Espuma dos dias — Carta de demissão de Craig Mokhiber, diretor do escritório de Nova York do Alto Comissariado para os Direitos Humanos

Seleção de Francisco Tavares

Tradução de Marcos Cruz

9 min de leitura

Obrigado ao António Gomes Marques que fez circular esta carta

Carta de demissão de Craig Mokhiber, diretor do escritório de Nova York do Alto Comissariado para os Direitos Humanos

 Craig Mokhiber

 

Esta é a carta de demissão de Craig Mokhiber de 28/10/2023, diretor do escritório de Nova York do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, dirigida ao Alto-Comissário para os Direitos Humanos, Volker Turk (ver aqui).

 

Senhor Alto-Comissário,

Esta será a minha última comunicação oficial como Diretor do Escritório de Nova Iorque do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (ACNUDH).

Escrevo-lhe num momento de grande angústia para o mundo, incluindo muitos dos nossos colegas. Mais uma vez, estamos a testemunhar o genocídio que se desenrola diante dos nossos olhos e a Organização que servimos parece impotente para o impedir. Como alguém que investigou os direitos humanos na Palestina desde a década de 1980, viveu em Gaza como conselheiro de direitos humanos da ONU na década de 1990, e realizou várias missões de direitos humanos no país antes e depois destes períodos, esta situação afecta-me pessoalmente.

Foi também nestas instalações da ONU que trabalhei durante os genocídios contra os tutsis, os muçulmanos bósnios, os yazidis e os rohingyas. Em cada caso, à medida que a poeira assentava sobre os horrores perpetrados contra populações civis indefesas, tornou-se dolorosamente óbvio que havíamos falhado no nosso dever de cumprir os imperativos de prevenir atrocidades em massa, de proteger os vulneráveis, e de responsabilização dos infratores. O mesmo aconteceu com sucessivas ondas de assassinatos e perseguições contra os palestinianos ao longo da existência das Nações Unidas.

Senhor Alto Comissário, estamos novamente a falhar.

Como advogado especializado em direitos humanos, com mais de trinta anos de experiência nesta área, sei bem que o conceito de genocídio tem sido frequentemente objecto de exploração política abusiva. Mas o actual massacre do povo palestiniano, ancorado numa ideologia colonial etno-nacionalista, uma continuação de décadas de perseguição e purga sistemáticas, baseadas inteiramente no seu estatuto de árabes, e associado a declarações explícitas de intenções por parte dos líderes do governo israelita e exército, não deixa espaço para dúvidas ou debate. Em Gaza, casas, escolas, igrejas, mesquitas e instalações médicas estão a ser atacadas sem razão e milhares de civis estão a ser massacrados. Na Cisjordânia, incluindo Jerusalém ocupada, as casas são confiscadas e realocadas com base unicamente na raça. Além disso, os pogroms violentos perpetrados pelos colonos são acompanhados por unidades militares israelitas. O apartheid reina em todo o país.

Este é um caso clássico de genocídio. O projecto colonial europeu etno-nacionalista de colonização na Palestina entrou na sua fase final, rumo à destruição acelerada dos últimos vestígios da vida indígena palestina na Palestina. Além do mais, os governos dos Estados Unidos, do Reino Unido e de grande parte da Europa são completamente cúmplices deste ataque horrível. Estes governos não só se recusam a cumprir as suas obrigações decorrentes do tratado de “garantir o cumprimento” das Convenções de Genebra, como também estão activamente a armar a ofensiva, a fornecer apoio económico, informações e a encobrir política e diplomaticamente as atrocidades cometidas por Israel.

Em conjunto com tudo isto, os meios de comunicação social ocidentais, cada vez mais a mando dos governos, estão a romper completamente com o Artigo 20 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos-PIDCP, desumanizando constantemente os palestinianos para justificar o genocídio, e divulgando propaganda de guerra e apelos ao ódio nacional, racial ou religioso que constituem incitamento à discriminação, à hostilidade e à violência. As empresas de redes sociais sediadas nos EUA estão a suprimir as vozes dos defensores dos direitos humanos, ao mesmo tempo que amplificam a propaganda pró-Israel. O lóbi israelita de provocadores nas redes sociais e os GONGOS (N.T., organizações não governamentais apoiadas pelos governos) perseguem e difamam os defensores dos direitos humanos, as universidades ocidentais e os empregadores colaboram com eles para punir aqueles que ousam falar contra as atrocidades. Na sequência deste genocídio, estes intervenientes também terão de ser responsabilizados, como foi o caso da rádio Milles Collines no Ruanda.

