Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
8 min de leitura
A última oportunidade da Europa: unir-se ou desmoronar-se
Publicado por
em 5 de Março de 2025 (original aqui)
À medida que as tensões globais aumentam, a Europa enfrenta uma escolha difícil — construir uma força de defesa e remodelar o financiamento global ou arriscar a irrelevância.
O sistema internacional estabelecido em Yalta em 1945, que levou a uma ordem mundial dominada por duas superpotências, está a desintegrar-se. A Guerra Fria deu início a um período de relativa estabilidade, evitando um confronto nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética em 1962. A queda do Muro de Berlim, facilitada pelas iniciativas de Mikhail Gorbachev, permitiu uma fase temporária do desarmamento de mísseis na Europa. No entanto, no século XXI, a ascensão da China como uma formidável potência económica e política aumentou as tensões entre nações mais pequenas e maiores. Surgiu um mundo multipolar anárquico. A invasão da Ucrânia pela Rússia trouxe a guerra de volta à Europa — onde, em 2012, a União Europeia recebeu o Prémio Nobel da Paz por ter “ajudado a transformar a maior parte da Europa de um continente de guerra para um continente de paz.” Os analistas geopolíticos descrevem agora a atual desordem global como um” choque de impérios ” (Guénolé, 2025). Uma guerra nuclear catastrófica tornar-se-á inevitável? E quem, se é que haverá alguém, emergirá como a potência global dominante?
A eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos revelou claramente uma mudança que se tinha vindo a desenvolver desde há décadas. No final da sua presidência, Barack Obama observou numa entrevista (The Atlantic, 2016): “quase todas as grandes potências mundiais sucumbiram à superextensão… cada vez que há um problema, enviamos os nossos militares para impor a ordem. Não podemos estar a fazer isso”. Em relação aos Aliados europeus, ele acrescentou: “Os oportunismos políticos preocupam-me”. Desde então, Trump deixou claro que as relações EUA-UE precisam de ser reavaliadas, envolvendo-se em diálogo direto com o presidente russo, Vladimir Putin, para negociar a paz potencial na Europa — sem incluir a UE ou a Ucrânia nas discussões. Uma nova cortina de ferro pode voltar a dividir a Europa e a Rússia. Entretanto, a União Europeia não conseguiu apresentar a sua própria iniciativa de paz, expondo um vácuo de poder gritante. Este vazio não permanecerá por preencher indefinidamente; outras potências mundiais aguardam a oportunidade de explorar as riquezas do velho continente. A UE tem de decidir se vai afirmar a sua influência ou se vai tornar-se irrelevante.
A sobrevivência da UE dependerá da sua capacidade de liderar uma coligação de nações empenhadas em reconstruir uma ordem internacional pacífica. Isto significa renovar as instituições originalmente concebidas pela administração de Franklin D. Roosevelt antes da Conferência de Yalta — o sistema de Bretton Woods, as Nações Unidas e a Organização Mundial do Comércio (inicialmente o Acordo Geral Sobre Tarifas e comércio, ou GATT). O dólar tornou-se uma moeda global inflacionária, permitindo aos Estados Unidos acumular níveis perigosos de dívida pública e equipar e utilizar o seu sistema financeiro como arma através de sanções económicas. O Conselho de Segurança das Nações Unidas continua paralisado por vetos concorrentes e o mecanismo de resolução de litígios da OMC está bloqueado, tornando a regulamentação do comércio internacional ineficaz. Duas questões urgentes destacam-se para a Europa e para o mundo: a criação de uma força de defesa europeia e a reforma do sistema monetário internacional.
