários; o México está em tensão permanente com os EUA por causa da muralha que estes construíram e dos refugiados; a Venezuela vende petróleo no mercado mundial e Maduro passou a amigo necessário, Cuba segue o seu difícil caminho e não espera qualquer gesto de coragem ou autonomia de Espanha.

Em conclusão, o presidente da República portuguesa passou uns belos dias no Caribe, acompanhado por um coro que ampliava as ideias que lhe iam passando pela cabeça, de umas vezes a pobreza, de outras a riqueza, a paz, claro, a paz, garantiu que todos os bancos estavam sólidos, tinha a garantia da senhora Lagarde, uma mulher da maior fiabilidade, um género de Oráculo de Delfos, mas que fala inglês como um ventríloquo e francês como um polícia inglês. Que a inflação é um elemento da natureza, surge como os mosquitos, a inundações, nada tem a ver nem com os especuladores, nem com a guerra, nem com o novo preço da energia importada dos Estados Unidos, nem com as transferências maciças de fundos que os Estados não alinhadas detêm em bancos europeus e americanos, para evitar serem roubados.

No Verão teremos por cá o papa, se ainda houver padres para celebrar missas e adolescentes para os ajudar. Se não houver, Marcelo faz de cardeal e Moedas de sacristão, ele que faz tudo e até unicórnios.

Por fim, a boa proposta destes dias de intensos trabalhos na República Dominicana era o Marcelo, que distribui conselhos como os bispos da IURD distribuem milagres, prometer uma semana de férias no Caribe a cada português para saberem o que custa a vida!

 


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A Cimeira do Sol Y Sombrero — Lições de estratégia no Caribe | by Carlos Matos Gomes | Mar, 2023 | Medium

1 Comment

  1. Sobre as posições do nosso fala-barato, oscilo entre o divertimento e a vergonha do ridículo que sobre nós recai. Quanto à caracterização do evento, permito-me comentar que o panorama já foi pior e que, para além dos países citados como adversos à hegemonia dos USA, também se pode contar, em grau diverso, com o Chile, Argentina, Bolívia, Colômbia, Nicarágua e Honduras. Configuração instável, é certo, mas ainda assim das mais vastas que na América Latina se observaram nas últimas décadas. E uma nota de preocupação quanto às motivações de participação do Brasil. Há alguns anos, por ocasião de uma reunião sectorial destas Cimeiras, ouvi o embaixador do Brasil aí presente referi-las como “circo espanhol”, não pelo desequilíbrio numérico dos participantes, mas pela excessiva influência do reino aqui ao lado. A ter em conta.

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