Em tais circunstâncias, a nossa organização é mais do que nunca chamada a agir de forma eficaz e baseada em princípios. Mas não cumprimos com este desafio. O poder protector do Conselho de Segurança foi mais uma vez bloqueado pela intransigência dos EUA, o Secretário-Geral está sob ataque pelos seus débeis protestos e os nossos mecanismos de direitos humanos estão sob ataque calunioso, apoiados por uma rede online organizada que defende a impunidade.

Décadas de distração provocadas pelas promessas ilusórias e em grande parte decepcionantes de Oslo distraíram a Organização do seu dever essencial de proteger o direito internacional, os direitos humanos e a própria Carta. O mantra da “solução de dois Estados” tornou-se uma piada aberta nos corredores da ONU, tanto pela sua total impossibilidade de facto como pelo seu completo fracasso em ter em conta os direitos humanos inalienáveis do povo palestiniano. O chamado “Quarteto” nada mais é do que uma folha de parreira para a inacção e submissão a um status quo brutal. A referência (escrita pelos Estados Unidos) a “acordos entre as próprias partes” (em vez do direito internacional) sempre foi um óbvio truque de prestidigitação, destinado a fortalecer o poder de Israel contra os direitos dos palestinianos ocupados e desapropriados das suas propriedades.

Senhor Alto-Comissário, juntei-me a esta Organização na década de 1980 porque encontrei uma instituição baseada em princípios e normas que estavam decididamente do lado dos direitos humanos, inclusive nos casos em que os poderosos EUA, Reino Unido e Europa não estavam do nosso lado. Embora o meu próprio governo, as suas instituições subsidiárias e grande parte da comunicação social norte-americana ainda apoiassem ou justificassem o apartheid sul-africano, a opressão israelita e os esquadrões da morte centro-americanos, as Nações Unidas defenderam os povos oprimidos destes países. Tínhamos o direito internacional do nosso lado. Tínhamos os direitos humanos do nosso lado. Tínhamos os princípios do nosso lado. A nossa autoridade estava enraizada na nossa integridade. Mas esse não é mais o caso.

Nas últimas décadas, membros importantes das Nações Unidas cederam ao poder dos EUA e ao medo do lóbi israelita, abandonando estes princípios e renunciando ao próprio direito internacional. Perdemos muito neste abandono, incluindo a nossa própria credibilidade global. Mas foi o povo palestiniano quem sofreu as maiores perdas devido aos nossos fracassos. Ironicamente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi adoptada no mesmo ano em que a Nakba [n.t. êxodo forçado a que foi submetido o povo palestiniano em 1946-48 como consequência da criação do Estado de Israel] foi perpetrada contra o povo palestiniano.

Ao comemorarmos o 75º aniversário da DUDH, faríamos bem em abandonar o mito banal de que a DUDH surgiu das atrocidades que a precederam e admitir que surgiu ao mesmo tempo que um dos genocídios mais atrozes do século XX, o da destruição da Palestina. Num certo sentido, os autores da Declaração prometeram direitos humanos a todos, excepto ao povo palestiniano. Não esqueçamos também que as Nações Unidas cometeram o pecado original de facilitar a expropriação do povo palestiniano ao ratificar o projecto colonial europeu que se apoderou da terra palestiniana e a entregou aos colonos. Temos muito que expiar.

Mas o caminho da expiação é claro. Temos muito a aprender com a posição de princípio tomada nos últimos dias em cidades de todo o mundo, onde milhões de pessoas se manifestam contra o genocídio, mesmo correndo o risco de serem espancadas e presas. Os palestinianos e os seus aliados, os defensores dos direitos humanos de todos os matizes, as organizações cristãs e muçulmanas e as vozes judaicas progressistas que dizem “não em nosso nome”, estão todos a liderar o caminho. Tudo o que temos que fazer é segui-los.

