Marriner Eccles, os New Dealers e a criação das Instituições de Bretton Woods — Parte III- Keynes versus Harry White – Texto 3. Discurso de Henry Morgenthau, Jr., na Sessão Plenária Inaugural (1 de Julho de 1944) em Bretton Woods

Nota de editor:

A parte III , Keynes versus Harry White, é constituída pelos seguintes textos:

Texto 1 – Porque é que foi White e não Keynes a inventar o sistema monetário internacional do pós-guerra, por James M. Boughton

Texto 2 – Bretton Woods – Declaração de John Maynard Keynes sobre o proposto Banco para a Reconstrução e Desenvolvimento

Texto 3 – Discurso de Henry Morgenthau, Jr., na Sessão Plenária Inaugural (1 de Julho de 1944) em Bretton Woods

Texto 4 – Discurso de Henry Morgenthau, Jr., na Sessão Plenária de Encerramento da Conferência de Bretton Woods (22 de Julho de 1944)

Texto 5 – Cooperação Financeira Global como um Legado de Bretton Woods, por Randal K. Quarles

 Texto 6 – A Batalha de Bretton Woods, Introdução, por Benn Steil

 Texto 7 – A história está feita, por Benn Steil

 Texto 8 – Os fundamentos esquecidos de Bretton Woods, por Eric Helleiner


Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

7 min de leitura

Parte III – Texto 3. Discurso de Henry Morgenthau, Jr., na Sessão Plenária Inaugural (1 de Julho de 1944) em Bretton Woods 

 Por Henry Morgenthau Jr.

Publicado por Centre Virtuel de la Connaissance sur l’Europe (original aqui)

 

Colegas Delegados e Membros da Conferência:

Deram-me a honra e a oportunidade. Aceito a presidência desta Conferência com gratidão pela confiança que depositaram  em mim. Aceito-a também com profunda humildade. Pois sei que o que aqui fizermos moldará de forma significativa a natureza do mundo em que vamos viver – e a natureza do mundo em que homens e mulheres mais jovens do que nós devem viver as suas vidas e procurar a realização das suas esperanças. Todos vós, eu sei, partilhais este sentido de responsabilidade.

É mais provável que tenhamos sucesso no trabalho que temos diante de nós se o virmos em perspetiva. A nossa agenda preocupa-se especificamente com o campo monetário e de investimento. Deve ser visto, contudo, como parte de um programa mais amplo de acção acordada entre nações para a expansão da produção, emprego e comércio contemplado na Carta Atlântica e no artigo VII dos acordos de ajuda mútua celebrados pelos Estados Unidos com muitos países das Nações Unidas. O que quer que realizemos aqui deve ser complementado e reforçado por outras ações que tenham este fim em vista.

O Presidente Roosevelt deixou claro que não nos é pedido que façamos acordos definitivos vinculativos para qualquer nação, mas que as propostas aqui formuladas devem ser remetidas aos nossos respetivos governos para aceitação ou rejeição. A nossa tarefa, portanto, é concertarmos as nossas ideias, entendermo-nos e pormo-nos de acordo, sobre certas medidas básicas que devem ser recomendadas aos nossos governos para o estabelecimento de uma relação económica sólida e estável entre nós.

Só podemos cumprir esta tarefa se a abordarmos não como negociantes mas como parceiros – não como rivais mas como homens que reconhecem que o seu bem-estar comum depende, na paz como na guerra, da confiança mútua e do esforço conjunto. Não é uma tarefa fácil que está perante nós; mas acredito, se nos dedicarmos a ela neste espírito, aberta e sinceramente, que o que aqui alcançarmos terá o maior significado histórico. Homens e mulheres em todo o lado procurarão neste encontro um sinal de que a unidade soldada entre nós pela guerra perdurará em paz.

Através da cooperação, estamos agora a ultrapassar a mais temível e formidável ameaça jamais levantada contra a nossa segurança e liberdade. Com o tempo, com a graça de Deus, o flagelo da guerra será afastado de nós. Mas iludir-nos-emos a nós próprios se considerarmos a vitória como sinónimo de liberdade e segurança. A vitória nesta guerra dar-nos-á simplesmente a oportunidade de moldar, através do nosso esforço comum, um mundo que seja, na verdade, seguro e livre.