Defesa europeia
Os esforços da UE para construir uma defesa comum enfrentam os mesmos obstáculos estruturais que enfrenta a sua União Económica e Monetária. O sistema de votação antidemocrático do Conselho de Ministros, em que o veto de qualquer Estado-Membro pode inviabilizar decisões coletivas, há muito que impede o progresso. No final da década de 1970, a coordenação monetária europeia começou com o Sistema Monetário Europeu (SME), mas foi só depois da reunificação alemã que Berlim concordou em criar o Banco Central Europeu e introduzir o euro. Da mesma forma, os governos da UE continuam presos a um impasse sobre a coordenação das políticas nacionais de defesa. Mario Draghi criticou esta abordagem nos seus relatórios e discursos ao Parlamento Europeu, argumentando que a UE deve evoluir para um estado de pleno direito. Um Estado só é reconhecido na cena internacional se tiver uma força militar autónoma — um exército europeu comandado por um general europeu, sob a autoridade de um governo europeu democrático. Isso também exigiria uma reforma da NATO: atualmente, a NATO opera sob o comando de um general americano, mas as forças europeias devem ser lideradas por uma estrutura de comando europeia responsável perante as instituições democráticas da UE.
Uma tal transformação requer vontade política no Parlamento Europeu e um compromisso financeiro através de recursos dedicados da UE para a defesa. A criação de um exército europeu é crucial não só para que a UE fale a uma só voz na cena global, mas também para colmatar as divisões políticas e culturais entre os membros ocidentais e orientais da União. Na sequência da Guerra Fria, foi essencial integrar as antigas nações do Pacto de Varsóvia na UE para evitar disputas territoriais, como demonstrado pela violenta dissolução da Jugoslávia. No entanto, os cidadãos dos países do leste da UE não experimentaram os mesmos processos de reconciliação do pós-guerra que os seus homólogos ocidentais. Os europeus ocidentais tiveram de superar as inimizades históricas, como exemplificado pela reconciliação franco-alemã através da Declaração Schuman, que lançou as bases para a integração europeia. A luta pela construção de uma força de defesa comum poderia fomentar uma identidade e um patriotismo europeus partilhados, consolidando uma comunidade política supranacional.
Em todo o mundo, quase metade da população mundial vive em estados federais — como Estados Unidos, Canadá, Austrália, Alemanha, Suíça, Índia e Brasil—onde o federalismo é principalmente um meio de descentralizar a governança dentro dos Estados-nação. A integração europeia, no entanto, representa um modelo único: uma federação supranacional com três níveis de cidadania—local, nacional e europeia.
Um Novo Bretton Woods
A UE carece de forças armadas unificadas, mas possui uma moeda supranacional, o euro, que serve como reserva internacional para muitos países (a partir de 2023: dólar americano 58,4%, euro 19,9%, iéne 5,7%, renminbi 2,29%). As desvantagens do domínio global do dólar são há muito evidentes. Alguns economistas também criticaram a instabilidade de uma economia mundial em que a dívida total atingiu 360% do PIB global e já não existe uma ligação significativa entre a poupança global e o investimento (de Larosière, 2022). Para agravar esses desequilíbrios financeiros está a crise ecológica, que exige políticas globais coordenadas para conter o esgotamento de recursos em terra, mares e ar. As Nações Unidas devem dispor dos seus próprios recursos financeiros para financiar uma agenda global de sustentabilidade, alinhada com os dezassete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Uma parte das despesas militares globais deve ser redirecionada para políticas ambientais.
Esses objetivos exigem a reforma do Fundo Monetário Internacional, eliminando o veto dos EUA sobre os direitos de saque especiais (DSE), que foram introduzidos na década de 1960 por iniciativa de Robert Triffin (Montani, 2024). Os DSE compreendem atualmente um cabaz de cinco moedas: o dólar americano, o euro, o iene, o renminbi e a libra esterlina. A reforma proposta faria com que os bancos centrais nacionais adotassem os DSE como moeda de reserva para o comércio global e as transações financeiras, criando um espaço monetário global. Ao contrário da moeda única da europa, os DSE não circulariam internamente, permitindo que as moedas nacionais permanecessem em uso—desde que cada governo mantivesse uma taxa de câmbio fixa entre a sua moeda e os DSE. Isso estabeleceria uma única unidade de conta para o comércio e as finanças internacionais.
Os benefícios deste sistema são múltiplos. Em primeiro lugar, as economias emergentes poderiam aceder a empréstimos internacionais a taxas de juro de mercado prevalecentes, em vez de serem forçadas a emitir dívida soberana a taxas proibitivamente elevadas. Em segundo lugar, um mecanismo universal de precificação do carbono nos DSE imporia custos ambientais iguais para as empresas em todo o mundo, desencorajando a arbitragem da poluição. Em terceiro lugar, sob a supervisão da ONU, o FMI poderia emitir DSE para apoiar as políticas sociais nos países em desenvolvimento e financiar respostas de emergência globais, incluindo o alívio da pandemia, as crises ambientais e a conservação dos oceanos.