Ontem, a poucos quarteirões daqui, a Estação Grand Central de Nova Iorque foi completamente invadida por milhares de defensores dos direitos humanos judeus, solidários com o povo palestiniano e exigindo o fim da tirania israelita (muitos deles arriscando ser presos). Ao fazê-lo, eliminaram num instante o argumento da propaganda divulgada por Israel (e o velho cliché do anti-semitismo) de que Israel representa de alguma forma o povo judeu. Este não é o caso. E, como tal, Israel é o único responsável pelos seus crimes. Neste ponto, vale a pena repetir, apesar da calúnia do lóbi israelita, que as críticas às violações dos direitos humanos cometidas por Israel não são anti-semitas, tal como as críticas às violações sauditas não são islamofóbicas, e as críticas às violações de Mianmar são anti-budistas, ou crítica às violações indianas é anti-hinduísta. Quando procuram silenciar-nos caluniando-nos, devemos levantar a voz, em vez de a silenciar. Espero que concorde, Senhor Alto-Comissário, que é disto que se trata, de falar a verdade aos poderosos.

Mas também encontro esperança em todos os membros das Nações Unidas que, apesar da enorme pressão, se recusaram a comprometer os princípios da Organização em matéria de direitos humanos. Os nossos relatores especiais independentes, as comissões de inquérito e os peritos dos órgãos de tratados, bem como a maioria do nosso pessoal, continuaram a defender os direitos humanos do povo palestiniano, mesmo quando outros membros das Nações Unidas (mesmo ao mais alto nível) vergonhosamente inclinaram a cabeça diante dos poderosos. Como guardião das normas e padrões de direitos humanos, o ACNUDH tem o dever especial de defender esses padrões. A nossa tarefa, creio eu, é fazer ouvir a nossa voz, desde o Secretário-Geral até ao mais recente recruta da ONU e, horizontalmente, em todo o sistema da ONU, insistindo que os direitos humanos do povo palestiniano não são objecto de debate, nenhuma negociação, nem qualquer compromisso, em qualquer lugar sob a bandeira azul.

Então, como seria uma posição baseada nos padrões da ONU? Em que direção estaríamos a trabalhar se fôssemos fiéis às nossas exortações retóricas sobre os direitos humanos e a igualdade para todos, a responsabilização dos criminosos, a reparação das vítimas, a proteção dos vulneráveis e o empoderamento dos titulares de direitos, tudo no âmbito do Estado de direito? A resposta, creio eu, é simples – se tivermos a clareza para ver para além das cortinas de fumo da propaganda que distorcem a visão de justiça a que prestámos juramento, a coragem de abandonar o medo e a deferência pelo respeito pelos Estados poderosos e pelo desejo de elevar o padrão dos direitos humanos e da paz. É verdade que este é um projeto de longo prazo e um caminho íngreme. Mas temos de começar agora, a menos que nos rendamos a um horror indescritível. Vejo dez pontos essenciais:

1-Acção legítima: em primeiro lugar, devemos, no seio das Nações Unidas, abandonar o paradigma falhado (e em grande parte falacioso) de Oslo, a sua solução ilusória de dois Estados, o seu Quarteto impotente e cúmplice, e a sujeição do direito internacional aos ditames dos seus supostos méritos políticos. As nossas posições devem basear-se inequivocamente nos direitos humanos e no direito internacional.

2-Uma visão clara: devemos parar de fingir que se trata simplesmente de um conflito territorial ou religioso entre duas partes em conflito e admitir a realidade da situação, nomeadamente que um Estado com um poder desproporcional coloniza, persegue e desapropria uma população indígena com base na sua etnia.

3-Um Estado único baseado nos direitos humanos: devemos apoiar o estabelecimento de um Estado único, democrático e secular em toda a Palestina histórica, com direitos iguais para cristãos, muçulmanos e judeus, e, portanto, o desmantelamento do projecto colonialista profundamente racista e o fim do apartheid em todo o território.