Devemos preocupar-nos aqui com passos essenciais na criação de uma economia mundial dinâmica, na qual os povos de cada nação poderão realizar as suas potencialidades em paz; poderão, através da sua indústria, a sua criatividade, a sua parcimónia, elevar os seus próprios padrões de vida e desfrutar, cada vez mais, dos frutos do progresso material numa terra infinitamente abençoada com riquezas naturais. Esta é a pedra angular indispensável da liberdade e da segurança. Tudo o resto deve ser construído em cima disto. Pois a liberdade de oportunidades é a base de todas as outras liberdades.

Espero que esta Conferência concentre a sua atenção em dois axiomas económicos elementares. O primeiro deles é o seguinte: que a prosperidade não tem limites fixos. Não é uma substância finita a ser diminuída pela divisão. Pelo contrário, quanto mais dela gozarem as outras nações, mais cada nação terá para si própria. Há uma falácia trágica na noção de que qualquer país é suscetível de perder os seus clientes ao promover uma maior produção e padrões de vida mais elevados entre eles. Bons clientes são clientes prósperos. Esta questão pode ser ilustrada muito simplesmente a partir da experiência do comércio externo do meu próprio país. Na década anterior à guerra, cerca de 20% dos produtos em que estamos especializados destinavam-se aos 47 milhões de pessoas no Reino Unido altamente industrializado; menos de 3% destinavam-se aos 450 milhões de pessoas na China.

O segundo axioma é um corolário do primeiro. A prosperidade, tal como a paz, é indivisível. Não podemos dar-nos ao luxo de a ter espalhada aqui ou ali entre os afortunados ou de a desfrutar à custa de outros. A pobreza, onde quer que exista, é ameaçadora para todos nós e mina o bem-estar de cada um de nós. Não pode estar mais localizada  do que a guerra mas difunde-se e degrada a força económica de todas as áreas mais favorecidas da terra. Sabemos agora que o fio da vida económica em cada nação está inseparavelmente entrelaçado num tecido de economia mundial. Que qualquer fio se desfie e todo o tecido se enfraquece. Nenhuma nação, por muito grande e forte que seja, pode permanecer imune.

Todos nós vimos a grande tragédia económica do nosso tempo. Vimos a depressão mundial da década de 1930. Vimos desordens monetárias desenvolverem-se e espalharem-se de terra em terra, destruindo a base do comércio internacional e do investimento internacional e até mesmo da fé internacional. No seu rasto, vimos desemprego e miséria – bens de equipamento a estragarem-se sem utilização, vimos riqueza desperdiçada. Vimos as suas vítimas serem alvos e arrastadas, em alguns lugares, por  demagogos e ditadores. Vimos a amargura e a falta de perspetiva de vida e de futuro tornarem-se elementos chave na criação do fascismo e, finalmente, da guerra.

Em muitos países foram estabelecidos controlos e restrições sem ter em conta os seus efeitos noutros países. Alguns países, numa tentativa desesperada de captar uma parte do volume decrescente do comércio mundial, agravaram a desordem, recorrendo à depreciação competitiva das suas moedas. Grande parte da nossa capacidade criativa na economia foi despendido na elaboração de dispositivos para dificultar e limitar a livre circulação de mercadorias. Estes dispositivos tornaram-se armas económicas com as quais a primeira fase da nossa atual guerra foi travada pelos ditadores fascistas. Havia uma inevitabilidade irónica neste processo. A agressão económica não pode ter outra consequência que não seja a guerra. É tão perigosa quanto fútil.

Sabemos agora que o conflito económico deve desenvolver-se quando as nações se esforçam separadamente para lidar com os males económicos de âmbito internacional. Lidar com os problemas de intercâmbio internacional e de investimento internacional está para além da capacidade de qualquer país, ou de quaisquer dois ou três países. Estes são problemas multilaterais, a serem resolvidos apenas pela cooperação multilateral. São problemas fixos e permanentes, e não meras considerações transitórias da reconstrução do pós-guerra. São problemas que na sua importância não se limitam aos operadores em comércio internacional e aos banqueiros nos mercados cambiais, antes são fatores vitais no fluxo de matérias-primas e bens acabados, na manutenção de elevados níveis de produção e consumo, no estabelecimento de um nível de vida satisfatório para todos os povos de todos os países desta Terra.