Conclusão
No início da era moderna, os Estados exerciam dois poderes fundamentais: “a bolsa e a espada”. Hoje, a União Europeia carece de uma “espada”, mas comanda um poderoso instrumento económico — o euro. Isto dá à UE a oportunidade de liderar uma transformação pacífica das Relações Internacionais. Os países do BRICS, agora em expansão, manifestaram o seu apoio ao “multilateralismo inclusivo”. Isso poderia fornecer à UE aliados cruciais no esforço de estabelecer uma ordem global mais equitativa, sustentável e pacífica.
__________
O autor: Guido Montani (1943) em 1968 recebeu o seu diploma universitário na Faculdade de economia de Universidade De Pavia. Durante o ano lectivo de 1968-69 foi investigador (em “Progresso técnico e Teoria do Capital”) na Faculdade de economia, Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde estudou sob a tutela dos professores Sraffa, Garegnani e Christofer Bliss. Como professor titular, ensinou Teoria do Desenvolvimento Económico, Economia Política e Economia Internacional na Universidade de Florença, Bolonha e Pavia. De 1999 a 2005 foi presidente da Licenciatura em Ciências Económicas, na Faculdade de Economia em Pavia e de 2004 a 2008 foi presidente Mestrado em integração económica internacional da Interfaculdade (Economia Ciências Políticas). Desde 2008 lecionou Economia Política Internacional para o Mestrado em Economia e Finanças Internacionais da Faculdade de Economia de Pavia. Foi membro do Comité Científico do Centro P. Sraffa (Universidade de Roma 3). Foi membro do Conselho Editorial da “Economia Política. Estudos no domínio dos excedentes” e publicou artigos sobre “Econometrica”, “Political Economy”, “Bulletin of Political Economia”, “o Federalista”, “Il Politico” e “Il Mulino.” Foi um dos fundadores do Instituto Altiero Spinelli de Estudos federalistas (Ventotene) do qual foi Director e, mais tarde, presidente. Foi Secretário-Geral (1993- 2005) e Presidente (2005-2009) do Movimento Federalista Europeo e Vice-presidente da A União dos Federalistas europeus (UEF) da qual é agora membro honorário.
Domínios de investigação: Guido Montani publicou artigos e livros sobre a teoria do valor e da distribuição em economistas clássicos ingleses, especialmente Ricardo. Os primeiros estudos foram dedicados à teoria da renda e a uma crítica da noção de escassez na economia. Um campo científico, relacionado com o anterior, foi o efeito do progresso técnico sobre o emprego na economia política clássica e na economia neoclássica. Alguns desenvolvimentos, na perspectiva da abordagem dos excedentes, diziam respeito à produção de bens especiais, como os serviços, incluindo o sistema bancário e de crédito. Um segundo campo de estudo diz respeito à teoria da integração económica, em especial ao processo de Integração Europeia. Durante os anos setenta, após o colapso do sistema de Bretton Woods, apoiou o projecto da moeda única europeia, como resposta aos problemas monetários europeus e mundiais. Mais recentemente, num livro (2001) sobre Globalização (e em alguns artigos), foi formulada uma generalização da teoria ricardiana dos custos comparativos, na qual, não dois, como afirmam os livros didáticos sobre a teoria Ricardo, mas três níveis de integração são concebidos (um nível nacional, um internacional e, finalmente, um nível completo ou supranacional -– União Económica). Após a crise financeira de 2007-09, publicou artigos para mostrar que é possível tirar algumas lições do processo de Integração Europeia, a fim de moldar uma nova ordem económica global num mundo cada vez mais multipolar. Os seus dois livros recentes (com R. Fiorentini) são a nova economia política Global. Da crise à integração supranacional, Edward Elgar, 2012, e a coleção de ensaios (com R. Fiorentini), A União Europeia e a economia política supranacional, Routledge, 2015. (para mais info ver aqui)