4-Luta contra o apartheid: devemos redireccionar todos os esforços e recursos das Nações Unidas para a luta contra o apartheid, como fizemos para a África do Sul nas décadas de 1970, 1980 e no início da década de 1990.

5-Regresso e compensação: devemos reafirmar e insistir no direito ao retorno e à compensação total de todos os palestinianos e das suas famílias que vivem actualmente nos territórios ocupados, no Líbano, na Jordânia, na Síria e na diáspora em todo o mundo.

6-Verdade e justiça: devemos apelar a um processo de justiça transicional, aproveitando ao máximo as décadas de investigações, pesquisas e relatórios acumulados pela ONU, a fim de documentar a verdade e garantir a responsabilização de todos os criminosos, a compensação para todos vítimas e a reparação de injustiças documentadas.

7-Protecção: Devemos insistir no envio de uma força de protecção da ONU com recursos suficientes e um mandato forte para proteger os civis desde o rio até ao mar.

8-Desarmamento: devemos defender a remoção e destruição dos enormes arsenais de armas nucleares, químicas e biológicas de Israel, evitando assim que o conflito conduza à destruição total da região e, quem sabe, mais além.

9-Mediação: devemos reconhecer que os Estados Unidos e outras potências ocidentais não são mediadores credíveis, mas sim partes no conflito, que são cúmplices de Israel na violação dos direitos palestinianos, e os devemos confrontar como tal.

10-Solidariedade: devemos abrir amplamente as nossas portas (e as do Secretariado-Geral) às legiões de defensores dos direitos humanos palestinianos, israelitas, judeus, muçulmanos e cristãos que se solidarizam com o povo da Palestina e os seus direitos, e pôr fim ao fluxo sem restrições de lobistas israelitas para os gabinetes dos líderes da ONU, onde defendem a continuação da guerra, da perseguição, do apartheid e da impunidade, ao mesmo tempo que denigrem os nossos defensores dos direitos humanos devido à sua posição de princípio em relação aos direitos palestinianos.

Levaremos anos para conseguir isso, e as potências ocidentais lutarão contra nós a cada passo do caminho, por isso devemos ser firmes. No curto prazo, temos de trabalhar por um cessar-fogo imediato e pelo fim do cerco a Gaza, opor-nos à limpeza étnica de Gaza, de Jerusalém, da Cisjordânia (e de outros lugares), documentar o ataque genocida em Gaza, contribuir para fornecer aos palestinianos ajuda humanitário massiva e os meios para a reconstrução, cuidar dos nossos colegas traumatizados e das suas famílias e lutar arduamente para garantir que a abordagem dos gabinetes políticos da ONU se baseia em princípios.

O fracasso das Nações Unidas na Palestina até agora não é motivo para desistirmos. Pelo contrário, deveria encorajar-nos a abandonar o paradigma falhado do passado e a abraçar plenamente um curso de acção mais baseado em princípios.

Como ACDH, juntemo-nos com ousadia e orgulho ao crescente movimento anti-apartheid em todo o mundo, acrescentando o nosso logotipo à bandeira da igualdade e dos direitos humanos para o povo palestiniano. O mundo está a observar-nos. Todos teremos de prestar contas da nossa posição neste momento crucial da história. Fiquemos do lado da justiça.

Obrigado, Alto-Comissário Volker, por ouvir este último apelo do meu gabinete. Dentro de alguns dias deixarei o Escritório pela última vez, depois de mais de três décadas de serviço. Mas sinta-se à vontade para entrar em contato comigo se eu puder ajudar no futuro.

Sinceramente,

 

Craig Mokhiber – 28 de outubro de 2023

 


Craig Gerard Mokhiber [1960-] é um ex-funcionário americano de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) e especialista em Direito, política e metodologia internacionais de direitos humanos. Em 28 de outubro de 2023, Mokhiber deixou o cargo de diretor do escritório de Nova York do Alto Comissariado das Nações Unidas para os direitos humanos, devido à resposta da organização à guerra em Gaza. Na sua carta de demissão, ele apelidou a intervenção militar de Israel em Gaza de “genocídio de manual” e acusou a ONU de não agir. Licenciado em Direito pela Universidade de Buffalo.

 

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