Ao longo da última década, o Governo dos Estados Unidos tem procurado em muitas direções promover uma acção conjunta entre as nações do mundo. No domínio dos problemas monetários e financeiros, este Governo comprometeu-se, já em 1936, a facilitar a manutenção de intercâmbios ordenados, celebrando o Acordo Tripartido com a Inglaterra e a França, ao abrigo do qual eles, e subsequentemente a Bélgica, os Países Baixos e a Suíça, concordaram connosco em consultar-nos sobre questões cambiais antes de serem tomadas medidas importantes. Esta política de consultas foi alargada nos acordos bilaterais de intercâmbio que estabelecemos, com início em 1937, com os nossos vizinhos nos continentes americanos.

Em 1941, começámos a estudar a possibilidade de cooperação internacional numa base multilateral como meio de estabelecer um sistema estável e ordenado de relações monetárias internacionais e de relançar o investimento internacional. O nosso pessoal técnico – a que logo se juntaram os peritos de outras nações – empreendeu a preparação de propostas práticas, concebidas para implementar a cooperação monetária e financeira internacional. As opiniões destes técnicos, tal como relatadas na declaração pública conjunta que emitiram, revelam uma crença comum de que a perturbação nos mercados cambiais pode ser evitada, e o colapso dos sistemas monetários pode ser evitado, e uma base monetária sólida para o crescimento equilibrado do comércio internacional pode ser proporcionada, se formos suficientemente previdentes para planearmos com antecedência – e para planearmos em conjunto. É consenso destes peritos técnicos que a solução reside numa instituição permanente de consulta e cooperação sobre problemas monetários, financeiros e económicos internacionais. A formulação de uma proposta definitiva para um Fundo de Estabilização das Nações Unidas e Associadas é um dos pontos da nossa agenda.

Mas as disposições relativas à estabilização monetária por si só não serão suficientes para responder a necessidade de reabilitação das economias destruídas pela guerra. Não foram, de facto, concebidas com esse fim. É proposto, antes, como um mecanismo permanente para promover a estabilidade cambial. Mesmo para cumprir eficazmente esta função, deve ser complementado por muitas outras medidas para remover os obstáculos ao comércio mundial.

Para fins de reconstrução a longo prazo, os empréstimos internacionais em larga escala serão imperativos. Temos em mente uma necessidade totalmente distinta do problema da ajuda imediata que está a ser empreendida pela Administração de Socorro e Reabilitação das Nações Unidas. A necessidade que procuramos satisfazer através da segunda proposta da nossa agenda é a de empréstimos para fornecer capital para a reconstrução económica, empréstimos para os quais poderá haver segurança adequada e que proporcionarão a oportunidade de investimento, sob as devidas salvaguardas, relativas ao  capital para muitos países.  Os técnicos prepararam o esboço de um plano para um Banco Internacional de Reconstrução do Pós-Guerra que investigará as oportunidades de empréstimos desta natureza, os recomendará e supervisionará e, se aconselhável, fornecerá aos investidores garantias do seu reembolso.

Não tentarei aqui discutir estas propostas em pormenor. Essa é a tarefa desta Conferência. É uma tarefa cujo desempenho exige sabedoria, homens de Estado e, sobretudo, exige muito boa vontade.

O facto transcendente da vida contemporânea é este – que o mundo é uma comunidade. Nas frentes de batalha em todo o mundo, os jovens de todos os nossos países unidos têm vindo a morrer juntos – morrendo por um propósito comum. Não está para além dos nossos poderes permitir aos jovens de todos os nossos países viverem em conjunto – e de a este objetivo consagrarem as suas energias, as suas capacidades, as suas aspirações ao enriquecimento mútuo e ao progresso em paz. A nossa responsabilidade final é para com eles. A nossa responsabilidade final é para com eles. O trabalho que realizarmos será julgado na base da sua prosperidade ou da degradação das suas condições de vida. A oportunidade que se nos apresenta foi conseguida à custa do nosso sangue. Agarremo-la, então, com confiança uns nos outros, com fé no nosso futuro comum, pelo qual estes homens lutaram para o tornar livre.

 

 

 

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